domingo, 28 de novembro de 2010

Para uma redefinição da União Económica e Monetária Europeia: da crítica dos seus fundamentos à crítica da crise actual

I. Crises na União Europeia: o que está por detrás de tudo isto? Para quê tudo isto?




Júlio Mota*, Luís Lopes e Margarida Antunes**




Hoje, existe uma crise económico-financeira mundial, mas existe também uma crise europeia que em parte tem as suas raízes na ausência de líderes políticos com uma outra visão do momento, tal como Jean Monnet e Robert Schuman tiveram há mais de 50 anos atrás. É assim preciso, julgamos, criar aqui um espaço de discussão de uma outra Europa, necessariamente inserida numa economia global, mas com um outro projecto político e económico que lhe seja próprio e assente também na solidariedade entre os seus membros, enfim assente numa visão de conjunto como a expressa por estes dois arquitectos da construção económica europeia.

Com esta sessão, com o tema específico Para uma redefinição da união económica e monetária europeia: da crítica dos seus fundamentos à crítica da crise actual, procuramos precisamente trilhar este caminho. Para isto, pretendemos colocar no centro do debate essencialmente duas grandes vias de análise: 1) os fundamentos da união económica e monetária europeia, os limites da sua própria construção e os contornos específicos que a crise económico-financeira nela assume; 2) na sequência do ponto anterior, as respostas da União Europeia à própria crise, respostas no quadro do seu modelo de referência e da sua arquitectura institucional e que se têm caracterizado pela sua submissão à tirania dos mercados (monetários e financeiros), para utilizar a feliz expressão de Henri Bourguinat utilizada já há quase quinze anos. A partir daqui, importa perspectivar alternativas possíveis ao seu quadro de funcionamento, de modo que a União Europeia seja capaz de responder definitivamente à situação presente.

A economia global em termos económicos, políticos e culturais, tem sido tradicionalmente expressa por um triângulo, em cujos vértices se encontra os Estados Unidos, a União Europeia e durante muitos anos o Japão ladeado pelos chamados Tigres Asiáticos. Hoje, a imagem do mundo mantém-se, mas com uma diferença de fundo: em vez do Japão está agora a China, contudo com um modelo económico e político completamente diferente, a colocar questões novas, a exigir respostas novas, nem uma nem outra a serem concebíveis na arquitectura económica actual da União Europeia.

Três pólos, três visões do mundo, também três modelos de resposta à profunda situação de crise que a economia global e cada uma das economias nacionais atravessam. A China continua a lidar com os seus excedentes comerciais, com as suas políticas de expansão económica e de expansão sobre o Mundo, através da produção, exportação de bens e de empréstimos ao exterior. Joga com as suas regras próprias de um capitalismo de Estado ao nível da produção e da repartição de rendimentos, podendo-se até mesmo falar de um regime de forte acumulação primitiva. Este regime também tem sido possível graças à intensidade da deslocalização das indústrias do Ocidente para a China, à crescente subcontratação industrial e ao enorme volume de investimentos directos estrangeiros, tudo como forma de aproveitamento das suas características: os baixos salários, os ritmos intensíssimos de trabalho e a cada vez maior capacidade tecnológica, muita dela devida a estas mesmas reconfigurações dos processos produtivos ao nível mundial da responsabilidade principal das multinacionais americanas e europeias. Tudo isto é assim feito no quadro da desregulação da economia mundial neoliberal, o que permite à China criar as suas próprias regras, crescer com elas e inserir-se intensamente no comércio mundial, este a ser feito sob a égide da Organização Mundial do Comércio. Tudo isto foi também possível, porque do outro lado esteve um país — os Estados Unidos — que fez do aumento do consumo e do endividamento a base da sua efémera estabilidade nos últimos vinte anos. Os dois países tornaram-se os principais “promotores” desta economia global, pois asseguraram em conjunto o equilíbrio macroeconómico necessário para que o modelo fosse funcionando: os Estados Unidos como “promotor” do lado da procura e a China como “promotora” do lado da oferta.

Devido a isto, a China manipula ainda uma poupança nacional em moeda externa, as suas receitas líquidas de exportação, que não utiliza para promover o consumo interno, preferindo antes limitar a sua capacidade de importação. “Congela” assim muitos milhares de milhões de dólares de exportações possíveis com destino a China, quer fossem elas da Europa, quer dos Estados Unidos. “Congelando-se” as exportações possíveis dos outros, limita-se também o crescimento da produção destes, dos seus investimentos produtivos, perdem-se assim postos de trabalho efectivos e potenciais no Ocidente. Todos estes novos trajectos da globalização são vistos pelos governos ocidentais como o resultado da lógica da concorrência à escala mundial e, como tal, supostamente não questionáveis.

