terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Histórias de Suicídios Famosos em Portugal - 5 - por José Brandão

Júlio César Machado (1835-1890)



Júlio César da Costa Machado nasceu em Lisboa, em 1 de Outubro de 1835, filho de Luís Maria Cesário da Costa Machado e de Maria Inácia Machado. Aos 3 anos de idade foi com a mãe para uma casa de campo da família, na Durruivos, nas cercanias de Óbidos. Ali, «resguardado entre as saias da mãe, das tias e de um tio frade», ali pároco, cresceu o escritor numa imensa saudade pelo pai, quase sempre ausente. Refere-se-lhe desta forma, numa das suas melhores páginas:


«Vi aparecer um homem embuçado numa capa, alto, elegante, de uma fisionomia suave e inteligente, mãos compridas e delgadas, dedos finos, e o indizível quê da sedução nos olhos, no sorriso, nas maneiras... imagine-se a fusão da aristocracia da raça, aristocracia natural, com a burguesia digna e séria: foi o que eu senti, sem poder, sem saber exprimi-lo, olhando para meu pai e para minha mãe. Nem era fidalgo nem descendia de nobres, meu pai; mas tinha a nobreza que dão a inteligência, a fisionomia, a figura; havia nele o quid da superioridade, o tom especial do gosto. Minha mãe era uma mulher forte, que parecia moldada em bronze florentino, daquelas mulheres como que destinadas a alcançarem que suas filhas pareçam ser suas irmãs, por tal modo se conservam moças como as mulheres do Egipto, núbeis aos 10 para os 11 anos, avós aos 24, bisavós aos 26. Quantas vezes hoje, quando se admiram, os que me conhecem de há muito, por notarem que eu aguento, na minha movediça e fatigante vida que tenho levado, certa inverosímil mocidade, me lembro eu de minha mãe que aos 60 anos não tinha cabelos brancos e lhe atribuo o segredo desta serôdia e estranha primavera aparente! A nossa época é uma democracia de trabalho: a base dela reside no que produz cada um; aquele que adquira uma ideia, uma só ideia que seja, em toda a sua vida, vale mais do que o outro que se haja conservado na sombra, como numa fábrica, uma roda que não gira à vontade de quem a emprega: mas dantes não era assim; era a idade dos cadetes, dos filhos da viúva, dos herdeiros ricos, que começavam o viver novo, despendendo os haveres paciente e laboriosamente ganhos pelo viver velho.

«Meu pai vivera, divertira-se, despendera três fortunas no florescer daquela quadra. Em parte, porque lhe fosse natural, e em parte, porque a vida elegante dá um cunho especial, como que a sua marca, o seu selo, aos que a cultivam. Tudo nela respirava a cavalheiro; era um gentlemen, era um senhor. Olhava para ele pasmado, encantado; que diferença dos sujeitos de sobrecasaca, que apareciam às vezes na Durruivos, o administrador do concelho, o médico da vila próxima, o cónego que vinha visitar o pároco... Nunca vira um homem assim! Não sabia no que mais atentasse, se no bigode longo e assedado, se nos cabelos finos e compridos, se no casaco justo ao corpo, com alamares e debruado a peles, como era a moda de então, se no anel que lhe vi brilhar no dedo, se na capa, se nas botas altas... Direito, ágil, intrépido, cabeça erguida, em tudo o homem costumado a ver satisfeitos os seus desejos, e a quebrar as resistências todas [….]. Não existe a felicidade na sua plenitude, porque no adejar das asas frementes aspira sempre a ir mais longe do que a ilha encantada do momento; aliás, eu poderia dizer que fui feliz naquela noite... Mas a felicidade verdadeira nunca chega a servir senão para se lembrarem dela os que a desgraça instruir. Em todo o caso, a querer pôr em linha de conta o tempo em que em toda a minha vida tenho empregado em dormir, em esperar, em duvidar, em me enganar a mim, em errar, em prever, em evitar estar doente, em o estar deveras, em deplorar penas, que eram bens, e passar por mágoas verdadeiras, em desprezos e ilusões, em derrubar e erguer altares até se desfazerem em pó, talvez não vivesse completamente para a felicidade, absoluta, inteira, completa, mais do que essa hora! Nos compridos dias da Durruivos, ir para meu pai havia sido o meu sonho; e o meu sonho cumpria-se.»


