sábado, 20 de novembro de 2010

Noctívagos, insones & afins: Partidocracia

Carlos Loures

Sabemos o que significa partidocracia - poder, domínio, autoridade dos partidos. Num sentido mais lato, governo dos partidos. Num sentido ainda mais lato, ditadura de partidos. Se pretendermos aprofundar a vertente prática do conceito, veremos que geralmente são dois os partidos que se alternam no poder. O filósofo espanhol Gustavo Bueno, criador do «materialismo filosófico» (e do qual aqui tenho falado a propósito do telelixo), diz que «a partidocracia constitui uma deformação sistemática da democracia», pois, cada um dos partidos do poder «tem sistematicamente que atacar o outro». Esta situação de guerra permanente entre os dois partidos alternantes, esconde uma realidade cruel – a de que são faces da mesma moeda. Não se trata aqui da guerra entre esquerda e direita ou entre conservadores e progressistas. Luta-se não por princípios ou por ideais (esses, no fundo, são os mesmos), mas por lugares privilegiados. As oligarquias partidárias digladiam-se pela conservação ou pela tomada do poder, mas no fundo, graças à tal «engenharia endogâmica» de que já falei - criadora de uma verdadeira oligarquia - o poder está sempre nas mesmas mãos. Este sistema duocrático vigora em Portugal e em quase todos os países onde existe a democracia formal e parlamentar. Os eleitores podem, no entanto, conservar a ilusão de que vivem numa verdadeira democracia.

Em 1991, o Partido Socialista (que por essa altura ainda se preocupava com este tipo de questões), organizou um colóquio sobre o tema «Democracia ou Partidocracia», orientado pelo Professor Eduardo Lourenço, em que participaram, entre outros, os Professores Alfredo Margarido, Fernando Pereira Marques(colaborador do Estrolabio), António Reis, Manuel Vilaverde Cabral, Guilherme de Oliveira Martins, João de Almeida Santos. Uma revista «de reflexão e crítica» que, pela mesma época, a Fundação José Fontana editava, a Finisterra, publicava algumas dessas comunicações. Eram, na sua maior parte, intervenções de valioso conteúdo, reflectindo a profunda capacidade de autocrítica que o Partido Socialista apresentava há menos de vinte anos. Embora já se começasse a esboçar a criação do «bloco central», como era diferente a parte do PS que reflectia, o hemisfério activo do seu cérebro, diferente de um PPD-PSD preso à herança de Francisco Sá Carneiro, homem que não produziu uma ideia que valha a pena recordar, mas que apesar disso, conseguiu ser a cabeça mais brilhante do partido que co-fundou. O que prova não ser a ausência de ideologia que fragiliza uma organização partidária que lute pelo poder. O PSD nunca a teve e nunca lhe sentiu a falta; o PS tinha-a, mas tem estado a desembaraçar-se de algo que só servia para atrapalhar. Como se faz aos trastes velhos, a ideologia socialista foi parar ao sótão.

Com efeito, como estamos distantes, dezoito anos depois, desse tempo em que, ape
sar de já haver um ala inclinada a uma «visão prática» da política partidária, receptiva a cedências ideológicas, havia ainda uma pujança intelectual que se perdeu, se dissolveu na voragem de compromissos, comunitários e não só – embora a maioria das pessoas que constituíam essa elite ainda sejam, felizmente, vivas. Hoje, apesar da guerra das palavras e das denúncias mútuas de corrupção, de criação de clientelas, de caciquismo, de corrupção – acusações que, na maior parte, não serão injustas – os dois partidos são praticamente iguais. E quando digo praticamente, é isso mesmo que quero dizer. Na prática, para o que é importante, na perspectiva dos governados, não se nota diferença sensível entre um e outro partido. Diferenças, se as há, só em meras questões de estilo.

Seria excelente que um Deus ex machina, como acontecia nas comédias e tragédias do teatro renascentista, descesse sobre esta cena de tragicomédia que estamos a viver, e entre outros actos de justiça, reorganizasse o leque político português, simplificando-o e clarificando-o. Assim, por exemplo:

a) - num partido neo-liberal organizar-se ia a grande massa de militantes e apoiantes do PS e do PSD (talvez mesmo franjas direitistas do PC e «esquerdistas» do CDS);
b) - num partido social-democrata, os actuais militantes do PS, do PSD, do PCP e do BE, que querem transformar a sociedade, mas sem uma ruptura violenta;
c) - num partido socialista, os que querem que os meios de produção e a riqueza por eles criada estejam inteiramente ao serviço da comunidade, mesmo que para tal haja que fazer uma Revolução;
d) - talvez se tivesse de arrumar alguns democratas-cristãos separadamente - os mais ligados à sacristia e ao Vaticano do que à eclesia, porque estes últimos, os verdadeiros cristãos, estariam dispersos pelos outros partidos;
e) – haveria, além destes e obviamente, todos os partidos e movimentos que os cidadãos livremente quisessem criar.

