domingo, 26 de dezembro de 2010

Histórias de suicidios famosos em Portugal - 10 - por José Brandão

Manuel Fernandes Laranjeira (1877-1912) 


Manuel Fernandes Laranjeira nasceu no lugar de Vergada, freguesia de Moselos, concelho de Vila da Feira, em 17 de Agosto de 1877.


A família é pobre e a marca das pestes físicas e espirituais da época pobreza, analfabetismo, alcoolismo e tuberculose deixou as suas sequelas, através do desaparecimento do progenitor e de cinco dos seus filhos (quatro rapazes e uma rapariga), guiando manifestamente os percursos do futuro médico de Espinho


É graças à herança recebida depois da morte de um tio brasileiro que Manuel Laranjeira prossegue estudos e consegue formar-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto.


Em 1904 concluiu as cadeiras do curso de Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, apresentando a sua dissertação de licenciatura três anos mais tarde, trabalho a que deu o título algo invulgar de A Doença da Santidade — Ensaio Psicopatológico sobre o Misticismo de Forma Religiosa.

Anteriormente publicara na revista «O Porto Médico» o seu primeiro trabalho de índole científica: Nirvana — Interpretação Psicológica de um Dogma.


Posteriormente fixou-se em Espinho, de onde nunca mais sairia, onde exerceu clínica e prosseguiu uma constante actividade como periodista.


Médico, autor de uma obra diversa nos domínios do teatro, poesia, diário, cartas e jornalismo, em parte apenas conhecida após a sua morte, Manuel Laranjeira relacionou-se com algumas das principais figuras culturais do início do século XX, como António Patrício, António Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso ou o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, de quem foi correspondente.


A obra de Manuel Laranjeira transmite-nos a sensibilidade profunda de um sonhador que percorre o seu tempo em constantes batalhas interiores, desesperando com as inúmeras leituras desconcertantes e desencantadas das realidades que os seus olhos identificam como produto do meio envolvente.

A uma poesia disciplinada pelo sentir do seu tempo, opõe-se uma prosa livre e circunstanciada pela pressão dos acontecimentos. A um teatro, humanamente problematizado como espelho dos dramas, risos, virtudes e desfavores da sociedade de então, surge-nos, em paralelo, o ensaio penetrante e demonstrativo de um espírito efervescente e rebelde de um oposicionista às situações impostas aos homens.


Interessou-se vivamente por estudos sobre diversos ramos da ciência, sobretudo Biologia, e escreveu com alguma regularidade sobre assuntos tão variados como Literatura, Crítica Literária, Arte, Estética, Filosofia Social e Pedagogia. Neste último domínio teve à época alguma ressonância o seu opúsculo sobre o valor educativo do método de João de Deus, A Cartilha Maternal e a Fisiologia, onde procurava relacionar aspectos do pensamento de Spencer e Felix Le Dantec com o método pedagógico do poeta do Campo de Flores.


A sua preocupação com a divulgação das ideias políticas, sociais e científicas modernas levou-o a proferir conferências, de que vale a pena destacar as que tiveram lugar na Universidade Livre do Porto, sob o tema «A Vida», em 1906, ano em que desenvolveu actividade bastante intensa e, um ano antes da sua morte, no Teatro Aliança de Espinho, sobre a protecção da vila contra as investidas do mar, que bem reflecte a sua preocupação com problemas de ordem social imediata.


Uma primeira impressão resultante da leitura do Diário e das Cartas dá-nos um Laranjeira céptico, fechado em si mesmo, descrente já da possibilidade da melhoria da mentalidade nacional e afastado da procura de soluções para os grandes ou pequenos problemas da sociedade portuguesa de então. É por isso um pouco difícil imaginar o homem que vamos encontrar por detrás da escrita ora amargurada ora entediada do Diário ser eleito Presidente da Comissão Municipal Administrativa de Espinho e exercer cargos públicos como o de Administrador do Concelho ou andar pelas ruas a abraçar efusivamente os amigos no dia da implantação da República.


Ainda no tocante à sua actividade literária temos notícia de um espírito interessado pelo teatro e possuidor de uma grande cultura teatral; faz crítica de teatro e escreve, influenciado por Ibsen, Strindberg, Hauptmann e Drieux o prólogo dramático ...Amanhã, publicado em 1902 e representado em Lisboa, dois anos depois, na récita inaugural do grupo «Teatro Livre» que tomou como modelo o «Théatre-Libre» de Antoine.