Depois de uma breve passagem pelo Colégio Militar, de onde foge devido aos maus-tratos do professor de Latim, César Machado matricula-se no liceu. Datam dessa época as suas primícias literárias: Estrela de Alva, romance dos catorze anos, será publicado na revista A Semana, de Camilo Castelo Branco. A morte prematura do pai força-o a ganhar a vida com a escrita, tornando-se tradutor efectivo do Teatro do Ginásio.




Em 1844, com a mãe, vai, finalmente, juntar-se-lhe a Lisboa. Quatro anos depois, o empresário Silva Vieira apresentou no teatro do Salitre a comédia em um acto As Calças Listradas. E quando o pano desceu, o público reclamou a presença do autor. Entre os autores, um adolescente de 14 anos agradecia a ovação. Era Júlio César Machado, na estreia da sua carreira literária. Até ao final da vida, o teatro mereceria sempre um lugar de relevo na carreira de homem de letras, que cedo começara. É que ele, como praticamente todos os homens de letras, teve um emprego de sobrevivência, porém apenas a partir de 1864: secretário do Instituto Industrial de Lisboa.

Um dos mais destacados polígrafos da segunda metade do século XIX, jornalista, tradutor, autor de romances, contos e peças de teatro, Júlio César Machado salientou-se sobretudo como folhetinista e cronista.




Em 1852, com apenas dezassete anos, publica o romance Cláudio, confessadamente influenciado pelas Memórias de um Doido, de Pedro Lopes de Mendonça, que viria a ser o seu mestre, tanto no romance como no folhetim; a partir de 1858, César Machado substituiu-o como folhetinista regular em A Revolução de Setembro. Em 1864, ocupa o lugar de secretário do Instituto Industrial de Lisboa. Em 1870, é um dos co-fundadores da Associação de Homens de Letras.


Ao longo da sua vida, Júlio César Machado deixaria uma imensa colaboração dispersa por jornais e revistas como a Revista Universal Lisbonense, o Diário de Notícias, o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, a Revista Ocidental, a Ilustração Portuguesa e o Eco Literário, de que foi co-fundador, em 1886, entre muitos outros. Muitos dos seus folhetins e crónicas de viagem seriam reunidos em volume.




Crítico de teatro durante muitos anos, «sempre de luva de pelica, com o sorriso nos lábios, mas ensinando o bom caminho a escritores e artistas», no dizer de Sonsa Bastos, Júlio César Machado biografou alguns dos mais notáveis artistas da sua época: Tasso, Taborda. Josefa Soller, Isidoro e Sargedas, os mais dos textos saídos na «Galeria Artística/Colecção de Biografias de Actores e Actrizes Portuguesas», da Livraria de A. M. Pereira.




Júlio César Machado escreveu ficções, viagens, comédias e chegou a abordar a comédia-drama. Porém, ontem, como agora, escrever para o teatro não seria uma actividade muito gratificante do ponto de vista financeiro, e o talento dispersou-se-lhe por outros géneros, especialmente o folhetim. Mesmo assim, deixou-nos as peças Amigos... Amigos, provérbio em um acto, O Tio Paulo, drama em três actos escrito expressamente para o Teatro das Variedades e para o cómico Isidoro, cuja biografia publicara em 1859, O Anel da Aliança, comédia em um acto, Amor às Cegas, comédia em um acto levada à cena, aliás com muito sucesso, no Teatro D. Maria II, e Primeiro Deter, comédia-drama em três actos, de parceria com Alfredo Hogan, que Sousa Bastos verbera por ter escrito precipitadamente todas as suas peças, mais interessado na edição que na representação. Outras comédias da sua autoria, no entanto, foram representadas, mas nunca impressas. É o caso de Antes das Eleições e Depois das Eleições, ambas levadas à cena no Trindade.




