Carlos Loures
«Onde estavas no 25 de Abril?», pergunta Baptista Bastos com a sua voz rouca. Oportunamente, responderei. Faz hoje 35 anos, por esta hora, uma boa parte dos portugueses sentia-se triste – a festa da liberdade acabara – falava-se no advento de uma «democracia musculada», fosse lá isso o que fosse. Um tal tenente-coronel Ramalho Eanes, que fora do meio militar ninguém conhecia, aparecia nos noticiários como o senhor desta guerra – óculos escuros, patilhas compridas, frases curtas e com uma pronúncia estranha, não auguravam nada de bom. A comparação com Pinochet era inevitável. Quem seria o «gajo» de óculos escuros? Soube-se depois que também estava ligado ao chamado «Grupo dos Nove» e que fora encarregado de encabeçar o movimento militar de 25 de Novembro.
Havia portugueses que respiravam de alívio – aquilo a que nós chamávamos «festa», chamavam eles «caos», «bagunçada», «anarqueirada»... Passados 35 anos, já é possível falar dessa data (quase) sem rancores, nem falsos clichés. O meu sentido de justiça obriga-me mesmo a saudar a transformação produzida em Eanes – o bisonho tenente-coronel é hoje um homem culto e ponderado. Seria uma opção para a Presidência. Não votaria nele, mas seria uma figura respeitável. É matéria ainda sensível, apesar da distância temporal que nos confere já uma apreciável perspectiva histórica do acontecimento. Vou cingir-me à síntese dos acontecimentos e a uma ou outra opinião pessoal, emitida sem prosápias de analista, na perspectiva do simples cidadão que tem, por enquanto, o direito, e até o dever, de opinar. Um documento emitido por oficiais da esquerda militar em 8 de Julho de 1975, em pleno «Verão Quente» - «Aliança Povo/MFA - para a construção do socialismo em Portugal», enchera de esperança o povo de esquerda. No mês seguinte, um documento provindo da esquerda moderada tentou aplacar o incêndio que lavrava de Norte a Sul – o chamado «Documento dos Nove», sem aludir ao anterior, recusava o modelo socialista da Europa de Leste, bem como o modelo social-democrata da Europa Ocidental. Propugnava um socialismo alternativo, apoiado numa democracia pluralista, respeitadora das liberdades, direitos a garantias fundamentais. Note-se que o primeiro documento também não defendia o comunismo do tipo soviético e, por isso, não colheu grande simpatia entre as hostes pecepistas; mas deu corda às esperanças da esquerda extra-parlamentar que inundou as ruas com as suas manifes entusiásticas.
As posições extremavam-se. No Norte as sedes dos partidos de esquerda, eram assaltadas e destruídas. Os confrontos multiplicavam-se com o ELP (Exército de Libertação de Portugal), criado pelo inspector da PIDE, Barbieri Cardoso, presidido pelo general António de Spínola e sediado em Espanha, a levar a cabo alguams acções contra os militares e contra os partidos de esquerda. O espectro da guerra civil assolava o País. Passado um «Verão quente» e um princípio de Outono agitado, o início de Novembro fora marcado com as notícias vindas de Angola – recrudesciam os combates entre as forças do MPLA, reforçadas com unidades cubanas, e as da UNITA, apoiadas por tropas sul-africanas e mercenários portugueses. Em 11 de Novembro, foi proclamada a independência. Enquanto decorriam as cerimónias em Luanda, na presença do almirante Rosa Coutinho, que cessava as suas funções de Governador e delegava o poder nas mãos de Agostinho Neto, escutava-se nas imediações da capital o troar das peças de artilharia, pois os combates prosseguiam. Os ecos dessa luta ouviam-se também em Portugal.
No dia 12, o Palácio de São Bento, sede do Governo e da Assembleia Constituinte, era cercado pelo trabalhadores da construção civil que sequestraram os deputados durante várias horas. No dia seguinte, uma grande manifestação, com centenas de milhares de pessoas, percorria as ruas da capital, exigindo o advento do Poder Popular. No dia 20, o Governo auto-suspendeu as suas funções exigindo que as forças da ordem garantissem o normal funcionamento das instituições. No dia seguinte, no Ralis (Regimento de Artilharia de Lisboa), realizava-se um juramento de bandeira sui generis – os soldados juraram e saudaram a bandeira de punho cerrado e erguido.
A temperatura atmosférica, matizada pelo chamado «Verão de São Martinho» era amena. A temperatura política era escaldante. O abismo aproximava-se quase sem que para ele caminhássemos. No dia 25, uma gota fez transbordar a taça da paciência conservadora – o Conselho da Revolução tomou medidas que a muitos desagradaram – substituiu alguns comandantes militares, dissolveu a base-escola de pára-quedistas de Tancos. Tropas pára-quedistas ocuparam de imediato as bases da Ota, de Tancos e de Monte Real. Elementos do Ralis posicionaram-se nas principais entradas de Lisboa, controlando estrategicamente os acessos à capital.