Este prólogo tem sido considerado, apesar de muitas imperfeições a melhor obra cénica da escola naturalista. Escreveu ainda o drama em um acto Às Feras, também representado pelo «Teatro Livre», em 1905; a farsa em um acto Naquele engano d’alma, igualmente representada e deixou inacabada a peça Almas Românticas, as três últimas ainda inéditas.


No domínio da poesia uma única incursão: o livro Comigo (versos dum solitário), publicado no Porto muito pouco antes da sua morte, em Janeiro de 1912, e que, com uma ou outra passagem de maior interesse pelo radicalismo invulgar com que os assuntos são tratados, é uma obra formalmente tradicionalista que se perde entre tantas outras colectâneas de poemas surgidos por esse tempo.


Esmagado pelo peso de uma «melancolia venenosa» que vai degenerando na apatia dum tédio irreversível de que darão conta as páginas do seu Diário Intimo e das Cartas, divide-se entre o várias vezes referido dever de apoio e assistência à família com que vive, e sobretudo a sua mãe, que parece ser tudo o que lhe resta duma infância sempre velada de que se sente nostálgico, e uma ânsia de evasão para algo indefinido, ambiguamente chamado Ideal, que nunca se determina, sendo raríssimas as vezes em que dá mostras de acreditar na possibilidade de sair da monotonia em que se sente submergido.


Os momentos de entusiasmo e de relativa crença são raros. O cepticismo e o tédio vão minando aos poucos o seu pensamento. Os últimos anos aceleram o processo de crise constante da sua vida. Em 1909 rompe a sua ligação com a sua companheira Augusta, que povoa as páginas do Diário e é motivo para muitas e reveladoras reflexões que nele encontramos.


Um ano depois, a Implantação da República não será senão o começo de um lento desmoronar de sonhos, planos e expectativas. O agravamento da doença ajuda a fenecer o ânimo e Laranjeira junta o seu nome à lista dos suicidas como Camilo, Antero, Soares dos Reis e outros que, com «a morta» de que nos fala no Diário, exerceram sobre a sua sensibilidade um ambíguo mas persistente apelo e reforça assim o mito unamuniano da «raça de suicidas». Unamuno, seu companheiro de conversas e deambulações por Espinho a quem em Outubro de 1908 escrevia amargamente a propósito de Portugal: «Neste malfadado país tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.»


Manuel Laranjeira seguiu as tendências do seu espírito. Na medicina percorreu os caminhos da nevrostenia, enquanto que na literatura e na palavra jornalística defendeu a ousadia de ser irreverente, imprimindo às suas críticas, à sua conversa e aos seus breves comentários, o encanto de uma vida intensa, o interesse e a paixão pela estética do seu tempo, independentemente se tratasse da cor de um risco de pincel ou de um conceito fulgurante de uma frase.


O poeta entrou no grande mistério pela mesma “porta” que Antero e Camilo, suicidou-se, ou por outras palavras, procurou encontrar a sua última verdade. Aquela que, nas suas próprias expressões, é descrita como o desmanchar da última ilusão, a ilusão da imortalidade.


A medida que lemos as linhas convulsionadas que vai escrevendo quotidianamente surge no nosso pensamento, ressuscitado das brumas espessas dessa praia do norte, uma figura indecisa, mal caracterizada que amamos e detestamos como tudo o que há de muito profundo em nós. Poderia ter sido um mito vivo, espécie de «escritor maldito» caseiro, não fosse ter-se suicidado num país que prefere alimentar o seu imaginário de poeirentos cavaleiros bélicos e desajeitadas sombras políticas.


Comecemos uma aproximação de Manuel Laranjeira antes de mais imaginando o seu retrato físico.


Alberto de Serpa imaginou-o assim:


« (...) carregado de fumo de tabaco e sonho, chegava a figura do suicida, trazida pelos passos incertos de tabético. Tomava uma das suas posturas descompostas: o tronco de magricelas desequilibrado na cadeira, a tombar sobre o mármore sujo de bebidas e cinzas, que enodoava mais a vestimenta desleixada; as pernas estiradas, em cruz nos joelhos inseguros; o chapéu mal sustido na floresta negra da cabeleira; a bengala em riste, a marcar o compasso dos pensamentos sem ou com ordem. Na face de prognata e tuberculoso hereditário, urna barbita rente sempre mal rapada, bigode fecundo que rimava com a cabeleira, olhos negros, enormes, avelulados. E bebia e fumava...»






