domingo, 14 de novembro de 2010

O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade –26 por Raúl Iturra.

(Continuação)

A monstruosa instrução sobre ser bons pais disseminada por educadores na Alemanha de 1860 teve pelo menos 40 edições. Este facto, levou-me a concluir que a maior parte dos pais leram esse manual escrito por docentes, leitura feita de boa fé. Pais que puniam os seus filhos, batiam-lhes desde o início das suas vidas, por serem ensinados que o castigo educava a ser bom cidadão. 40 Anos depois, esses filhos, já pais, fizeram o mesmo com os seus descendentes. Nem sabiam o que faziam. Nascidos 30 ou 40 anos antes do Holocausto, essas crianças mal tratadas e traumatizadas aderiram a Hitler, adularam-no e fizeram dele um guia. Isto é, a meu ver, o resultado de uma infância desgraçada/infeliz sentida desde muito cedo nas suas vidas. A crueldade experimentada foi transferida para seres emotivos coxos de afeição. Incapazes de desenvolver qualquer empatia pelo sofrimento dos outros. Passaram a ser bombas de tempo para matar, sem consciência, aguardando uma oportunidade para punir e matar, de transferir para outros a raiva que tinham por causa das suas tristes vidas. Hitler forneceu um bode expiatório legal. Podiam assim, agir para deitar fora os seus tristes sentimentos.


As recentes descobertas sobre o cérebro humano, podem levar-nos a uma mudança radical sobre o que pensamos acerca das nossas crianças e das formas como as tratamos. No entanto, como sabemos, os velhos hábitos perduram. É preciso, pelo menos duas gerações de pais jovens, para mudar, libertando-se do jugo pesado que herdaram, essa “sabedoria” de bater nos próprios filhos. Duas gerações até ser impossível dar uma palmada “inadvertida” à criança. Duas gerações até que o novo conhecimento entre para evitar essa “inadvertida” palmada, dada sem “pensar”.

Há a crença de que a correcção ao longo do tempo muda hábitos, sem detrimento da educação. Opiniões somente passíveis quando se pensa que o que acontece na infância, cobra-se na vida adulta. Os nossos espertos (em educação) citados, também sofreram na sua infância a punição paterna, punição que pesou bem mais do que o seu saber erudito, saber que, apenas, ajudou a colocar a afectividade de uma outra forma: virada do avesso!

Esta minha ideia, lançada detalhadamente no meu livro Paths of Life, de 2005, talvez demonstre a imensa importância que dou e adscrevo à educação infantil e porque lhe são tão significativos os primeiros dias de vida, semanas e meses. Debato-me, não pela transferência da minha experiência para os pais, bem pelo contrário. Do que uma criança traumatizada ou negligenciada necessita é de encontrar “apoio” ou uma testemunha avisada dentro do seu círculo pessoal. Testemunha que somente pode ajudar se entender as privações afectivas pelas que a criança passou, sem brincar com esses sofrimentos. É disseminar a informação adequada de quem sabe contextualizar o acontecido com uma criança, que faz dessa pessoa uma testemunha que está a cumprir uma missão. É o que vejo em mim mesma: essa é a minha missão, testemunha do entendimento da dor do mais novo.

Durante um tempo lato, a significância desses primeiros dias de vida da criança, mais tarde adulta, não tem sido considerada pelos analistas nem pelos psicólogos. Em vários dos meus livros, tenho chamado à atenção sobre esta matéria, ao estudar as biografias de ditadores como Hitler, Stalin, Ceaucescu e Mao, demonstrando como reviviam, de forma inconsciente, em adultos, já no universo da política e do poder, as dores da infância. No texto que agora escrevo, quero, no entanto, que esta temática não seja focalizada na história, no passado. Estou convicta que várias áreas da vida prática podem ajudar-nos melhor se fixarmos a nossa atenção na infância tal como ela é hoje. Vejamos alguns exemplos:

A área mais evidente de negligenciar voluntariamente o factor infância, como tenho constatado, é o sistema penal. As estatísticas revelam que 90% dos presos norte americanos foram abusados na infância. Esta estatística é altamente acusatória se considerarmos os factores de impedimento e repressão na vida social. Certamente, o número de pessoas aprisionadas deveria, assim, corresponder a 100%. Uma criança cuidada, agasalhada e respeitada, nunca é uma criminosa. A maior parte dos delinquentes, não confessam os sofrimentos passados na sua infância. Apesar destes factos, temos, ainda, esta alta e eloquente percentagem. Para nossa desgraça, pouco ou mesmo nada tem sido feito no sentido de introduzir este saber nos programas para reabilitar pessoas presas. Como é evidente, pode-se publicamente apreciar que as prisões e penitenciárias de hoje estão longe de serem essas tormentosas, ameaçadoras e obscuras fortalezas do Século XIX. Pelo menos, perante o conhecimento público. Todavia, uma questão fica sem explicação: qual o motivo que faz de um ser humano, um prisioneiro, um criminoso? Esta dúvida levanta-nos outra: qual o traço fisionómico que na sua tenra idade o orientou para estas desventuras? E, ainda, uma terceira: o que causará a reincidência? O que o faz cair uma e outra vez dentro das mesmas desventuras e, raramente, tomar uma atitude firme para mudar. Estas interrogações levam-nos a uma última: o que é que é possível fazer para evitar a reiteração da delinquência? Para responder a si próprio, sobre as questões acima colocadas, o prisioneiro deve ser encorajado a falar, escrever e pensar sobre a sua vida em criança e partilhar esses factos em terapia de grupo.



No meu mais recente livro, reporto a um programa para este tratamento, no Canadá. Devido a trabalhos em grupo, um grande conjunto de pais, que tinham abusado sexualmente as suas filhas na infância, entenderam, pela primeira vez na vida, que as suas acções tinham sido criminosas. Foi de grande importância para eles entenderem o seu comportamento abusivo, falarem da sua própria infância em frente de outras pessoas em quem confiavam. Assim, aprenderam a saber que tinham transferido um trauma da sua própria infância de forma quase automática, essa sua experiência traumática da qual nem tinham consciência.

Estamos habituados a calar os sofrimentos da nossa infância. Pelo que é frequente que se haja de forma cega e inconsciente. Foi a oportunidade de falar sobre os seus sofrimentos em crianças o que os levara a libertar-se da sua prisão silenciosa do trauma, da sua cegueira perante o facto. Com esta terapia em grupo e esse falar, ganharam o seu crescimento passando a serem adultos capazes de se protegerem de si próprios para nunca mais serem criminosos com as crianças. Infelizmente, este tipo de programas é ainda uma excepção. O outro que eu conheço, decorreu numa prisão de Arizona, onde violentos criminosos foram capazes de falar da sua infância, com a colaboração da terapia em grupo. O grupo ajudou a entender o que estava escondido na sua lembrança de criança. Tenho visto vídeos destas sessões de grupo, tendo ficado impressionada pela mudança das expressões faciais destes homens após a terapia. Estes programas ajudariam, se realizados com frequência, a poupar dinheiro dos contribuintes. Estes programas não são caros na sua organização, e o perigo da incidência no mesmo tipo de delito, diminui de forma muito significante. Face a estes resultados, é duplamente surpreendente que não tenham sido introduzidos em mais prisões.

Pode-se apreciar uma semelhante falta de interesse por estes programas na esfera da vida política. Quanto mais o perigo da nação ameaça o nosso mundo, mais perigo existe do aparecimento (surgimento) de ditaduras. Ditadores que são apenas um subgrupo de pessoas que, na sua infância, estiveram expostos a ameaças mentais e físicas. Investem toda a sua energia e talento inatos, em reprimir qualquer ameaça de desamparo que possa tornar a acontecer. Desenvolvem uma mania persecutória odiosa, para com um grupo da sociedade com o qual se sentem ameaçados (Judeus, intelectuais, grupos étnicos). Representam para eles, de forma viciosa e simbólica, os seus antigos perseguidores, os que devem superar ou erradicar a todo o custo, para o ditador sobreviver. Gastos militares altamente dispendiosos são usados para se protegerem de um perigo que já não existe, que já cessou, excepto no seu imaginário. Imaginário inacessível a argumentos lógicos conectados com a fantasia do perigo infantil. Para curar este problema convertendo-o em atitudes construtivas e produtivas, é preciso conhecer um bom troço da história da infância do ditador, bem como saber muita teoria da dinâmica infantil em geral. Infelizmente, é difícil que isto aconteça. Como, também, é difícil encontrar uma pessoa preparada para desobstruir o resultado de tão difícil pesquisa. A tendência na população, por medo ou adesão, é confiar nas medidas destrutivas de confronto directo em vez de abordar directamente a comunicação, o que seria um meio bem mais frutífero. Estamos a lidar com um indivíduo perigoso que deveria ser “retirado da circulação” social antes de matar (mais) pessoas, ou estar consciente que o grupo étnico é apenas um símbolo.

[1] Miller, Alice, (1998 em alemão) 2005: Paths of Life, 1998, Pantheon Books, New York. A Introdução pode ser lida em: http://www.vachss.com/media/righteous/page_miller.html e comentário do livro, em: http://primal-page.com/ampaths.htm

(Continua)

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