quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Os Carlos e a Igreja. Darwin e a Teoria da Evolução

Augusta Clara de Matos



Quando embarcou no Beagle, Charles Darwin lia a Bíblia, segundo testemunhos dos marinheiros do navio. Por isso, não é de admirar o episódio relativo a Karl Marx e à sua obra O Capital que o filósofo quis fazer chegar às mãos de Darwin. Consta mesmo que lhe terá querido dedicar o segundo volume. Mas Darwin não aceitou, respondendo de forma evasiva que era um biólogo e não percebia nada dessas coisas.

O curioso é que Marx sabia perfeitamente que Darwin não era nenhum revolucionário nem partilhava as suas ideias. É, pois, presumível que lhe admirasse o trabalho, a honestidade e o rigor com que o levara a cabo.

Embora não sem críticas, Marx e Engels admiravam Charles Darwin.

Darwin não aceitou porque era um burguês oriundo de uma família de Inglaterra bem instalada na vida a que não interessavam sobressaltos sociais. E, no entanto, deu origem a uma das maiores revoluções da História das Ciências.

Se, de acordo com Thomas Kuhn, as revoluções científicas são aqui entendidas como episódios de um desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é substituído total ou parcialmente por um novo com ele incompatível, representando o paradigma um conjunto de teorias, regras e métodos comummente aceites pela comunidade científica, a Teoria da Evolução de Darwin cumpre perfeitamente os requisitos necessários à ruptura que provocou.

No entanto, as resistências manifestadas pela própria comunidade científica, aquando da mudança dum paradigma para outro, foram atestadas pelo próprio Darwin no final da sua Origem das Espécies: Embora esteja absolutamente convencido de que as opiniões que se encontram neste volume (…), não espero de forma alguma convencer os naturalistas experimentados cujas mentes estão cheias de uma multiplicidade de factos, todos eles vistos, durante longos anos, de um ponto de vista diametralmente oposto ao meu.

A religião católica tinha ganho força em Inglaterra por oposição à fase do Terror da Revolução Francesa, mas Charles Darwin tinha a seu favor não só o facto das ideias da evolução disporem já dum terreno fértil para germinarem, graças a esforços anteriores de outros cientistas, como Maupertuis com a sua noção da existência de uma relação entre hereditariedade e origem das espécies, Mendel com a sua própria teoria da hereditariedade, La Mettrie com a ideia de selecção, que, na sua época, não tiveram condições de aceitação, bem como de ser ele próprio um académico reconhecido.

Darwin era, pois, um homem bem enquadrado no tempo em que vivia. Estes factores foram, assim, decisivos para a aceitação da sua teoria e a publicação da Origem das Espécies (1859), uma notável compilação e análise de todos os dados recolhidos, cuja primeira edição de 1250 exemplares se esgotou no próprio dia em que foi posta à venda.

Mas Darwin não se tornaria um revolucionário de um momento para o outro. Foi a sua longa viagem a bordo do Beagle que o fez ver a Natureza com outros olhos. Essa viagem foi longa e, de algum modo, nada pacífica. São conhecidas as sua acesas discussões com Robert FitzRoy, o comandante do navio, bem mais conservador do que ele próprio.

Relatava Darwin na sua autobiografia: O carácter de FitzRoy era singular, com muitos traços nobres: era cumpridor dos seus deveres, quase demasiado generoso, corajoso, determinado, indomitamente enérgico, e um amigo fogoso de todos sob o seu domínio. (…) Infelizmente FitzRoy tinha muito mau génio. Demonstrava-o não só por acessos repentinos, mas também por ataques de mau humor mais longos contra aqueles que o tinham ofendido. (…) Os oficiais de patente mais baixa, quando se revezavam de manhã, costumavam perguntar “se se tinha servido muito café quente”, o que significava como é que está o humor do Comandante? (…) Tivemos várias discussões porque quando se zangava perdia completamente as estribeiras. Por exemplo, no início da viagem na Baía, no Brasil, ele defendeu e elogiou a escravatura, que eu abominava, (…). Isso enfureceu-o (…). Pensei que seria forçado a abandonar o navio; (…)Mas após algumas horas FitzRoy mostrou a sua magnanimidade costumada ao enviar-me um oficial com desculpas e um pedido que continuasse com ele.


