sábado, 1 de janeiro de 2011

Noctívagos, insones & afins: Eduardo Guerra Carneiro

Hoje, presto homenagem a um noctívago que, faz sete anos, mergulhou na noite eterna. Transcrevo parte de um texto sobre Eduardo Guerra Carneiro.Carlos Loures








A frase “Isto anda tudo ligado” já é antiga, mas quem lhe deu vida nova e foros de expressão erudita foi o escritor e jornalista Eduardo Guerra Carneiro, que a usou como título num seu livro de poemas «Isto Anda Tudo Ligado». E este título, como disse Jorge Listopad, numa nota publicada na «Colóquio-Letras», que aparentemente é um «slogan banal», tem sido centenas de vezes utilizado, por escritores, jornalistas, por músicos (como Sérgio Godinho) e não só. Creio que muitos que o utilizam já nem o relacionam com o grande poeta e a maravilhosa pessoa que foi o Guerra Carneiro.


Não é o meu caso. Fui muito amigo e companheiro de luta do autor destas palavras.


Na fotografia abaixo, tirada em Novembro de 1962, em Coimbra, da esquerda para a direita podemos ver o Egito Gonçalves, eu, o Eduardo e o António Cabral, ainda sacerdote católico na altura. O Eduardo, de perfil, parece ausente, alheado, coisa que lhe acontecia com frequência.


Fomos ali reunir-nos por questões políticas e culturais – a expansão do Centro de Cultura Ibero Americana, que pretendíamos alargar editando um boletim periódico multilingue (nos idiomas da Península a que juntaríamos resumos em francês e inglês). Mas voltemos ao Guerra Carneiro e ao seu livro.




Não era em globalização, na famosa globalização de que hoje tanto se fala, que, quando em 1970, publicou o livro, por acaso numa colecção onde eu também publiquei uma colectânea de poemas, que o Eduardo pensava. Era na dimensão dialéctica do Universo na qual, de facto, tudo se relaciona e interage. Música, literatura, desporto, política, vida quotidiana, são fragmentos indissociáveis de uma mesma realidade que por comodidade e hábito de classificar, dividimos em compartimentos.


Fui passar esse fim do ano 2003 a Vilamoura (onde só consigo ir sem ser no Verão) e, no dia três de Janeiro de 2004, um sábado, estava na esplanada do Paulo China a ler o Expresso quando me saltou aos olhos o nome do Eduardo numa pequena notícia – Fora encontrado morto na madrugada do dia um num pátio subjacente ao seu terceiro andar. Presumivelmente suicidara-se, adiantava a notícia. Às primeira horas do novo ano. Quando regressei a Lisboa, logo telefonei a um amigo comum, o José Quitério. Sim, confirmou, o Eduardo suicidara-se. Poucos dias antes ao telefone tinha dito ao Quitério isso mesmo, que estava farto, que a vida não lhe interessava. O Zé pensou que fosse apenas um dia mau e que aquilo passasse. Não passou.


A última vez que estive com ele, pouco tempo antes, almoçámos juntos num restaurante perto do meu escritório. Trouxera-me alguns dos seus livros que eu não tinha ainda lido e combinámos que iria colaborar num projecto editorial da empresa. Estava bem disposto, recordámos os velhos tempos. Mas acabou por não fazer o tal trabalho - foi-me telefonando e adiando. Até àquele dia.


As coisas não lhe tinham nunca corrido bem. Interrompera os estudos universitários por lhe parecer inútil o curso que frequentava. Profissionalmente, jornalista, um bom jornalista, diga-se, tinha de fazer muita coisa de que não gostava. Na vida privada, casamentos falhados, o refúgio no alcoolismo e, sobretudo, o suicídio inexplicável da sua filha, a Catarina, destruiu a sua capacidade de resistência, provocaram-lhe o cansaço da vida que confidenciou ao Quitério. A soma de tudo isto resultou numa rápida viagem de três andares até ao cimento do pátio.


Quando estas coisas acontecem, ficamos sempre com uma sensação de culpa, com a ideia que poderíamos tê-las evitado conversando, acompanhando, ajudando. Porque, no fundo, quando estas coisas acontecem, todos temos, de facto, culpa por ajudarmos a manter um mundo em que tudo anda ligado, mas no qual não sabemos conservar entre nós pessoas como o Eduardo que, depois de desaparecerem, verificamos tanta falta nos fazerem.

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