O Deus ex machina, que surgia nos palcos ou nas arenas movido por engenhosos maquinismos (Leonardo da Vinci concebeu alguns) descido por cordas, à força de braços, de roldanas e manivelas, solucionava intrincados problemas que os autores tinham criado ao longo dos enredos, intrigando os espectadores que se acumulavam nos teatros ou nos pátios de comédias - «como é que eles se vão sair desta?», interrogavam-se. Pois o deus descido à corda resolvia tudo – afinal a pastora era a uma princesa, o conde despótico, era apenas uma alma amargurada e um ser bondoso, a duquesa bondosa era a megera que tinha tecido toda a venenosa intriga. O príncipe desposava a pastora-princesa e tudo se resolvia. Aquele deus que saía rangendo da urdidura, pendurado em cordas, punha as coisas na devida ordem. Nós não temos disso e assim, vemos estes dois clones irem tomando conta de tudo, sempre zangados, denunciando as trapaças um do outro (essas, sim, quase sempre reais) parecendo «inimigos para sempre», tão diferentes, tão iguais.
Eduardo Lourenço, em texto da Finisterra (nº.8, Primavera de 1991), compara a construção da Democracia ao trabalho, incessantemente recomeçado, de Penélope, tecendo a mortalha de Laerte, pai de Ulisses. Podíamos também associar a essa construção a punição eterna de Sísifo, talvez ainda mais adequado à situação que vivemos – rolar até ao topo de uma montanha um pedra que, chegada aí cai pela encosta, sendo necessário recomeçar a tarefa. Com uma diferença, a nossa pedra nunca chegou ao topo, embora depois da Revolução de Abril tivéssemos a ilusão de que a tínhamos conseguido levar até lá. Aqui entram em jogo as perspectivas de cada grupo político. Para os «socialistas» e «social-democratas» a pedra está no cimo quando ganham eleições. Para mim e para os que pensam de forma similar, a pedra só esteve mais abaixo quando vivíamos em ditadura. Com uma diferença: nessa situação ninguém alimentava a ilusão de ter rolado a pedra até ao topo da montanha. Não tenho saudades da autocracia. Mas as coisas eram mais claras.

Eduardo Lourenço, com a limpidez que caracteriza o seu discurso, diz na revista já citada: «Enquanto o tecido democrático assentar quase exclusivamente nos mecanismos de representação partidária, enquanto esse sistema não for contrabalançado por outras formas de representação social, a de associações, grupos, clubes de reflexão, ou outras formas de expressão activa da sociedade civil, o reino da «partidocracia», mais ou menos nocivo, é inevitável:» (…) «O único remédio contra uma certa e inevitável «partidocracia» é a democratização em profundidade da sociedade civil, a subida do nível de autonomia individual, a delegação cada vez mais consciente da nossa parcela de poder e do seu controlo. A Democracia é um círculo vicioso quando o cidadão abdica por simples rito a sua responsabilidade nas mãos alheias para que elas exprimam, reforcem vida à mesma Democracia. No fundo o que é a «partidocracia» senão a quintessência dessa abdicação?» Gostava muito de ouvir a opinião sobre o mesmo tema de Eduardo Lourenço, agora, dezoito anos depois de estas palavras terem sido escritas.

A «partidocracia» instalou-se de armas e bagagens e domina completamente a vida política, económica e social do País. Tito de Morais, num discurso parlamentar do 10º aniversário do 25 de Abril, dizia que se a engenharia é «matéria de engenheiros, a saúde da competência dos médicos e a Igreja da responsabilidade dos sacerdotes, a política, por sua parte, é assunto de que só os políticos se devem ocupar.» Na altura a frase caiu mal, pois afinal só tinham passado dez anos sobre o tempo em que as assembleias de trabalhadores, de bairro ou de escola, tinham poder. Numa perspectiva democrática, isto continua a ser um disparate; mas lá que reflecte a práxis em vigor, disso não há dúvidas.

E quem é que, tendo chegado às cadeiras do poder, quer saber de perspectivas democráticas?

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