domingo, 26 de dezembro de 2010

Noctívagos, insones & afins - Democracia - Homens bons vs Turba

Carlos Loures


Em Outubro de 1987, Karl Popper (1902-1994), veio fazer uma conferência a Lisboa a convite de Mário Soares, então presidente da República. Nessa conferência, contou como, atraído na juventude pelo Comunismo, foi verificando ao longo da vida que a teoria da História de Marx e a sua profecia sobre o advento do Socialismo, apresentavam muitas falhas. Quem sou eu para contestar Popper, mas, na minha modesta opinião, as falhas não foram de Marx, que só podia raciocinar com os elementos de que dispunha – a máquina a vapor, símbolo da Revolução Industrial, estava a revolucionar o mundo do trabalho, a transformar artífices em operários, a criar um «proletariado» e um «lumpen» ou seja, um «subproletariado». Quanto a esta última classe, colocada à margem do processo produtivo, Marx entendia-a como susceptível de se unir à vanguarda revolucionária ou de ser instrumentalizada e transformada em núcleo principal do exército contra-revolucionário. Gente que nada tem é mais vulnerável às promessas, sobretudo às falsas promessas.


Não podia conceber um futuro muito mais longínquo em que os operários iriam deixar de ser necessários, em que a força do trabalho (que era feita por trabalho de força) iria ser desempenhada por robôs e em que o lumpen seria substituído por marginais agressivos e poderosos, substituindo, de facto, nas chamadas democracias os poderes ocultos que as polícias políticas exercem nas ditaduras, mantendo os cidadãos aterrorizados. Isto era inimaginável há cento e sessenta anos. Aliás, prever o futuro é exercício impossível. Leio alguma Ficção Científica. Quem compartilha este hábito, terá reparado que os escritores de FC previram tudo, desde viagens a Marte até ao povoamento de galáxias a milhares de anos-luz e viagens no tempo, mas não foram capazes de prever o advento do telemóvel?


Quanto a mim, as maiores falhas foram dos seguidores - por ingenuidade, estupidez, maldade, tirania, abusos de poder, corrupção – todos estes desvios foram cometidos nos diversos «comunismos» que irromperam no século XX. Marx já cá não estava. E como as seitas cristãs fazem com a Bíblia, assim os diversos seguidores fizeram com as ideias de Marx e de Engels – cada um deu-lhe a interpretação que mais água levava ao seu moinho.


Mas voltemos ao Popper - continuando, apesar do seu cepticismo, a sentir-se socialista, estudou o Marxismo em profundidade, acabando portanto por descobrir essas falhas e verificar que os marxistas mantêm uma atitude de arrogância intelectual. Lembrou que, há dois mil e quinhentos anos Sócrates disse «Sei que nada sei – e mal isso sei; só sei, portanto, que não sei. Mas quero saber e quero aprender». Foi ao amor pelo conhecimento, juntamente com a consciência da nossa ignorância, que Sócrates chamou «Filosofia», palavra que significa «ânsia de conhecer», «desejo de saber». Terá dito ainda que todos nós ansiamos por ter aquilo que não temos – neste caso, a sabedoria. Infelizmente, a tradição socrática perdeu-se e a maior parte dos filósofos, nomeadamente os marxistas, estão convencidos de que sabem (disse Popper). Falou depois sobre a sua «Teoria da Democracia».


A teoria clássica da democracia defende que o poder reside no povo e que este tem o direito de o exercer. Platão foi o primeiro teórico a sistematizar as diversas formas que pode revestir a Cidade-Estado: Monarquia – governo de um só homem bom: Tirania (governo de um só homem mau - perversão da Monarquia); Aristocracia, governo de vários homens bons – Oligarquia (distorção de Aristocracia, um grupo de homens maus partilhando o poder); finalmente, surge a Democracia – governo de muitos homens, ou seja, do povo; para esta forma de governação, não encontrou perversão ou distorção, visto que muitos homens, formam uma «Turba», e o conceito de Democracia inclui já, a par da sua forma correcta – um bom, governo do povo, a forma perversa – a barafunda e o caos – a «Turba».


Comprova-se que de Platão a Marx, o problema foi o de saber quem deve governar. Platão respondeu ingenuamente à sua própria questão – devem governar os melhores – os Aristocratas, os homens bons, mas nunca a Demos, a Turba, a balbúrdia - saneamentos selvagens, manifes a toda a hora, assembleias populares por tudo e por nada (isto, sou eu que digo).


Popper terminava defendendo o sistema bipartidário, com argumentos que na altura até talvez tenham parecido razoáveis, mas que mais de vinte anos depois, verificamos não terem tido correspondência na prática, pelo menos na nossa prática. PS e PSD constituíram, cimentaram, uma «Aristocracia» perversa, endogâmica, feita de clientelas, de trafulhices mafiosas, de sacos azuis e negócios obscuros. Porque «homens bons» é coisa que não existe nesta Aristocracia feita de gentinha rasteira que vai enriquecendo com o exercício desta coisa disforme a que chamam «democracia».