Laranjeira sofria de tuberculose que provavelmente o acabaria por vitimar em pouco tempo, como aconteceu a seu pais seu irmão e outros familiares, se não se tivesse suicidado. Sofria também acentuadamente de tabes, doença que se caracteriza por urna ataxia progressiva dos membros locomotores. Encontram-se ainda nos seus escritos referências à sífilis.


Existem vários indícios de que a morte, longe de ter sido um acontecimento de último momento ou de gesto repentino foi, antes, uma atitude pensada e gerida num tempo mais ou menos longo.


O escritor sentir-se-á como mais um filho de uma pátria moribunda, onde a realidade vivida perdeu o significado e qualquer tipo de atracção.


Se se tivesse acomodado à ordem da cidade jacobina talvez houvesse conseguido uma cadeira nas «constituintes, com alguma dificuldade – mas sempre possível – uma «pasta» num ministério qualquer, apesar de tudo conseguiria com maior facilidade as gorjetas da propaganda, que distribuíam alguns lugares de destaque intermédio no aparelho de Estado e nas administrações de bancos, empresas públicas, governos das colónias. Porém, o médico de Espinho, tal como mostrara os punhos indignados à Monarquia, insistira em dizer do seu desdém intelectual pelos corifeus do novo regime. A República tinha pois que o marcar pela indiferença.


Fidelino de Figueiredo dirá dele:






«(...) em Espinho principalmente, viveu de 1877 a 1912 um homem de aguda sensibilidade intelectual e brava independência de carácter, o médico Manuel Laranjeira, curta vida de luta e amargura — luta com uma doença nervosa de quem quer viver em harmonia com a sua concepção da vida e esbarra em obstáculos intransponíveis. Ao seu drama não deveria ter sido estranha uma certa abulia mórbida. Não era um homem de laboratório. Era um amigo das ideias gerais e um curioso dos aspectos dramáticos da existência. A medicina proporcionou-lhe materiais para a sua interpretação pessimista do homem: um escravo das suas míseras limitações físicas; o seu temperamento pessoal e a exacerbação da doença explicam o resto: a coragem triste do suicídio».






Tomando o fio de Unanumo, seguindo a interpretação de Fidelino de Figueiredo, teremos um Manuel Laranjeira que procurava viver em harmonia com a sua concepção de vida, à qual não faltava a sensibilidade intelectual, portanto, um grande pensador e, por acréscimo, um grande «sentidor».


O que nem um nem outro disseram é que Manuel Laranjeira procurou viver de harmonia com a pátria que sentia doente e, por essa mesma razão, foi aos poucos sofrendo ele próprio os sintomas dessa doença, como se ela se houvesse corporizado em si. Poderia ter emigrado, exilar-se, mas não parece ter pretendido sobreviver. Procurou no suicídio terminar com a «doença de pátria» que em si corporizou uma doença física, real?


Em 1908, comunica a Unanumo a existência do império mental da morte: «Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada — o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa». Na terra das amarguras só tinha então curso a carreira suicidária. Unanumo ficou pois informado de que em Portugal só haveria triunfo para o «canalha»:


«Chegámos a isto amigo. Eis a nossa desgraça. Desgraça de todos nós, porque todos a sentimos pesar sobre nós, sobre o nosso espírito, sobre a nossa alma desolada e triste, como uma atmosfera de pesadelo, depressiva e má. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram — de crer.» Disto só se poderia sair arrancando-se à vida: «Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeitar é a crença na morte libertadora/E horrível, mas é assim.»


Um cadáver adiado perfila-se. Manuel Laranjeira pretenderia autopsiar antecipadamente aquilo que já lhe parecia estertor do moribundo. O sentimento difuso da responsabilidade republicana escondeu-se muita vez atrás do sofrimento destes inquietos, cobrindo-os com o seu manto indiscriminadamente, como se todos eles fossem seus filhos legítimos.


