quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Karl Valentin e Ionesco – Dois nomes da História do Teatro

António Gomes Marques

Há cerca de três anos, o Armando Caldas convidou-me a assistir a mais um espectáculo, por si dirigido, do «Intervalo – Grupo de Teatro», a que chamou «Uma Noite de Cabaret», a partir de textos de Ionesco e de Karl Valentin. Foi uma reconstituição de um espectáculo de «cabaret», também chamado de café-concerto ou café-teatro, espectáculo este que nos motiva a falarmos destes autores, enquadrando-os na História do Teatro, da qual, inquestionavelmente, fazem parte.

Por volta de 1900, Romain Rolland iniciou uma série de artigos na «Revue d’Art Dramatique», artigos que o autor viria a reunir em volume em 1903, a que deu o título de «Le Théâtre du peuple», livro esse que o autor definiu como «um documento histórico que reflecte as ideias artísticas e as esperanças de uma geração» e nos quais procurou «… destacar dois factos: - Em primeiro lugar, a súbita importância que o povo tomou na arte (ou melhor, a importância dada ao povo; porque o povo, como de costume, não fala e todos falam por ele). – Em segundo lugar, a extraordinária diversidade de opiniões que se abrigam sob a designação geral de arte popular.» R. Rolland conta ainda, na Introdução àquele livro: «Graças ao (…) inteligente promotor, Adrien Bernheim, realizaram-se, nos bairros populares de Paris, representações clássicas pelos actores dos grandes teatros subvencionados. Acto contínuo, Bernheim e os seus amigos exclamaram: “O teatro do Povo está fundado!” - Eis uma bela invenção! Baptiza-se o teatro burguês de teatro popular, e é quanto basta! Desta sorte, nada mudará, e numa sociedade que eternamente se transforma, apenas a arte permanecerá imóvel, condenada eternamente a um ideal caduco, a um teatro cujo pensamento, estilo e desempenho já nada têm de vivo!» (V. Luís Francisco Rebello: Teatro Moderno – caminhos e figuras, 2.ª edição, 1964).

A denúncia de R. Rolland não levou à existência de um teatro para o povo, apesar do seu empenho. Ora, nessa época, havia os cabarets ou café-concertos e outros lugares como tabernas, cervejarias e botequins, em que o essencial dos seus programas começou por ser constituído por canções, onde alguns actores de variedades passaram a ir também cantar ou representar pequenos textos de comédia e alguns mágicos a apresentar também os seus números, lugares estes que se tornam muito populares e, naturalmente, locais de frequência para as classes mais desfavorecidas, transformando-se numa moda e, consequentemente, começam muitos destes locais a atrair a burguesia e os homens de negócios, expulsando, naturalmente, os mais humildes. Os que resistem tornam-se, pelo contrário, locais de resistência, mesmo na Alemanha nazi, onde acabam por se distinguir Karl Valentin e Marlene Dietrich, entre outros, e onde o Cabaret berlinense se tinha transformado num fenómeno artístico, social e político.

Karl Valentin, nome artístico de Valentin Ludwig Fey, nasceu em 4 de Junho de 1882 nos subúrbios de Munique. Iniciou-se no mundo do trabalho como marceneiro. Cerca de três anos após a morte do pai, vendeu em 1906 a carpintaria que havia herdado e organizou uma digressão, com o pseudónimo de Charles Fey, com uma orquestra de vinte instrumentos, a que chama «orquestra viva», accionados unicamente por ele graças a um mecanismo que inventou, mas sem qualquer sucesso. Começa por se tornar conhecido como cantor popular nas cervejarias de Munique, instaladas em caves. Insiste em números cómicos, acabando por encontrar um público e o sucesso com o seu primeiro monólogo, O Aquário, em 1907.


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Em 1909, consegue convencer a actriz Liesl Karlstadt (Elisabeth Wellano) a tornar-se sua parceira, com quem fará sucesso até que, em 1935, se separam por razões de saúde desta, após o encerramento do seu «Panoptikum», que funcionou, durante 13 meses, na cave do Hotel Wagner. Entretanto, para além dos êxitos de comediante, faz cinema, sendo de realçar o filme «Mysterien eines Friersersanlons», em que, para além de Liesl, Blandine Ebinger, Erwin Faber e Kurt Horwitz, conta no elenco com Bertolt Brecht, que era um dos seus admiradores. Nos primeiros meses de 1936 está em Berlim, até que Jacob Géis o leva de novo para Munique onde o dirige no que viria a ser o melhor filme de K. Valentin, «Die Erbschaft», que a censura nazi viria a proibir por, acusavam, os seus escritos «terem uma tendência para a pobreza». Volta aos seus espectáculos de café-teatro, escrevendo os textos, tendo a Gestapo interdito em Maio de 1938 «der Umzug», nunca conseguindo encontrar uma parceira que substituísse plenamente Liesl. No entanto, em 1939, volta ao êxito com o seu «Ritterspelunke», tendo como parceira, num papel de criada ladina, a jovem Annemarie Fischer.