O presidente Costa Gomes decretou o estado de sítio. Chamou Otelo Saraiva de Carvalho ao Palácio de Belém. Otelo, recorde-se, graduado no posto de general, comandava o COPCON (Comando Operacional do Continente), a força operacional mais bem apetrechada e potencial foco de uma reacção violenta e quiçá decisiva da esquerda militar. Otelo foi à reunião com Costa Gomes, sabendo que, na prática e sob outra designação, estava a ser detido, retido, impedido de actuar, use-se o eufemismo que se quiser para prisão, porque na realidade foi isso que aconteceu.
Abro um parêntesis, para contestar acusações que têm sido feitas a Otelo. Somos amigos, nessa medida serei algo suspeito. Reconhecendo que poderá não ter sido ao longo do processo revolucionário (e, sobretudo, depois) um modelo de ponderação, ao deixar-se deter em Belém, evitou uma guerra civil. Já ouvi imbecis e atrasados mentais a acusar o Otelo de estupidez. Reajo sempre mal, pois sei que lhe devemos que o 25 de Novembro não se tenha tornado numa data negra e não se tivesse saldado por muitas, muitas mortes. Otelo pediu a demissão do COPCON que ficando decapitado permitiu que o Regimento de Comandos da Amadora, quase sem constrangimentos dominasse os pontos estratégicos de Lisboa, acabando por controlar a situação. Há 35 anos, a esta hora a «festa» acabara. Voltava-se à «normalidade». Pergunto aos militares de Novembro - todos ou quase todos militares de Abril. A normalidade que temos, mais de três décadas depois, era a que sonhavam em Abril de 74? E em Novembro de 75 foi esta a normalidade que quiseram proporcionar ao País?
Eu, onde estava? Estava com mais algumas dezenas de companheiros, concentrados em local próprio, bem armados (mas mal municiados) prontos a entrar numa contenda que mal chegou a esboçar-se. Esperáva-mos ordens para partir para onde nos dissessem. Na noite de 25, uma camarada, oficial da Força Aérea, chegou com a notícia de que tudo estava perdido. Despimos os camuflados e vestimos as roupas civis que afinal eram as que nos competiam. Os militares regressavam aos quartéis. Os civis saiam dos quartéis. Começámos de imediato a dispersar de forma ordenada um a um. A tristeza era muita. A normalidade voltara.
A festa acabou, pá.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
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Eu estava mais o Rocha em frente da Rua Castilho à espera de "ordens" tuas.Mas eu que todas as semanas estou com um dos elementos mais conhecidos do Grupo dos Nove, posso dizer-te que é com grande tristeza que olham para o que se passa,mas impotentes. Cavaco Silva, nem sequer se deslocou à Gulbenkian na homenagem promovida a Ernesto Melo Antunes, um homem que parou a direita e a carnificina que se adivinhava e que impediu que o PCP volta-se à clandestinidade. Teríamos tido mais uns anos de sistema musculado, quiçá mais uns anos de fascismo. E a descolonização teria sido muito mais tarde e ainda pior do que foi.Estou grato à vida por me ter proporcionado tantas emoções.
ResponderEliminarFartei-me de chorar nesse dia e ainda hoje me dá vontade quando o lembro. À noite estive em frente aos estúdios da RTP no Lumiar e noutros sítios, como o Carlos. Mas o narrador aqui é ele não sou eu. Quanto ao Otelo, corroboro o que ele diz. O próprio Otelo me contou essa história.
ResponderEliminarÉ verdade a história do Otelo, foi ele que não quiz uma guerra civil. Quem lhe telefonou foi o Vitor Alves a partir do palácio de Belém, mandou-o apresentar-se, a ele, que comandava a força melhor equipada.Mas os capitães fizeram o que tinha que ser feito. Uma democracia de tipo ocidental, ir mais além não era sua função.Depois fomos nós, uns mais outros menos que estragamos tudo.
ResponderEliminarFoi um dia triste, Augusta Clara. Não sei, Luís, se aquilo de que precisávamos era desta «democracia de tipo ocidental». Tenho consideração por um ou outro homem do «grupo dos nove», mas acho que em 25 de Novembro traíram o espírito do 25 de Abril. Foram eles que tiraram o que o MFA nos tinha oferecido. Ñós não estragámos nada - limitamo-nos a seguir o caminho que eles abriram, servindo consciente ou inconscientemente os interesses dos poderosos. Tal como em 1926, quando Gomes da Costa quis põr cobro ao caos e abriu caminho aos que trouxeram a ordem que reina nos cemitérios e que mantiveram a «normalidade» durante 48 anos. As intenções deles não me interessam - o resultado foi mau. O 25 de Novembro se para alguns deles correspondia ao ideário que sempre defenderam, para outros devia ser motivo de vergonha. E refiro-me àqueles que, entre os nove, mais estimo.
ResponderEliminarÉ isso mesmo, Carlos. Eu não estava a querer dizer mais nada para não pôr achas na fogueira, mas eu não me sinto culpada de nada. Eles sim que desvirtuaram tudo aquilo por que se arriscaram a fazer o 25 de Abril. Espero que tenham remorsos. O 25 de Novembro, para mim, será sempre um dia de má memória, um dia que eu detesto.
