sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Caos e democracia

Carlos Loures



Na passagem do século XV para o XVI, um escritor alsaciano de língua alemã, Sebastian Brant (1457-1521), um jurista formado em Basileia, escrevia, em 1494, uma obra, Das Narrenschiff ou Stultifera navis, na versão em latim. Obra que, sem grande mérito literário, teve uma grande repercussão não só na sua época como nos tempos que se seguiram. Chegou o seu eco até aos nossos dias. Para um escritor menor, ser recordado ao longo dos quinhentos anos que se seguiram à sua morte, não está nada mal.

Grandes artistas como Hieronymus Bosch e Albrecht Dürer, inspiraram-se nesta obra de Brant. Teve epígonos por todo o mundo. Gil Vicente, por exemplo, pensa-se que a poderá ter lido. A ideia central do livro é muito simples – numa era de navegações, a simbologia náutica era uma constante. Assim, Brant fez embarcar numa nave – a Sultifera navis – diversos tipos de loucos, 112 ao todo - todos os loucos do fantástico país da Cocanha, quer dizer, da abundância, numa nave que atravessa a Narragonien (Mattagonia), ou seja, o «reino da loucura». Os passageiros representam todos as classes – clérigos, nobres, mercadores, poetas, camponeses e artífices.

A cada louco, Brant dedica um capítulo do poema o qual, além do prefácio e do epílogo, tem cento e doze capítulos. Brant não de se esquece de si mesmo, referindo-se aos seus méritos e defeitos no prólogo, no primeiro e nos dois últimos capítulos – «O Louco dos Livros» e «Dos Livros Inúteis», falando dos loucos que, como ele gente que ama a sua biblioteca mais do que o saber que ela lhes pode oferecer, transformando-se em coleccionadores de livros, mas, nem por isso, em pessoas mais sábias.

Outros temas interessantes são, por exemplo, «A Apologia do Poeta» e «O Homem Sábio e Prudente», em que faz o elogio de Sócrates (o filósofo grego, claro). Em cada um dos capítulos a obra retrata um vício humano personificado num louco – o louco da moda, o da avareza, o da discórdia, o da luxúria, o da gula, o da inveja, etc. Sobre todos, predomina a tutelar figura de Frau Venere (Vénus). «Das Narrenschyff» é sobretudo um poema moralista e, como tal, nele abundam sentenças bíblicas, aforismos populares alemães portadores da sabedoria conceptual da Idade Média.

Por outro lado, representa-se nas suas páginas uma viva angústia pela trágica situação da Igreja, onde sopravam já os ventos de divisão que resultaram na Reforma, e pela iminente desagregação do Sacro-Império, ameaçado naquela época por poderosos inimigos internos e externos. A Nave dos Loucos de Brant era, portanto, uma mística barca representando a «Civitas christiana» à deriva num mar de loucura e de inovações «sacrílegas», filhas do Renascimento, concebidas a partir das cinzas profanas da Grécia e de Roma. Pela mesma época, o grande pintor brabantino Hieronymus Bosch criava o seu Barco ou Nave dos Loucos, também antes do final da era de Quatrocentos, pintura inspirada pelo poema de Sebastian Brant.

A narrativa de Brant Inspirou também o romance «Ship of fools» da norte-americana Katherine Anne Porter (1890-1980), publicado em 1962 e, em 1965, baseado no livro e com o mesmo título, um filme do genial Stanley Kramer, com Vivien Leigh, Simone Signoret, José Ferrer, Lee Marvin, entre outros. Num paquete de luxo, no ano de 1933, pessoas de diversos estratos culturais e sociais, numa amostragem de um pequeno universo concentracionário, viajam do México para a Alemanha – No decurso da viagem, na Alemanha a situação muda, Hitler sobe ao poder. Alguns dos passageiros, judeus por exemplo, vão alegremente a caminho do holocausto. E chegamos à terceira parte da minha «homilia» de hoje.

A política partidária portuguesa, tal como actualmente se apresenta, afigura-se-me repugnante. Não compreendo como podem as pessoas levar a sério a generalidade da nossa classe política. É gente que não pensa existe no sentido nobre da palavra (pois recebe o pensamento já mastigado pelos seus donos de Bruxelas, de Washington, da Sonae, da Galp, do Espírito Santo …

Max Aub, um grande escritor espanhol (1903-1972) num dos seus deliciosos «Contos Exemplares», diz que as árvores existem, mas não pensam, pondo com esta constatação em causa o princípio de Descartes. Eu diria que estes nossos políticos não pensam e que, a aceitarmos a cartesiana teoria, como não pensam logo não existem. Andam por aí, fala-se muito neles, mas daqui por dez anos ninguém se lembrará deles. De facto, não têm qualquer importância. São meros peões movidos por gente mais ou menos discreta, mas que em todo o caso não goza do protagonismo dos políticos.

Quarta e última parte - vamos à moralidade (ou imoralidade?) da história.

Numa barca cheia de gente alienada, vamos navegando na irremediável direcção do caos. Não seria inevitável, se soubéssemos exigir aquilo a que temos direito, se soubéssemos escolher entre nós os mais capazes de dirigir a barca e de escolher a rota. Mas não. Masoquistas impenitentes, vamos elegendo como aparentes capitães os criados de poderes ocultos ou discretamente afastados da ribalta.

Chegados à ponte de comando, perguntam aos patrões como e para onde devem conduzir a barca, pois nem sequer são eles os timoneiros desta nave que nos conduz ao caos. São simples marionetas. São os rostos e as bocas da corrupção, mas não o seu coração, os seus pulmões. Não nos enganemos com as frases grandiloquentes, mas ocas, com que protestam patriotismo e honra – são coisas que não têm. Se for preciso e der jeito até ajudam a vender a nação a quem der mais. Sempre em nome dos «superiores interesses nacionais». Uma nave de loucos conduzida por crápulas.

2 comentários:

  1. Exactamente. Já quase nem tenho "pio" para o afirmar. Mas é preciso respirar fundo e começar a gritar isto repetidamente.

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