Num segundo vértice, temos os Estados Unidos a procurar inverter o modelo económico dos últimos vinte anos, que o conduziu a ele, mas também a todos nós, à crise económico-financeira presente. Para além de haver um trabalho de diagnóstico da situação actual, feito mercado a mercado, sector a sector, onde se procura encontrar as causas possíveis para tudo isto, a Administração Obama tem levado a cabo uma política séria de retoma económica e de regulação da economia americana. A intencionalidade desta política é visível quando o Presidente Obama tem quase necessidade de convencer senador a senador, eleito a eleito, da importância dos seus projectos, tal é o peso dos grupos de pressão contra toda e qualquer reforma que ponha em causa o status quo. Foi assim com a reforma na saúde; foi assim com a regulação dos mercados financeiros; foi igualmente deste modo com a política de re-industrialização do país e com a política de reconversão de algumas infra-estruturas públicas; tem sido assim também com a oposição à política chinesa de manutenção do yuan extremamente subavaliado. Toda esta actuação política se distingue daquela que se vai passando na União Europeia.

Esta, depois de um período curto de políticas económicas anti-crise, volta a estar submetida como talvez o nunca tenha estado à tirania dos mercados financeiros e tomando como objectivo prioritário não o relançamento económico, não o crescimento económico, não a criação de emprego a tempo pleno e decente, não a intensificação da investigação e da melhoria da formação da sua população, não os investimentos maciços a pensar nas gerações futuras e no bem-estar das gerações presentes, mas antes a redução drástica dos défices públicos e do valor da despesa pública relativamente ao PIB. O desejo de apenas querer “acalmar os mercados”, “saber comunicar com estes”, tornou-se o grande objectivo da política económica europeia; o objectivo prioritário e único de estabilidade de preços na zona euro, inscrito nos Tratados, e cegamente procurado até ao despoletar da crise, em 2008, parece até esquecido.

Os dias de hoje têm revelado, com efeito, uma nova faceta do modelo da economia neoliberal que tem sido seguido na União Europeia, têm mostrado de forma mais explícita e brutal que são os mercados financeiros a determinar aspectos fundamentais da política governativa. O sistema, apesar destes novos contornos, continua a ser o mesmo e enquanto continuar assim, não se consegue pôr cobro definitivo à evolução da crise, pois as mesmas causas geram os mesmos efeitos. A este nível, a Europa parece estar a fazer o que o mais incompetente dos professores nunca faria: dar ao aluno a correcção do seu próprio exame.

A liquidez injectada de forma continuada pelo Banco Central Europeu para salvar da falência o sistema financeiro e o dinheiro cedido por este aos bancos privados a baixo custo têm estado a ser utilizados contra alguns Estados-membros, na aquisição de títulos da dívida pública com taxas de rentabilidade implícita elevadas, às quais não são alheios os ataques especulativas às dívidas soberanas destes países. Com isto, é agora a economia real que está a ser atingida com os planos de austeridade, considerados necessários para inverter o sentido dos mercados, para os “acalmar”. Com este comportamento inesperado dos mercados financeiros, os governos têm-se endividado ainda mais. À utilização do orçamento para salvar os bancos e diminuir as tensões que se criavam na economia real, às medidas económicas anti-crise, ao funcionamento dos estabilizadores automáticos, há que acrescentar agora o aumento do serviço da dívida. Tem-se dado assim um aumento excessivo e perigoso do movimento no mercado de obrigações da dívida pública, uma vez que a União Europeia não se tem preocupado em regular os mercados financeiros, onde a especulação ontem como hoje não está sujeita nem a constrangimentos nem a limites. Tem-se aberto assim o caminho para se criarem novas bolhas especulativas nos mercados financeiros com o novo objecto de ataque dos especuladores: a dívida soberana de cada país e, para se ser mais eficaz, tomada uma a uma.

A zona euro foi o alvo privilegiado e isto porque, como cada um dos Estados-membros tem valores de referência a cumprir e regras estabelecidas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento a respeitar, é possível aferir a existência de desvios na sua situação orçamental e na sua respectiva evolução. Perante a degradação das contas públicas de todos eles, a capacidade de alguns países poderem assumir a sua dívida tem sido assim colocada em dúvida pelos mercados financeiros. A escolha de países da zona euro é tanto mais intencional quando se sabe que o não cumprimento por parte de vários países pode pôr em causa a concepção se não mesmo a própria existência desta união monetária. É isto mesmo que condiciona a capacidade de resposta dos Estados-membros e das instituições da União Europeia, dado o quadro institucional onde estão inseridos.

As indefinições de muitos, a falta de vontade de alguns, como a Alemanha, criam divisões entre o Norte e o Sul da Europa e por cada compasso de espera, por cada momento de indecisão, os especuladores criam mais espaço de actuação, o valor dos títulos soberanos dos estados atacados caiem, as taxas de rentabilidade implícita disparam e a dívida pública aumenta.

Por isto, hoje, pela lógica pura dos mercados financeiros e das opções políticas das instituições europeias, os países da zona euro percorrem três vias diferentes no acesso ao financiamento da sua dívida pública. Na primeira via, a mais rápida, circula a França, a Alemanha e os países da Benelux: os títulos da dívida pública a 10 anos são remunerados a taxas inferiores a 3%; na segunda via, de velocidade média, circulam a Itália e a Espanha com as suas faixas em perigo de degradação eminente, estando os seus títulos a 10 anos a ser remunerados a cerca de 4% e, enfim, na via mais lenta circulam Portugal e a Irlanda com taxas próximas de 6,5% e a não se saber o que lhes querem fazer a seguir. Fora da auto-estrada, na zona de paragem urgente, está a Grécia com os seus títulos a serem remunerados a cerca de 13% e a ser reparada da sua avaria pelas “oficinas” da União Europeia e do FMI.