Esta é a realidade triste em que vivemos. Mas será que, sabendo que Karl Popper vinha defender um governo da Turba, Soares o teria convidado a vir fazer a conferência? Cá por mim, acho que Soares conhecia a teoria dos «homens bons» e por isso, porque ela lhe convinha (a ele, supremo «homem bom») convidou o mestre a vir contá-la aos indígenas.


Durante uma grande parte da minha vida, identifiquei Socialismo com Democracia e vice-versa. Mas desde cedo, foi para mim evidente que o chamado «socialismo real», o do Leste da Europa, o da China, constituíam traições descaradas ao espírito e aos princípios do marxismo. Considerava esses regimes como aberrações, fixava-me mais na Cuba de Fidel e de «Che» Guevara e prosseguia com o meu sonho. Até que Fidel, acossado pelo poderoso inimigo imperialista, foi forçado a cair nos braços doutro imperialismo.


Apesar destas desilusões, pensava que, mais tarde ou mais cedo, o verdadeiro Socialismo brotaria e floresceria. Pessoas mais velhas e algumas da minha geração, ouviam ao longe os harpejos dos «amanhãs que cantam». Eu bem apurava o ouvido, mas não escutava nada. Como de dentro dos búzios, vinha apenas o som das batidas do meu coração. E iam mais longe – identificavam esse tal «socialismo real» como paradigmas de liberdade e democracia. O 25 de Abril aconteceu e os que pensavam como eu e queriam construir o socialismo a partir do zero (quando falámos de socialismo à portuguesa, houve logo um gajo qualquer, cheio de «realismo» e «bom senso», que afirmou que «à portuguesa», só conhecia o cozido – reflexão a atirar para o estúpido, mas que se verificou estar certa; porque geralmente a razão dos estúpidos revela-se mais de acordo com a realidade). Outros, os que traziam o manual, as instruções de montagem do sistema, no bolso, escritas em chinês, em russo, em coreano, em servo-croata ou até em albanês pensaram o mesmo que eu e todos exultámos – Vai ser agora. Mas foi rebate falso.


O sonho era belo. Como se diz no tema central de «Les Misérables», o musical americano (que, por acaso, vi em Londres e que o «fenómeno Susan Boyle, colocou de novo na ribalta) - but the tigers come at night, / with their voices soft as thunder… O sonho que sonhámos, the dream we dreamed, afogou-se em doses maciças de «realismo» e de «bom senso», quero dizer, falando claro, de corrupção e de jogadas sujas. Os tigres, ou, traduzindo, os tais «homens bons», estavam a pau.


Após a euforia, a disforia – comprovou-se o axioma de Tommaso de Lampedusa aventado em Il gattopardo – «Para que tudo fique na mesma é preciso que alguma coisa mude». Na realidade, estávamos todos enganados. Alguns porque queriam estar enganados (só quem não queria saber não sabia do sinistro pesadelo que na União Soviética e nos países do Pacto de Varsóvia se construiu em nome do socialismo; na China, embora Tiananmen ainda não tivesse acontecido, sabia-se também que chamar «socialismo» ao que ali se fazia era pura mistificação). Da Jugoslávia e da Albânia não merece a pena falar. Os que pensavam que era possível, partindo das ideias de Marx, Engels, não esquecendo os «contributos» de Lenine, Estaline, Trotski, Mao-tse-tung, Tito e outros, construir uma sociedade socialista, contavam apenas com o entusiasmo que transbordava das ruas para os partidos, sindicatos, comissões de trabalhadores, comissões de moradores, para os quartéis. E vice-versa. Esqueceram-se que paredes-meias com a nossa festa, o chamado «mundo livre» não dormia.


Para lá da moribunda «cortina de ferro» também havia olhos postos em nós. E o «mundo livre» começava logo aqui ao lado, na Espanha sob a ditadura de Franco, com os generais impacientes a pedir autorização aos chefes do Pentágono para vir pôr ordem no quintal das traseiras. Sobretudo quando alguns tontos que se diziam de extrema-esquerda lhes fizeram o favor de assaltar a embaixada. Os americanos, mais experientes, estavam à espera que acalmássemos, que pousássemos. Que o problema se resolvesse internamente sem intervenções estrangeiras à vista – dá sempre mau aspecto. E o 25 de Novembro aconteceu. E de então até hoje a «normalidade» nunca mais deixou de crescer. «Socialismo em Liberdade», anunciavam os cartazes dessa época - «Capitalismo à solta», traduziram logo alguns.


Aí o temos, ao socialismo em liberdade.


Deixo-vos com o tema de “Les Misérables”:








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