terça-feira, 23 de novembro de 2010

Evento da Literatura Portuguesa - Guerra Junqueiro -


Luis Moreira

Não sei se é um evento ou se é conforme a ideia inicial, mas caramba, como posso eu fazer melhor? Não é um evento lembrar que esta choldra sempre foi assim? E que ao ler este texto de 1896, percebemos o que é cultura, o que é o génio, que é capaz de antecipar, retratar de uma forma perfeita as raízes de todo um povo, que conquistou o mundo novo e, ao mesmo tempo, deixar-se explorar sem dó nem piedade por meia dúzia de corporações, sempre as mesmas penduradas nas mordomias que só a miséria da maioria pode suportar?



"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,

fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,

aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,

sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,

pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;

um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai;

um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,

e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que

um lampejo misterioso da alma nacional,

reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.


Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,

não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha,

sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,

descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,

capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,

da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral,

escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.


Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;

este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,

tornado absoluto pela abdicação unânime do País.


A justiça ao arbítrio da Política,

torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.


Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,

incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos,

iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,

e não se malgando e fundindo, apesar disso,

pela razão que alguém deu no parlamento,

de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."


Guerra Junqueiro, 1896.

4 comentários:

  1. Tal e qual, Luis, um bom evento muito importante para os dias de hoje. Parabéns

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  2. Pois é. Também acho que o Luís está de parabéns. Hoje já andei a distribuir este evento (quer dizer a parte do Guerra Junqueiro) por muitas caixas de correio e... de mão em mão

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  3. Muito bom, Luís. Ainda não tinha feito o elogio ao teu evento, mas o que escreveste e o que referiste não podiam vir mais a propósito neste momento.

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  4. Obrigado, ainda tenho recuperação se continuar nesta companhia de gente tão boa e amiga.

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