Carlos Loures
No convívio com franceses, apercebi-me de que, muitos anos depois da ocupação alemã ter acabado, persistiam em vastos sectores da população, nomeadamente nas camadas mais pobres, ódio e preconceito contra os judeus. Ouvimos, lemos, vemos filmes sobre as o heroísmo da Resistência, mas a outra face da moeda foi o colaboracionismo. Porque durante uma ocupação ou uma ditadura, à maioria das pessoas oferecem-se duas possibilidades. Resistir ou colaborar.
O conceito de resistência abrange um vasto leque de opções que vai desde a distribuição de panfletos à luta armada contra o invasor. Colaborar é também conceito abrangente, indo desde não fazer nada, aceitando as ordens de quem manda, até à denuncia dos resistentes. Em Portugal, durante o período da ditadura, grande parte da população colaborou, mais que não fosse com a sua passividade, embora houvesse quem preenchesse as fileiras das forças repressivas ou se alistasse na Legião Portuguesa. Como se sabe, houve também quem resistisse.
Estamos a falar de coisas diferentes. Resistir em Portugal, contra a ditadura, ou em França contra o ocupante alemão, significaram graus de risco não comparáveis. Aqui, houve quem fosse assassinado, houve prisões prolongadas, torturas, represálias. Em todo o caso, muitos dos que resistiram, sobreviveram para narrar o que lhes aconteceu. Em França, fuzilamentos, campos de concentração e câmara de gás, depois da prisão e da tortura, foram a regra. A sobrevivência, foi a excepção.
Vêm estas considerações a propósito de um filme estreado recentemente em França, “La rafle” (“A Rusga”). Realizado por Roselyne Bosch, decorre em 1942 e conta uma história que até agora foi tabu – a rusga do Velódromo de Inverno de Paris, onde foram concentrados mais de 13 mil judeus, mulheres e crianças na sua maioria. Às quatro horas da madrugada de 16 de Julho de 1942, teve início a operação. Os polícias franceses receberam ordens para ir de casa em casa actuando «com a máxima rapidez, sem palavras inúteis e não fazendo qualquer comentário». Os solteiros foram transferidos para Drancy, a norte de Paris, escala prévia para a deportação para os campos de concentração alemães. As famílias ficaram no Velódromo, situado junto da Torre Eiffel.
No meio de um ruído infernal de choro e gritos, mais de oito mil homens, mulheres e crianças, sobreviveram sem água e sem comida durante cinco dias. Alguns conseguiram fugir. Os outros foram levados para campos de detenção e daí para Auschwitz. Do Velódromo, demolido em 1959, só resta uma pequena placa evocadora do que aconteceu naquele Verão de 1942 e da rusga apenas ficou uma fotografia na qual se vêm as camionetas em que as famílias foram transportadas. Como se quisessem apagar a memória.
“La rafle”, com um elenco onde se destacam Jean Reno e Mélanie Laurent, permite lembrar essa página negra da história recente de França e recuperar a memória perdida de um episódio histórico escamoteado durante anos. Só nos anos oitenta, houve tímidas referências nos livros escolares. Em 1995, Chirac reconheceu a responsabilidade francesa na deportação maciça de judeus: «A loucura criminosa do ocupante foi, sabemo-lo, secundada por franceses, pelo Estado francês.» disse num discurso histórico. Este vergonhoso episódio não ocorreu na chamada “França Livre”, sob o regime do marechal Pétain, mas na zona ocupada. É verdade que os invasores exigiram que lhes fossem entregues judeus franceses para os campos de trabalho. Contudo, foi iniciativa francesa a de nesta rusga incluir menores de 16 anos. Como no filme se salienta, a intenção foi a de não ficarem com o problema dos órfãos.
Resistir ou colaborar? É um dilema terrível para quem tem de tomar a decisão. Resistir implica abdicar de uma vida normal ou até abdicar da vida. Colaborar, nem que seja pelo silêncio, significa para quem tem consciência, envergonhar-se de olhar o espelho, mas permanecer vivo. Numa situação-limite, muitos optam por colaborar, fingindo que resistem. Fique claro que não estou a extrapolar uma realidade tão dramática para aquela que estamos a viver. Comparar esta democracia, mesmo chocha como é, com a ocupação nazi ou até mesmo com o salazarismo, seria faltar ao respeito devido à memória dos muitos que deram a vida pela liberdade.
Mas não terminarei sem uma referência à nossa realidade - Mutatis mutandis, na nossa cinzenta situação e na minha opinião, a dicotomia coloca-se assim: colaborar, é apoiar o Governo (seja ele do PS ou do PSD) ou atacá-lo na perspectiva do «maior partido da oposição» (seja ele o PSD ou o PS). Resistir, é recusar e denunciar este simulacro de democracia que encobre a oligarquia que, em nome dos valores democráticos, nos tiraniza.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Pergunto-me se este filme não terá a ver com um livro que li há uns dois ou três anos, publicado pela Dom Quixote intitulado "Chamava-se Sara", da autoria de Tatiana de Rosnay e cuja história se refere exactamente a esse episódio que eu não conhecia.
ResponderEliminarA autora do livro é jornalista e guionista. É bem capaz de ser esta história.
ResponderEliminarÉ isso, o guião do filme é inspirado no romance de Tatiana de Rosnay, "Sarah's Key" ("Chamava-se Sara", na edição portuguesa).
ResponderEliminar