Durante a II Guerra Mundial escreve para o jornal militar de Munique «Müncher Feldpost», já retirado na sua casa de Planegg, escrevendo a sua última peça em 1943. Depois da guerra, tenta o seu regresso com a sua grande companheira de cena Liesl Karlstadt. O público não se mostra sensível ao seu humor: «Toda a gente, com excepção dos Esquimós e dos Indianos, tem o mesmo interesse em mim como os meus compatriotas», escreve numa carta a Kiem Pauli. Em 1947, Dezembro, dá mais um espectáculo, morrendo, na miséria, a 9 de Fevereiro do ano seguinte.

Foi o Teatro da Cornucópia que o deu a conhecer ao público português em 1979, com o espectáculo «E não se pode exterminá-lo?», tendo os seus textos cheios de um humor absurdo obtido grande sucesso, levando a que não mais tenha sido esquecido no nosso país este autor por todos considerado como um dos inventores do Café-Concerto e, por muitos, um dos precursores do teatro do absurdo.

Falar do teatro do absurdo é falar de uma linguagem contrária à razão, contrária ao senso comum, remetendo-nos, no campo do teatro, para autores como Eugène Ionesco, Samuel Beckett e Jean Genet. Mas é sobre o primeiro que nos interessa agora discorrer um pouco.

Ionesco nasceu em Slatina, na Roménia, em 26 de Novembro de 1909, filho de pai romeno e mãe francesa. Há quem considere o ano de 1912 como o do seu nascimento, erro este devido ao facto de o próprio, no início dos anos 50, ter diminuído a sua idade em 3 anos por causa de um comentário de um crítico, Jacques Lemarchand, enaltecendo o aparecimento de uma jovem geração de autores citando, como exemplos, Ionesco e Beckett. Em 1913 acompanha os pais, que se instalam em Paris, regressando à Roménia em 1925, apenas com o pai, entretanto divorciado, tornando-se, entre 1928 e 1933, estudante de literatura francesa na Universidade de Bucareste. Casa em 1936 (ou 1937?) com uma estudante de filosofia, de quem terá uma filha em 1944. Entretanto, tinha regressado a Paris graças a uma bolsa governamental, trabalhando numa uma tese sobre «Les Thèmes du péché et de la mort dans la poésie française depuis Baudelaire» (Os Temas do pecado e da morte na poesia de Baudelaire), com grande dificuldade, dado escrever mal em francês. De 1940 a 1943 vive em Marselha. Finda a II Guerra Mundial, regressa a Paris, ganhando a vida como revisor de provas para uma editora, decidindo-se então pela aprendizagem do inglês com o método Assimil. Nesta aprendizagem deparam-se-lhe frases como «A minha mulher é inteligente. Ela é mesmo mais inteligente do que eu. De qualquer modo, ela é muito mais feminina»; verdades evidentes como «O chão fica em baixo e o tecto em cima», «Há sete dias na semana». Avançando no estudo, chega ao diálogo entre um casal, onde a esposa informa o marido de que tinham tido vários filhos, que ele era auxiliar de escritório, etc. Ionesco, sem poder negar a verdade de tais frases, repara no absurdo das mesmas, o que o leva a escrever a sua primeira peça de teatro, «A Cantora Careca», a qual detém o recorde de longevidade no cartaz do Théâtre de la Huchette, quase quarenta anos. Nesta peça, por exemplo, podemos ver em cena dois estranhos que trocam banalidades entre si sobre o tempo, o lugar onde vivem, quantos filhos têm, para virem a descobrir que, afinal, são marido e mulher. A peça foi estreada em 11 de Maio de 1950, no Théâtre des Noctambules, constituindo um êxito a partir do momento em que alguns críticos conceituados, como o já referido J. Lemarchand e Raymond Queneau, e alguns escritores famosos apoiaram claramente o espectáculo, transformando Ionesco num dramaturgo internacionalmente reconhecido, dando origem a uma verdadeira revolução nas técnicas teatrais, nascendo assim o teatro do absurdo.


Na obra de Ionesco a linguagem esgota-se em jogos de palavras estereotipados, sem possibilidade de comunicação entre as personagens e despojada de convenções. Uma das suas frases célebres é: «Só as palavras contam; o resto é tagarelice».

Outras peças se seguiram, como «A Lição»,« As Cadeiras», «O novo Inquilino», «O Rinoceronte», «O Rei está a morrer», conseguindo, por fim, com esta última obra, atingir uma unidade dramática que há muito procurava, estreada em 1962 e que viria a constituir um dos grandes êxitos desse insubstituível actor português, o saudoso José de Castro. Esta última peça encontra-se agora em cena na Comuna, numa encenação de João Mota, com Carlos Paulo no papel de “Rei Berengário”.

Ionesco passa de anarquista de direita a um feroz oponente de toda e qualquer ideologia de esquerda.

Em 1970 foi admitido na Academia Francesa.

Em 28 de Março de 1994 morreu em Paris.

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