O Beagle, um bergantim de 235 toneladas fez-se ao mar em 1831 para o estudo das costas da Patagónia, Terra do Fogo, Chile e Perú, para visitar algumas ilhas do Pacífico e realizar medições cronométricas em redor do mundo. FitzRoy estudou as características dos indígenas da Terra do Fogo e incluiu um detalhado vocabulário dos seus dialectos num apêndice à história da viagem.

E essa viagem foi decisiva para a formulação da Teoria da Evolução Orgânica das Espécies por Acção da Selecção Natural que mudaria, para sempre, o paradigma existente, a versão segundo a qual as espécies teriam aparecido na Terra todas ao mesmo tempo, isto é, a versão da Bíblia que consubstancia o criacionismo, cuja aceitação como ciência tem sido reivindicada pelos sectores mais conservadores da sociedade, ainda que iminentes figuras da própria igreja católica se tenham já pronunciado a favor da teoria da evolução como teoria científica e não como “posição de fé” que aqueles pretendiam que fosse.

O que Charles Darwin provou foi que as espécies apareceram no planeta evoluindo a partir umas das outras numa progressão de complexidade crescente, tendo a Natureza seleccionado as características que melhor se adaptavam às condições de sobrevivência. Era isso a selecção natural. E é, a partir dela, que se verifica a divergência orgânica contínua, ao longo do tempo, que conduz à diversificação e ao aparecimento de novas espécies

Não foi a ideia de evolução, já anteriormente aceite como um processo dirigido para um fim, que provocou o grande sobressalto. Todos os evolucionistas anteriores a Darwin admitiam, como afirma Thomas Kuhn que a “ideia” do homem e da fauna e flora existentes sempre estivera presente, desde a criação da vida, em princípio na mente de Deus. O que o provocou esse sobressalto foi esta ideia exclusiva do próprio Darwin, segundo a qual uma selecção provocada pela luta pela sobrevivência teria dado origem ao próprio homem. Era este o elemento perturbador.

É importante salientar que, nessa altura, não era ainda conhecida a noção de gene, o que veio a acontecer apenas no ano de 1900. Não se podendo, então, saber que a selecção natural actua sobre os genes e não sobre as características visíveis, podemos imaginar quão árduo, exaustivo e profundo teve que ser o trabalho de observação e análise de Charles Darwin para, a partir dele, poder extrair as conclusões que o levaram à formulação da sua teoria.

Que outros factos e estudos, para além da centelha sempre presente em qualquer descoberta científica, contribuíram para que Darwin avançasse com confiança nas suas investigações?

Por um lado, ele tinha tomado conhecimento da obra de Thomas Robert Malthus (1766-1835), On Population (1798), segundo a qual, enquanto a população cresce em progressão geométrica, os alimentos crescem em progressão aritmética o que pressupõe, logo à partida, a dizimação de um número considerável de indivíduos em períodos de fome que seriam de prever. A esta causa da diminuição de elementos de uma população, poder-se-ia acrescentar o aparecimento de pragas, epidemias, etc.

Ouçamos o próprio Malthus: sendo a potência da população de ordem superior (progressão geométrica), o crescimento da espécie humana só pode ser comensurável com o aumento dos meios de subsistência (progressão aritmética), pela operação constante da forte lei da necessidade, actuando como um obstáculo sobre a potência maior (…) Entre plantas e animais a visão do assunto é simples. Eles são impelidos por um instinto poderoso para o aumento das suas espécies, e este instinto é interrompido não por raciocínio ou dúvidas sobre como prover à sua descendência. Consequentemente, sempre que haja liberdade, a capacidade de crescimento é exercida e os efeitos da superabundância são depois reprimidos por carência de espaço e alimento, o que é comum a animais e plantas e, no que respeita aos animais, por se tornarem presa dos outros.