ResponderEliminarPrecisar,é capaz de não ser o termo correcto, mas acho que os capitães não poderiam ter ido mais além.Digo isto vezes sem conta ao meu amigo.É uma dúvida existencial que nunca mais os abandonará.
ResponderEliminar"António Ramalho Eanes, o coordenador das operações militares de 25 de novembro de 1975, que travou uma tentativa de tomada do poder pela extrema esquerda após o 25 de abril de 1974, lembrou em entrevista à agência Lusa as expetativas de há 35 anos e considerou que a democracia atual não é suficientemente representativa.
ResponderEliminarEm 1975, disse Eanes, «acreditava-se, talvez um pouco utopicamente, que a democracia (...) iria permitir que o país avançasse, evoluísse, se modernizasse, se tornasse mais justo e mais solidário. Pensava-se que tudo isso decorreria normalmente da democracia. Infelizmente não aconteceu». Pois não, digo eu.
Sim, já ouvi o mesmo pesoalmente, e a maioria dos militares vive em desgosto profundo por isto não ser o que sonharam.Mas eu não perco a oportunidade de lhes agradecer.
ResponderEliminarChego tarde, ou cedo, conforme a perspectiva, a este ponto de encontro de recordações.
ResponderEliminarMilitava, então, no MDP (por lá ficara depois do 25 de Abril, era mais ao meu jeito, embora, estando na tropa, me dividisse por várias "frentes"). Pertencia à direcção de Lisboa, coordenava várias freguesias. Na minha estava-se a fazer um trabalho interessante, sem excessos, com bom-senso (apesar de episódios como o de o Copcon contactar a Comissão de Moradores, para que alojasse uma família que o MRPP tinha "abrigado" numa "casa abandonada", pois alguém fora tomar banho e caíra - com a banheira - no andar de baixo...).
Na altura, fiquei furioso com o eclodir desses acontecimentos: tinha 28 anos, era tido por muito "amadurecido", mas... não para encaixar aquele murro no estômago. Qual maturidade!
As diversas responsabilidades que não hesitara em assumir, cheio de genica... transformaram-se num novelo pardo de que não encontrava a ponta.
Pelo sim, pelo não, passei "à clandestinidade" (atenuada, mas vigilante), durante algum tempo.
No dia seguinte fui mais um na enxurrada dos "desmobilizados", o que me facilitou as coisas, nesse aspecto...
Hoje, considero que o Otelo foi assisado, o PCP também. Melo Antunes, ultrapassado, soube reagir com rapidez e usar a sua rara inteligência.
Continuo convicto de que foi uma bem sucedida acção "de comandos" (... não "dos comandos", quiçá tão manipulados como os "páras"), uma armadilha bem montada. Sabemos por onde costumam andar os especialistas nesta matéria.
Vejam este excerto do artigo (bem informado) da Wikipedia:
«According to James Schlesinger, following the death of Patrice Lumumba, the new Prime Minister of the Congo, Cyrille Adoula, began a meeting with President John F. Kennedy with the question "Ou est Carlucci?" (Where is Carlucci?), who first responded "Who the hell is Carlucci?" and then sent Dean Rusk to find him.»
Não duvido de que haja quem, do "grupo dos nove", se tenha sentido traído logo nesse dia, outros assim se sentirão hoje. Eles próprios (convicção minha) foram submersos por um belo amontoado de falsas informações. Muita coisa vergonhosa (como acções violentas sobre presos), para alguns - de escassos escrúpulos e nula dignidade - de "pequena monta", se fez "à sombra" e em nome do "grupo".
Depois, deixaram-se enrolar pela habilidade de uns tantos políticos, até se virem postos de parte pelos novos "democratas" e por outros que não hesitaram em rasgar os seus "pergaminhos" da resistência, em vassalagem a outros "valores".
Mas olhe-se para o que se passou e passa em grande parte dos países que se emanciparam do colonialismo – não só em África!, para aquilo em que se transformaram verdadeiros heróis de movimentos de resistência e emancipação, dos mais diversos pontos do globo. Tenho a certeza de que não serei, neste grupo, o único a conhecer o sabor amaríssimo de receber a notícia de que antigos camaradas de luta, nossos amigos, se traíram, se mataram entre si, enquanto os mais vivaços atafulhavam os bolsos de dólares.
Que admira, pois, que gente honesta se deixe levar por "artistas" profissionais?
Não é por acaso que Mandela, Allende, mais uns poucos, apenas, se agarram à nossa memória.
Paulo Rato
Talvez traga aqui ao Estrolabio algumas citações do testemunho de Pinheiro de Azevedo. Muito do que diz em «O 25 de Novembro sem máscara» poderá ser fruto da sua imaginação. Mas as explicações que dá fazem todo o sentido. Houve estranhas cumplicidades, coisas que nunca foram explicadas.
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