Estimado e festejado por todos, Júlio César Machado era um «coração de ouro». Camilo Castelo Branco, de quem fora amigo toda a vida — desde o dia em que o visitara na Rua do Ouro, numa dessas estadas lisboetas do romancista, quando este escrevia Anátema — não ocultava o que lhe parecia um «vazio» nos seus escritos: «minguavam em crítica, doutrina, conselho e ensinamento», mas, acrescentava, «essa falta não há-de arguir ao entendimento de Júlio César Machado é uma virtude nele, bondade do seu coração».




Frequentador dos teatros e visita dos camarins, dedicou muitos anos da sua vida a estudar e analisar o fenómeno teatral e conheceu todos os grandes e pequenos artistas do seu tempo.
«Quando, em 1857, a cólera caiu sobre Lisboa, escreve, em tanta maneira foi cortês para com as classes altas, que não atacou senão os pobres. Sucedia-me nessa ocasião uma pequena contrariedade, difícil de vencer — a de estar pobríssimo. Era tradutor do Teatro do Ginásio; dirigia a secção literária de um jornal, Doze de Agosto e era revisor da Revista Universal Lisbonense... Mas, logo que rompeu a cólera, o Teatro do Ginásio fechou, o jornal Doze de Agosto parou, e a Revista Universal Lisbonense morreu. Não se apresentava de um modo propriamente risonho o horizonte, para mim.»




É nessa altura que, apertado pela necessidade, inicia os seus famosos folhetins na Revolução de Setembro, onde substituiu Lopes de Mendonça, que trocava o jornalismo pela política. E o jornal esgotava-se às terças-feiras ou seja cada vez que o seu nome aparecia impresso como autor. Com pseudónimo — chegou a usar simplesmente Carolina! — o êxito era o mesmo, e assim colaborou noutros jornais. Aliás, na construção de pseudónimos utilizou os anagramas como Ochadam e Oiluj, assim como Zzzt, e outros. Mas conheciam-lhe o estilo, procuravam-no, pelo que foi compondo o seu pé-de-meia. Nos folhetins, Júlio César Machado arranjou fartos leitores para os seus livros. E estes tiveram êxito assegurado. Só Contos de Luar teve três edições em oito meses, num total de cinco mil exemplares — importante número para a época. «O mais elegante contista», chamou-lhe Alberto Pimentel. Mas as viagens seriam o seu gozo e, assim, depois de ter publicado um livro um tanto heterodoxo deste género, Passeios e Fantasias, no mesmo ano de 1862 em que saiu Cenas da Minha Terra, no ano seguinte apareceu com Recordações de Paris e Londres, em 1865 com Em Espanha, e, em 1867, com Do Chiado a Veneza, que antecedeu o curiosíssimo Quadros do Campo e da Cidade. Lisboa, apesar de tudo é a grande protagonista da sua obra em livro e em jornal. Lisboa é o cenário privilegiado dos textos e da própria vida de Júlio César Machado.




É de notar que um espírito extrovertido como o deste folhetinista, surpreendentemente, apenas uma vez falou em público. Foi no Colégio Artístico Comercial, que ficava ao Rato, onde proferiu uma palestra sobre Rossini. Convidou-o o director do estabelecimento, José Maria de Andrade Ferreira, seu antigo colega da Galeria Artística e o autor do Curso de Literatura Portuguesa, que Camilo concluiria.




