quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Noctívagos, insones & afins:Os valores de todas as coisas

João Machado

Hoje em dia muitas das pessoas que procuram acompanhar a vida política, em Portugal e lá fora, manifestam perplexidade perante a incapacidade dos cidadãos em fazer com que os seus governos e demais órgãos de soberania desenvolvam políticas conformes os interesses gerais da sociedade. Essa perplexidade é fácil de perceber em países sob ditadura, em que as pessoas estão subjugadas pela força bruta, com as consequências evidentes. As ditaduras existem obviamente para impor políticas contrárias aos interesses da sociedade, defendendo apenas os interesses de uns poucos, que não têm pejo em esmagar a maioria que oprimem. As teocracias e os estados neoliberais são exemplos deste estado de coisas. As ditaduras militares também, por mais bem intencionados que sejam os seus promotores.

Mas nos regimes democráticos ou tidos como tais a perplexidade de que falamos também existe, e de que maneira. A actual crise, que muitos procuram resumir à sua componente financeira, veio avivar essa perplexidade. Melhor dito, pôs em evidência que os governos eleitos não controlam sectores decisivos das sociedades ditas democráticas. Que a economia capitalista é regida pelos bancos e sistemas financeiros, e que estes escapam ao controlo dos governos. Contudo, parece que estes (os governos) ainda são responsáveis pelos poderes legislativo e deliberativo dos países aonde foram eleitos.

Sem dúvida que grande parte da responsabilidade por este estado de coisas cabe aos cidadãos. Nos países democráticos (ou tidos como tal) já têm acesso a informação relevante e a possibilidades de participação em muitos mecanismos que permitem a participação na gestão na vida da sociedade. Contudo esta participação é reduzida, ou não é feita da melhor maneira. Porque será?

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George Monbiot é um colunista do Guardian, que aqui nos apresenta uma hipótese explicativa, que pessoalmente julgo que devemos ter em conta. Activista político e ambiental, defensor dos direitos humanos, forte oponente das políticas de Tony Blair, o George Monbiot é autor de vários livros, como Captive State, The Corporate Takeover of Britain, The Age of Consent, e outros.

É graduado por várias universidades britânicas, participando regularmente dos programas de ensino de Oxford, Bristol, Keele e outras. Proponho-vos a leitura do artigo seguinte, que o George Monbiot publicou recentemente no Guardian:


Os valores de todas as coisas (I)

Uma das coisas mais estranhas das democracias, ocidentais e não só, é a incapacidade dos seus cidadãos em escolher as políticas que melhor os servem. A maioria tem acesso a todo o tipo de informação, mas na altura das opções as escolhas são normalmente favoráveis a interesses de certos grupos restritos, diversos, por vezes mesmo opostos aos dessa maioria. É fácil encontrar exemplos, a habitação, a educação, o ensino … As causas progressistas estão a falhar: vamos ver como elas podem ser revitalizadas.

Por George Monbiot. Saído no Guardian  em 12 de Outubro de 2010. Ver também o site de George Monbiot.

Pois cá estamos nós, formando uma fila ordeira no portão do matadouro. O castigo dos pobres pelos erros dos ricos, o abandono do universalismo, o desmantelamento da protecção que o estado proporciona: para além de escassos protestos, até à data nada de isto nos motivou para uma resistência aberta.

A aceitação de políticas que contrariam os nossos interesses é o mistério mais disseminado do século XXI. Nos Estados Unidos, operários irados não querem ter sistemas de saúde, e insistem em que os milionários paguem menos impostos. No Reino Unido parece que estamos a abandonar as conquistas sociais pelas quais os nossos antepassados arriscaram as suas vidas opondo apenas fracos protestos. O que nos terá acontecido?

Acho que a resposta nos é dada pelo relatório mais interessante que li este ano. Common Cause (Causa Comum), escrito por Tom Crompton, do grupo ambientalista WWF(1) , examina uma série de avanços recentes no campo da psicologia(2) . Oferece, segundo creio, um remédio para a moléstia que actualmente afecta todas as boas causas, desde a protecção social até às alterações climáticas.

Ele mostra como os progressistas têm sido uns trouxas em relação a um mito do conhecimento humano que rotula como o modelo Iluminista. Este mantém que as pessoas tomam decisões racionais apoiadas em factos. Tudo o que é preciso fazer para persuadir as pessoas é pôr cá fora os dados concretos: elas vão usá-los para escolherem as opções que melhor servem os seus interesses e desejos.