A natureza da crise colocaria sobre os ombros destes inquietos um peso que eles consideravam insuportável. Era a revolta dos que se recusavam a ser escravos do meio ambiente e se apresentavam como gladiadores na Arena política, julgando que fugiam, assim, à planificação mortal. Manuel Laranjeira respeitava, portanto, o suicídio enquanto derradeiro grito libertador e regulador do que havia de melhor na constituição dos portugueses.


Manuel Laranjeira encontrava os talentos enferrujados devido à falta de carácter e, simultaneamente, os caracteres fortes a deixarem avançar a doença devido à falta de vontade para levarem a fundo a única revolução verdadeiramente importante. Daí desenvolvia o seu conceito moral de história, oposto à interpretação da política dinâmica do jacobinismo. A mudança de regime não pareceu curar os doentes nem salvar a pátria da derrocada.






«O mal da minha terra, amigo, não é a demagogia: é a inépcia. Em Portugal não há demagogia: falta-nos fanatismo cívico para isso. Em Portugal o que há é uma inverosímil colecção de idiotas.»


Para ele a qualidade da mudança centrava-se na transformação das mentalidades: «Fez a revolução. Foi uma verdadeira revolução? Não; foi apenas um povo que mudou de traje. Por dentro estamos na mesma.».






A mudança de regime não trouxera nada segundo Manuel Laranjeira alvitrava.


Após a implantação da República declarou-se que o país estava curado, o doente agradeceu a ideia, como quem aceita uma mentira piedosa, mas sabia que não estava definitivamente restabelecido. Os jacobinos afirmaram que a pátria convalescia. Manuel Laranjeira não se adaptou às convenções que esta mentira impunha. Em vez de fazer política, defendeu com independência o seu parecer sobre o estado do país. As suas ideias tornaram-se subversivas: «(...) É preciso refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo para cima, incansavelmente, obstinadamente.».


O médico de Espinho recusava-se a encarreirar no rebanho republicano. Então, a República marcou-o e, mais do que isso, quando a sua voz se tornou impertinente, sem o perseguir nem perder tempo com avisos, votou-o à liquidação pela indiferença, procurou queimá-lo pelo desdém.


Em torno de Manuel Laranjeira traçou-se um círculo de silêncio, uma terra de ninguém povoada de vazio. A sua inquieta e preocupada visão do apocalipse lusitano tinha um cunho intervencionista demasiado vincado: a autoridade jacobina não era poupada. Para o médico de Espinho, ao envergonhar-se de confessar que errara, tanto mais errava o republicanismo ao dissimular os seus erros.


Portugal, sumindo-se, apagando-se na dispensa de se reformar em grande e profundo, obrigava Manuel Laranjeira a apagar-se também.


O crente na religião patriótica, ponderando sobre o estado de sítio, raciocionando, palpando as partes doridas da alma enferma, não poderia deixar de avaliar os progressos do mal. Pátria-hospital. Pátria-enfermaria, finalmente pátria-morgue, sem corpo clínico que a vigiasse, sem especialista que lhe identificasse a doença. Era pois um doente que tinha de experimentar, descobrir a terapêutica adequada. Um doente que se reflectia no país, por simpatia e solidariedade para com os outros. Deste paradoxo resultavam as inquietações do médico de Espinho.


Paulatinamente, vamos assistindo ao funeral da pátria, O cortejo funerário de Manuel Laranjeira tem todos os adereços da cena trágica. Com a pátria que se finava terminavam os seus dias meia dúzia de coisas que lhe serviam de amparo.


A doença predispô-lo para a solidão e para o pessimismo, manifestos numa visão trágica da existência e numa atitude de ensimesmamento, com explosões de revolta e desespero, de cepticismo e niilismo, culminantes no suicídio.






«Na noite de quinta-feira última, cerca das 23 horas, faleceu o dr. Manuel Laranjeira. Martirizado por horrível e desesperante sofrimento, o dr. Manuel Laranjeira pôs termos à existência, desfechando um tiro de revólver na cabeça!


O trágico desenlace desse drama acidentado da vida de Manuel Laranjeira deixou nos seus amigos uma nota contristadora de uma tremenda catástrofe. É indizível o espírito de consternação e lancinante mágoa que a todos foi transmitido.»


in «Gazeta de Espinho» 25/2/1912

1 comentário: