domingo, 14 de novembro de 2010

Fotopoemas - O caminho

Texto de Manuela Degerine e
Fotografia de José Magalhães


Estou a escrever de memória. A fotografia de José Magalhães ficou na minha caixa do correio – em casa. E neste momento encontro-me numa estação do caminho de ferro: vou a Versailles. Vou a Versailles porque vi a fotografia de José Magalhães. Não tentei resistir: vou a Versailles.

Até há cerca de um ano, o parque de Versailles era, não propriamente o meu quintal, mas algo de muito familiar. Logo que inventava três horas livres, pegava na bicicleta, apanhava o comboio e, vinte minutos mais tarde, saía na estação de Versailles. Rue du maréchal Foch, boulevard de la Reine... chegava ao parque. Atravessava, sem parar, a Petite Venise, uma Veneza ínfima, na verdade, ponto de encontro dos turistas, por ter parques de estacionamento, um restaurante, vários quiosques, aluguer de barcos, bicicletas e Segway... Um espaço onde cheirava a crepes e café. Eu buscava outros odores. No outono e inverno, os cogumelos, a terra húmida, as folhas caídas, no fim da primavera, as flores de tília, uma ou outra vez, a relva recém-cortada e, em todas as estações, a bosta de cavalo: o parque é vigiado por polícia montada e alguns trabalhos florestais são realizados com cavalos.

Prosseguia à beira do Canal na direcção da Ferradura (Fer à Cheval). Lembro-me de, há dois ou três anos, a água do Canal ter gelado e haver, neste sítio, uma perseguição de cisnes: um namoro com patinagem aparatosa por cima do gelo. Fer à Cheval tem, no cimo das escadas, o Trianon. Eu continuava na direcção da Estrela (Étoile), desdenhava a pradaria à direita, torcia o pescoço à esquerda para avistar, muito ao fundo, quase minúsculo, no outro extremo do Canal, o palácio. Subira até chegar à Étoile – há pequenas encostas – e descia depois na direcção da Ménagerie, o espaço onde viviam os animais exóticos... e que agora serve de residência ao Presidente da República. Antes de chegar à Ménagerie, os ciclistas encontram duas opções: os que se poupam cortam pela beira do Canal, enquanto os mais desportistas sobem uma encosta, passam por detrás de um dos braços do Canal e, do outro lado, descem – vertiginosa e ludicamente – a simétrica encosta. Eu, cela va sans dire, pedalava encosta acima. Como a Ménagerie se tornou uma das residências, digamos, de campo, do Presidente de República, encontram-se nesta zona, distribuídos pelos caminhos e alamedas que a rodeiam, vários carros de polícia, cujos ocupantes matam o tédio mirando... as ciclistas; ao fim de algum tempo, eu já os conhecia, cumprimentava-os ao pedalar. E, claro, lançava-me encosta abaixo, pelo lado direito, prevenindo-me de algum preguiçoso que, depois de cortar pela beira do Canal, se atravessasse à minha frente. Não queria travar mas chegar o mais longe possível antes da primeira pedalada, uma distância muito variável, consoante o vento, favorável, contrário, lateral, forte, fraco... Seguia na direcção do Lago de Apolo, passava à frente dele, muito devagar, de pescoço torcido à direita, para admirar o palácio, seus lagos, estátuas, arbustos e turistas. (Há muitos anos, durante uma formação em Versailles, na hora do almoço, enquanto os colegas se fechavam numa pizaria, caminhei por ali, vendo um grupo de crianças a brincar dentro do lago, completamente gelado, enquanto caíam pesados farrapos de neve.) No Inverno as estátuas são embaladas numa tela esverdeada que as protege das intempéries. E as torna não menos belas... Dali à Petite Venise, o meu ponto de partida, é um instante. Completava assim a primeira volta: que não durara menos de quarenta e cinco minutos. Geralmente percorria mais duas vezes o perímetro do Canal. No entanto, nas épocas em que o terreno se encontrava mais enxuto, não olvidemos que Versailles foi construído num pântano, substituía uma das voltas pela excursão através do parque, que tem rebanhos de ovelhas, prados com vacas e cavalos, campos de milho, bosques, alamedas conduzindo à Horta do Rei ou à Aldeia da Rainha... E caminhos como este.

Estou a escrever de memória, não tenho a certeza se a fotografia mostra árvores de folha caduca. (Lembro-me da hera subindo pelos troncos.) Creio todavia que há muitos ramos coloridos e outros já sem folhas. As cores dominantes são o verde e o ruivo com, aqui e além, pequenas manchas douradas. O ouro é da luz ou das folhas?... De ambas, decerto... (Espero não deformar a imagem.)

Em Portugal quase todos os bosques são constituídos por pinheiros e eucaliptos, tornando-se portanto, com a erva e os fetos, mais verdes no inverno do que no verão; pode contudo ser de um dos caminhos que percorri este ano através do Minho. No outono, em Versailles, também nos podemos – quase – perder através de túneis de ramos e folhas... Como este. No parque há faias, freixos, tílias, plátanos, aveleiras, carvalhos, castanheiros e numerosas outras variedades de folha verde na primavera e no verão, colorida de maneira patética e luminosa no outono e, no inverno, ainda colorida, embora de maneira subtil: à beira de todo o Canal, as tílias, podadas, expõem à luz uma fechada vermelha constituída pelos rebendos das futuras folhas. Neste tipo de floresta as minhas estações preferidas são o outono e o inverno.

Inúmeras vezes prolonguei o passeio à beira do Canal até ao momento em que, com o pôr do sol, o real e o imaginário se confundem. O lusco-fusco... Mas não mostrará esta fotografia um nascer do sol?... A vida citadina raras vezes nos proporciona a contemplação da alvorada. Claro que, sobretudo no Inverno, nos levantamos todos muito antes – porém raro assistimos ao espectáculo. Devo o nascer do sol, quantitativamente, a um espaço de tortura – o último liceu onde dei aulas. Várias vezes cada ano, juntas as necessárias condições, hora e estado do tempo, no instante em que atravessava o parque de estacionamento, muito comprido, vi, lá ao fundo, o vermelho jorrar através do céu. Momento de euforia antes do horror. Costumava dizer a outros condenados, único comum reconforto, este liceu tem três coisas boas, os colegas, o nascer do sol e... o Carnaval. Mas isto já é outra conversa... (Para além de ser passado.) E cheguei à estação de Versailles.

2 comentários:

  1. Fantástico! O que uma simples fotografia desperta na Manuela, recordaçoes, emoções,cores...o Zé, claro, com o seu talento também tem culpa.

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  2. Muito bem, Manuela. Este belo texto provocou-nos saudades da tua outra viagem mais longa.A tua receita é simples para quem possua os atributos necessários: poder de observação e memória visual prodigiosos (nem as árvores de folha caduca escaparam, uma capacidade extraordinária para verbalizar o que a memória arquiva ou o que os olhos estão vendo... junte-se o dom de efabular, q.b., leve-se ao fogo da imaginação criativa e - já está - um romance ou (também seria uma boa ideia)uma nova série para o Estrolabio publicar. Parabéns Manuela, parabéns José - belo resultado final.

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