Hoje, a Grécia, e a amanhã? Portugal? A Irlanda? A Espanha? E depois? Quem vai a seguir…? E o silêncio das instituições europeias continua. Estas instituições e os governos têm mostrado uma de duas coisas: ou uma incapacidade colectiva de agir e reagir de forma atempada e antecipada, regulando todos estes tipos de mecanismos, ou uma vontade de nada alterar como se na União ainda se tenha pudor em pôr em causa a eficiência dos mercados. É como se tudo esteja a acontecer como se nada de especial tenha ocorrido, a não ser passar-se agora a considerar que a má situação orçamental presente se deve exclusivamente à má gestão dos dinheiros públicos por parte de alguns governos europeus!

A submissão à tirania dos mercados financeiros não é nem política, nem económica nem socialmente aceitável e os seus efeitos são bem evidente desde a assunção clara do modelo da economia neoliberal pela União Europeia no início dos anos 90: um aumento insatisfatório da produção, taxas de desemprego elevadas, investimento produtivo insuficiente, precarização nos mercados de trabalho, desvalorização sucessiva da protecção social. A crise poderia ter constituído um bom momento de reflexão de tudo o que tinha sido feito, um bom momento de inverter o sentido das coisas. Mas, ao contrário, parece ter-se reafirmado ainda mais a lógica do modelo até agora seguido. Assim, em vez de políticas económicas anti-cíclicas consistentes e sustentadas, assiste-se a políticas fortemente pró-cíclicas de consolidação orçamental e de moderação ou mesmo de redução salarial, tudo isto, relembre-se, em nome do “bom interesse” dos mercados financeiros. Como resultado, a produção não mostra nenhum sinal consistente de recuperação, a taxa de desemprego mantém-se nos mesmos patamares e surgem de forma ainda mais preocupante taxas de desemprego extremamente elevadas dos jovens (15-24 anos), muitos deles com elevados níveis de formação. Como se assinala na OCDE e na OIT, há a possibilidade de se estar a criar uma geração perdida para o mercado de trabalho, perdida para a sociedade. Trágica ironia! Em nome das gerações futuras e de acordo com o modelo da economia neoliberal, muitos têm também justificado estas mesmas políticas de redução dos défices públicos, mas o que dirão eles agora perante isto, perante aquilo que a aplicação do próprio modelo está a sujeitar estas mesmas gerações? Perante a destruição de garantias de um futuro que passa pela inserção no mercado de trabalho, pelo respeito do direito ao trabalho, até mesmo do direito à cidadania?

Em vez de estar em marcha a construção da Europa dos cidadãos, a Europa das solidariedades, o que parece estar agora em marcha é a construção da Europa do medo, medo de perder o emprego, medo de não conseguir emprego, medo de não vir a ter cuidados de saúde, medo de não vir a ter reforma, medo de não poder vir a suportar os encargos de ter casa, em suma, medo.

A realidade actual impõem assim que se realize um verdadeiro debate democrático quando às opções de política económica possíveis. Como se assinala num recente manifesto intitulado Manifesto de Economistas Aterrados .

(Continua)

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*Prof. Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

** Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra


5 comentários:

  1. E a senhora Merkel empunha a batuta. Também está aí um texto do Dr Rolf Damher, nosso convidado a discordar dessa política...

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  2. Ora aí está, bem explicadinho por especialistas na matéria, que não alinham com os ectoplasmas que aparecem nos média, o que eu, como simples leigo, mas atento, ando a tentar explicar, resumidamente, há uns tempos.
    Um grande obrigado!
    Paulo Rato

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  3. Mas com isto estamos todos de acordo, com o que não estamos de acordo é com a renúncia à democracia, para resolver estes problemas.

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  4. Boa análise, particularmente em relação à China e aos Estados Unidos, embora o esforço destes em combater a subvalorização do yuan ainda não tenha dado em nada, para mal do resto do mundo. No que à Europa diz respeito é confuso, preconizar que não se ligue à consolidação orçamental e se parta para políticas económicas anti-cíclicas é uma impossibilidade; não interessa aos países líderes da Zona Euro.E é preciso dizer como.
    Em relação à necessidade de debate sobre a política económica, não contem com o Estrolabio. Se quiserem um discurso social para pagar dividas ou um discurso político para pedir crédito bancário, ainda se arranja.

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  5. Ora até que enfim que li um texto de economia verdadeiramente importante que não se inibe de dizer logo no princípio que o maior problema da Europa é a "ausência de líderes políticos com a ausênciua de visão do momento". De certeza que vou ler com o mesmo agrado a continuação deste texto escrito por "quem sabe", não por quem "quer mostrar saber".

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