A outra contribuição deveu-se ao desenvolvimento dos estudos da Geologia, através dos quais, o conceito de evolução passou da área da filosofia para a das ciências. Os Princípios da Geologia (1830) de Lyell proporcionaram a Charles Darwin a certeza de que a terra se mantém em estado de constante mudança e que essa transformação regular da matéria é regida por leis. De igual modo, os estudos paleontológicos mostraram que espécies anteriormente existentes tinham desaparecido dando origem a outras. Posteriormente, a datação dos terrenos pelo Carbono 14 veio confirmar em pleno estas certezas.

Tal com acontece hoje, e como referi em artigo anterior, com a atribuição abusiva a estruturas sociais do conceito do ADN, que apenas existe no núcleo das células vivas como constituinte dos genes, o mesmo aconteceu com o darwinismo.

Neste caso, foi o seu primo Herbert Spencer que, mais tarde, aplicou o darwinismo à sociedade, dando origem à teoria do darwinismo social que ainda hoje vigora, dissimulada sob outras designações que caracterizam os sectores neoliberais da sociedade actual. Um abuso do darwinismo que, de acordo com a designação atribuída pelo próprio Charles Darwin, era apenas uma teoria da evolução orgânica, nada tendo a ver com o social.

O que nesse darwinismo social se queria demonstrar era que, também, neste campo, são os mais aptos quem vence, ou seja, que só os mais capazes, sem que se perceba muito bem em que é que isso consiste, conseguem singrar na vida e armazenar riqueza. As correntes fundamentalistas católicas nos EUA é nisto que se baseiam.

Ironicamente, acabamos por ter que dar razão a Trotsky. Ou estamos em revolução permanente ou o poder, todos os poderes se acabam por apropriar das ideias que traziam uma semente de futuro, de utopia e arrastá-las na corrente venosa dos regimes.

Curiosamente, foi a teoria de um homem defensor da estabilidade social, que se tornou tão revolucionária a ponto de mudar o paradigma vigente até então.

A Igreja sofreu um abalo tremendo: alguém supostamente defensor do seu dogma abanava-lhe os alicerces. E as caricaturas de Darwin, configurando um macaco, surgiram por toda a parte.

Mas nem num caso nem noutro, os Carlos da nossa história lhe cederam à chantagem. Um, Marx, porque nenhum credo a isso o obrigava; o outro, Darwin, porque o seu trabalho de estudo e investigação lhe tinha provado à saciedade que a Natureza não obedecia aos ditames da religião, mas apenas às suas próprias leis.

E, no entanto, não o podiam classificar como um revolucionário marxista. A Teoria da Evolução singrou, pois, como teoria científica, suplantando o criacionismo pura e simplesmente porque uma teoria científica tem que se deduzir de factos provados e foi o que Charles Darwin levou anos e anos a fazer.

A Igreja e os sectores neoconservadores bem podem continuar a tentar impor o criacionismo como ciência, invocando supostas opções políticas dos adeptos da Teoria da Evolução, que nós faremos tudo para lhes lembrar como Darwin recusou uma honra provavelmente irrecusável por muitos intelectuais do seu tempo: uma dedicatória em O Capital que Karl Marx lhe oferecia, como prova de respeito e admiração pela sua obra científica.

Bastou-lhe a inteligência, o trabalho e a honestidade intelectual para provocar uma revolução.



Bibliografia


1. Marcel Prenant, Darwin, Ediciones Pueblos Unidos, Montevideo, 1947.

2. Charles Darwin, Autobiografia, Relógio d’Água, 2004 (1887).

3. Richard Dawkins, O Espectáculo da Vida. A Prova da Evolução, Casa das Letras, 2009.

4. Thomas S. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, Guerra & Paz, 2009 (1962).

5. Hernâni L. S. Maia e J. J, Moura Ramos, editores científicos, A Evolução Cósmica e a Origem da Vida , Livraria Almedina.

3 comentários:

  1. Augusta, este texto tão rico é para ler várias vezes e com toda a atenção.Que maravilha, há aqui muitas coisas que são novidade.

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  2. Excelente, excelente, Augusta. Como diz o Luis é um texto para ler várias vezes e é o que farei. Bom trabalho de recolha e de ordenação pedagógica. Um bom naco de prazer para uma pessoa como eu, ferrenho evolucionista e ferrenho anti-criacionista.

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  3. E, agora, quero as críticas. Obrigada.

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