Sousa Bastos, em O Biógrafo, de 15 de Maio de 1880, deixou-nos escrito que, a Machado, «a política meteu-lhe sempre horror, e por isso, possuindo um talento superior e uma popularidade extraordinária, tem até hoje conseguido não ser deputado. Todos os políticos o estimam; ele trata-os muito bem, felicita-os pelos seus triunfos, lastima-os pelos seus desastres, mas afasta-se deles o mais que pode, unicamente porque lhe cheiram a... política.» E no fecho de uma biografia, a cerca de dez anos da sua morte: «Como homem e como literato, Júlio César Machado é a individualidade mais simpática da nossa terra.» No mesmo sentido, Gervásio Lobato, em Contemporâneo, de Abril de 1875, abria o seu artigo publicando que «Júlio César Machado é uma das individualidades mais simpáticas e mais características das nossas letras. Espírito verdadeiramente superior, profundo na sua singeleza, artístico na sua simplicidade, elegante na sua funda filosofia, ninguém como ele pôde atingir entre nós as formas correctas, definitivas e características do folhetim.»


Ironicamente, a sua vida, consagrada à escrita humorística do quotidiano, terminaria num ambiente de tragédia familiar. Dois meses depois do suicídio do filho único, em 1890, no mesmo ano da morte do seu grande amigo Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado, não resistindo à dor provocada pelo suicídio do único filho, pôs termo à vida na sua casa, um terceiro andar do número 2 da Travessa do Moreira, ao Salitre, em Lisboa. Mais tarde a artéria passou a chamar-se Rua de Júlio César Machado, ficando a casa assinalada com uma placa comemorativa da efeméride.


Foi na manhã de 12 de Janeiro, num gesto premeditado. O escritor e sua mulher, Maria das Dores, arranjaram-se como se fossem fazer uma visita. Júlio César chamou a velha criada, Maria José — há mais de meio século ao serviço da família —, e mandou-a à Rua do Ouro, comprar o «Le Fígaro». Quando a criada regressou com o jornal, um estranho quadro a aguardava: o casal jazia no chão, num lago de sangue — o patrão morto e a esposa moribunda. Ambos tinham golpeado os pulsos com tal violência que se viam os ossos. Como espectador daquela cena macabra, o retrato do filho, que propositadamente fora retirado da parede e colocado na mesa, ante a qual tudo se desenrolara. Maria das Dores resistiu. Durante mais de três meses obrigaram-na a lutar com a morte. Ficou-lhe o braço esquerdo paralisado e o luto pelo filho e pelo marido.


O jornalista e escritor vivia obcecado pelo filho. Criara-o, digamos assim, com excesso de enlevo. Estroina, muitos desgostos deu o moço ao pai, acabando por suicidar-se a tiro, dentro de um trem, a 13 de Outubro de 1889, ficando numa agonia que demorou dois dias. Tinha 17 anos. O desgosto prostrou Júlio César Machado e a esposa, que, desde então, até ao segundo acto da tragédia, deixaram de contactar com os seus amigos. Tanto quanto sabemos, antes de o casal cortar as veias, com uma grande raiva, o escritor, em vão, tentou enforcar-se.


O escritor morre, para consternação dos seus contemporâneos, que lhe admiravam o estilo claro e ligeiro, o tom coloquial e humorístico, a atenção aos temas do quotidiano. Ramalho Ortigão, como ele cronista, escreveria mais tarde (in Costumes e Perfis): "Em toda a sua obra, nos folhetins e nos livros, há uma larga claridade hospitaleira de toalha lavada, de jantar servido ao ar livre dos campos".


«Mas como pôde este Júlio, tão alegre, tão moço, sempre tão acostumado a rir, tão interessado pelo mundo, tão apegado à vida que até parecia disposto a não envelhecer jamais, tão delicado e gentil nos seus pensamentos e nos seus actos, acabar sinistramente, num drama de sangue que só de recordá-lo sente a gente o coração constranger-se?» Recordava assim Alberto Pimentel aquele domingo de Janeiro de há um século.


Hoje, podemos vê-lo, em estátua de bronze, da autoria de Simões de Almeida, no Cemitério do Alto de S. João, na capital. Foi essa a maior das homenagens póstumas que lhe prestaram os seus amigos.

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