Um grande número de experiências psicológicas demonstra que as coisas não funcionam desta maneira. Em vez de procedermos a uma análise racional de custo-benefício, acolhemos as informações que vão ao encontro da nossa identidade e dos nossos valores, e rejeitamos as informações que colidem com eles. Moldamos o nosso pensamento sobre a nossa identidade social, protegendo-a de desafios sérios. Confrontar pessoas com factos inconvenientes vai provavelmente contribuir para que endureçam a sua resistência à mudança.

A nossa identidade social é moldada por valores que os psicólogos como extrínsecos ou como intrínsecos. Os valores extrínsecos dizem respeito ao estatuto e à promoção pessoal. Pessoas com um conjunto forte de valores extrínsecos fixam-se no modo como os outros os vêem. Valorizam o sucesso financeiro, a imagem e a fama. Os valores intrínsecos dizem respeito às relações com os amigos, a família e a comunidade, e a viver bem consigo próprio. Quem tem um conjunto forte de valores intrínsecos não depende dos elogios ou das recompensas de outras pessoas. Têm convicções que transcendem o seu interesse pessoal.

Poucas pessoas são totalmente extrínsecas ou intrínsecas. A nossa identidade social é formada a partir de uma mistura de valores. Mas testes psicológicos feitos em perto de 70 países mostram que os valores se agrupam em padrões notavelmente consistentes. Quem valoriza muito o sucesso financeiro, por exemplo, tem menos empatia, mais tendências manipulatórias, sente-se mais atraído por hierarquias e desigualdade, tem preconceitos mais fortes contra os estrangeiros e menos preocupações com os direitos humanos e o ambiente. Os que vivem bem consigo próprios têm mais empatia e uma preocupação maior com os direitos humanos, a justiça social e o ambiente. Estes valores anulam-se uns aos outros: quanto mais fortes forem as aspirações extrínsecas de alguém, mais fracos serão os seus objectivos intrínsecos.

Não nascemos com os nossos valores. Estes são modelados pelo ambiente social. Ao mudar a nossa percepção do que é normal e aceitável, a política altera os nossos espíritos tanto quanto as condições em que vivemos. A saúde universal e gratuita, por exemplo, tende a reforçar valores intrínsecos. Retirar aos pobres o acesso aos cuidados de saúde normaliza a desigualdade, reforçando os valores extrínsecos. A acentuada viragem à direita que começou com Margaret Thatcher e continuou sob Blair e Brown, que em todos os governos deram ênfase às virtudes da competição, ao mercado e ao sucesso financeiro, mudou os nossos valores. O inquérito às Atitudes Sociais Britânicas, por exemplo, mostrou que, durante este período, houve uma queda acentuada do apoio do público às políticas que presidem à redistribuição da riqueza e das oportunidades(3) .
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(1)World Wildlife Fund, criado em 1961 por organizações já existentes e individualidades empenhadas na conservação da natureza. Tem passado por várias fases e conhecido uma expansão considerável. Ver http://www.worldwildlife.org. (Nota do tradutor).


(2)Tom Crompton, Setembro de 2010. Common Cause: A Defesa do Trabalho com os nossos Valores Culturais. WWF, Oxfam, Friends of the Earth, CPRE, Climate Outreach Information Network. http://assets.wwf.org.uk/downloads/common_cause_ report.pdf.


(3)J. Curtice, 2010. Termóstato ou cata-vento? Reacções do público ao consumo e à redistribuição sob o New Labour, in Park, A et al (eds.) Atitudes Sociais Britânicas 2009-2010: 26º relatório. Sage, Londres. Citado por Tom Crompton (ver nota 2).


Esta viragem foi reforçada pela publicidade e pela comunicação social. O fascínio da comunicação social pelos políticos no poder, as suas listas de ricos, os seus catálogos das 100 pessoas mais poderosas, influentes, inteligentes ou bonitas, a promoção obsessiva que faz da celebridade, da moda, dos carros velozes, das férias caras: tudo isto incute valores extrínsecos. Ao gerar sentimentos de insegurança e de inadequação – o que equivale a reduzir o sentimento de estar bem consigo próprio – também afasta os objectivos intrínsecos.


Os publicitários, que empregam muitos psicólogos, estão perfeitamente conscientes disto. Crompton cita Guy Murphy, director do planeamento global da companhia de marketing JWT. Os técnicos de marketing, diz Murphy, “deviam ver-se a si próprios como agentes de manipulação da cultura; como sendo engenheiros sociais, não como gestores de marcas; a manipularem forças culturais, e não a impor marcas”(4) . Quanto mais promovem valores extrínsecos, mais fácil se torna venderem os seus produtos.

Os políticos de direita também perceberam, instintivamente, a importância dos valores para mudar o mapa político. Ficou famosa a afirmação de Margaret Thatcher de que “a economia é o método; o objectivo é mudar o coração e a alma” (5). Os conservadores nos Estados Unidos costumam evitar debater factos e contas. Em vez disso procuram caminhos que levem a apelar e a reforçar os valores extrínsecos. De ano para ano, através de mecanismos difíceis de ver à vista desarmada e raras vezes discutidos, o espaço onde as ideias progressistas podem florescer encolhe mais um pouco. A resposta progressista a esta tendência tem sido desastrosa.

Em vez de enfrentarmos a viragem no campo dos valores, procurámos adaptar-nos a ela. Partidos políticos que em tempos foram progressistas tentaram aclamar atitudes do público em vias de alteração: lembrem-se de todos aqueles apelos do New Labour (6) à Inglaterra Média, que muitas não eram mais do que normas de defesa dos interesses pessoais. Ao procederem assim assumem e legitimam valores extrínsecos. Muitos promotores da defesa da natureza e da justiça social também tentaram chegar às pessoas apelando ao interesse pessoal: por exemplo quando afirmam que combater a pobreza nos países em desenvolvimento vai criar mercados para os produtos britânicos, ou quando sugerem que o comprador de um carro híbrido impressiona favoravelmente os amigos e eleva o seu estatuto social. Esta táctica também fortalece os valores extrínsecos, reduzindo ainda mais as possibilidades de sucesso de campanhas futuras. O consumismo verde foi um erro catastrófico.

Common Cause propõe um remédio simples: que deixemos de esconder os nossos valores e passemos a explicá-los e promovê-los. Sugere que os activistas progressistas ajudem a promover uma compreensão da psicologia que imbui a mudança política e a mostrar como foi manipulada. Também deveriam unir-se para enfrentar as forças – em particular a indústria da publicidade – que nos tornam inseguros e egoístas.

Ed Milliband dá a ideia de ter compreendido esta necessidade. Disse no congresso dos trabalhistas que “quer mudar a nossa sociedade de modo a valorizar a comunidade e a família, não apenas o trabalho” e que “quer mudar a nossa política estrangeira de modo a que seja baseada em valores, não apenas em alianças… Temos de mudar o velho pensamento e apoiar os que acreditam em que a vida não se resume ao nível de sobrevivência.” Mas há aqui um paradoxo, o que quer dizer que não podemos confiar nos políticos para impulsionar estas mudanças. Os que triunfam na política são, por definição, pessoas que dão prioridade aos valores extrínsecos. A ambição fá-los pôr em segundo plano a paz de espírito, a vida familiar, a amizade – até o amor fraternal.

Assim nós próprios vamos ter de conduzir esta viragem. As pessoas com valores intrínsecos fortes têm de os assumir abertamente. Temos de argumentar pelas políticas que queremos não numa base de oportunismo mas na base da empatia e da benevolência; e contra outras porque são egoístas e cruéis. Ao fazermos valer os nossos valores tornamo-nos na mudança a que queremos assistir.

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(4)Guy Murphy, 2005. Influenciando o tamanho do seu mercado. Instituto dos Profissionais de Publicidade. Citado por Tom Crompton (ver nota 2).


(5)Margaret Thatcher, 3 de Maio de 1981. Entrevista ao Sunday Times. Citada por Tom Crompton (ver nota 2).


(6)O New Labour apareceu como uma reorientação política do partido trabalhista britânico, sob Tony Blair, aproximando-o do centro e da chamada terceira via. Julgo que pode ser classificado como uma tendência política dentro do partido (Nota do tradutor).


http://www.guardian.co.uk/politics/2010/sep/28/ed-milliband-labour-conference-speech.

(Tradução de João Machado)

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