domingo, 19 de dezembro de 2010

O pecado de saber demais * (I)


João dos Santos (1913-1987) **

 (Enviado por Clara Castilho)João dos Santos - Uma vez, era secretário de um congresso internacional de Psicanálise que houve aqui em Lisboa, já há muito anos, e veio um jornalista ter comigo e perguntou¬-me inesperadamente, à entrada para uma sessão, o que era para mim a Psicanálise. E eu saí-me com esta: a Psicanálise é a arte de reconciliar as pessoas com a sua infân¬cia. Hoje digo o mesmo, mas acrescento que é também a arte de fazer com que as pessoas recuperem a sua infância. O que acontece neste poema é que há uma parte própria do Pessoa que dá uma imagem severa, agreste, do céu e de Deus e de outras figuras desse imaginário, e há outra parte dele que idealiza o Menino Jesus como um menino muito humano. Uma coisa não é incompatível com a outra, todos nós fazemos isso, porque uma coisa é a verdade das ideias e outra é a verdade dos senti¬mentos. E desta última que falam o povo e os poetas. (Julgo que o culto do Espírito Santo tem também que ver com isso.) E muito fácil para nós dizer que o pai era casado com a mãe, que há uma célula masculina e uma célula feminina, e tudo o resto que vem nos manuais. Dizer isso é fácil. O problema é que a criança não pode aceitar emocionalmente que as coisas sejam realmente assim. Temos todos necessi¬dade de esconder de nós próprios a emoção que tivemos ao saber que alguma coisa de íntimo, de particular, de secreto se passou com os nossos pais. Isso acontece com toda a gente, até com o professor catedrático de sexologia duma universidade que fosse imaginariamente a melhor do mundo.


João Sousa Monteiro - Há um texto seu em que diz a certa altura o seguinte: «Aos 5 anos uma criança conhece à sua maneira e de acordo com a sua própria filosofia todos os mistérios da vida dos adultos. Aos 7 anos esquece tudo com a ajuda de conhecimentos suposta¬mente objectivos com os companheiros, em termos escabrosos, ou os professores, em termos científicos, lhe administram. Mas se tudo se pode teoricamente e objectivamente pensar acerca dos pais que fazem amor e que fazem bebés, nada pode ser evocado das emoções profundas que nos abalaram quando essas descobertas foram feitas, quer dizer, antes de poderem ser pensadas e faladas. Nesse sentido, todos temos necessidade de guardar a nossa inocência e ignorância infantis, mesmo o catedrático de sexologia» .

J.S. - Qualquer pessoa pode imaginar-se a falar cientificamente da vida sexual, e até da vida sexual dos seus pais, e da forma como nascem os bebés, e do que é fazer amor, e tudo, mas pensar que os pais fizeram realmente isso, aperceber-se dessa experiência profunda e terrivelmente emocional, isso é demasiado angustiante, e mesmo terrífico, para poder ser evocado. Essa emoção é que tem que ser reprimida e vai fazer pane daquilo a que Freud chamou «o recalcado». Uma das formas de recalcar é separar a emoção do acontecimento. O acontecimento é fácil de evocar. Se eu vir um homem esmagado por um camião, sou capaz de esquecer parte da emoção que aquela coisa horrível despertou em mim, e posso contar aquilo como uma coisa banal, porque dificilmente posso evocar a angústia que então senti. A gente não consegue evocar a emoção, e felizmente, porque senão éramos um barril de pólvora que explo¬dia ao primeiro fósforo que se acendesse.

J.S.M. - Existirá alguma outra lenda, algum outro mito, alguma outra história que seja tão conhecida, tão universal, tão popular como a lenda do Natal? Parece um conto infantil que cada pessoa se conta a si própria e é depois colectivamente encenado. E curioso como as pessoas, a começar pelos adultos, entram entusiasmados na história, transformam-se quase em personagens do presépio, gozam esta lenda exac¬tamente como se fossem crianças. Parece uma dramatização colectiva de um conto infantil.

J.S. - E que há uma realidade interna para cada pessoa e há depois certas reali¬dades externas e colectivas sentidas em comum por toda a gente. E curioso comparar a forma de sentir do Pessoa-Criança e do Menino Jesus que faz dele um poeta, e a forma de sentir do Pessoa adulto com vestígios de recordação infantil do seu «romance familiar» A verdade de cada um é procurada através de tudo isso. E por isso que a intimidade das pessoas não faz sentido lógico. Não faz sentido porque há um Menino Jesus que se mete nos nossos sonhos e que atrapalha tudo e que baralha os sonhos. Esse Menino Jesus é a nossa infância.
Nos pesadelos e sonhos acontece o mesmo. Os temas dos sonhos e dos pesadelos que temos aos 40 ou 50 anos são os mesmos que tivemos aos 4 ou 5. Alguns dizem que o tema básico do sonho ou do pesadelo é sempre o mesmo. No movimento pro-cessual do pesadelo torna-se mais evidente que ele é igual em qualquer idade. Há sempre uma fuga, uma perseguição, ou então uma angústia que anda muito pró¬xima da fuga ou da perseguição.
Compreende-se portanto que os pesadelos sejam da fase dos 4 ou 5 anos, altura em que a criança começa a tentar resolver aquilo a que nós chamamos complexo de Édipo, o problema da competição com o pai e talvez o problema da «pureza» da mãe. A verdade é que nenhum de nós, adultos, é capaz de pensar, sentindo, e que nenhuma criança a partir de uma certa idade é capaz de imaginar que a mãe faz amor com o pai. Todas o podem fazer, todas, menos a nossa mãe.

Há aí uma diferença importante entre o lado mulher e o lado mãe da mesma pessoa. E o problema está nisso. E que aquela senhora que é a mãe, transforma-se a certa altura, aos olhos da criança mais crescida, na mulher do pai.
A criança não nega que aquela senhora seja mulher, mas ao mesmo tempo sente que ela é a mãe. Não é fácil separar uma da outra. A mãe vista como mãe ou como mulher repre¬senta, de certa maneira, duas fases diferentes na vida de cada um, e fases difíceis de ultrapassar, até porque o primeiro objecto de amor é sempre a mãe, é com ela que se estabelece a primeira relação, a mais próxima e a mais directa. O pai é sempre o terceiro, é sempre o outro, que vem separar aquele idílio inicial, mas é dessa sepa¬ração que nasce a cultura.
A cultura vem de fora, é património comunitário, e o pai, o estranho, o outro, o terceiro, representa isso mesmo, representa a cultura.

J.S.M. - Há uma passagem das suas Crónicas Quase Moralistas que gostava de lhe ler. Diz assim: «O Natal é a festa que na meninice mais nos alicia porque se inspira na história do nascimento mitificado de uma criança e porque toda a família se reúne e se comem guloseimas, mas o mais importante, porém, são os presentes que, na presença de todos e com muitos doces, se recebem como prémio da nossa inocência de meninos, melhor dito, da nossa suposta ignorância acerca da forma como se geram e aparecem os bebés» .

J.S. - Pois, porque o suposto pecado da criança é saber demais. A criança tem uma ideia sobre a vida dos adultos e ao princípio revela-a. Antes dos 4 ou 5 anos, a criança revela o que pensa acerca disso e as pessoas aceitam, revela o seu pensa¬mento, as suas intenções, mostra até os seus impulsos, e depois, a partir de certa altura, cala-se, o que quer dizer que fica numa situação culposa.

A criança apercebe-se de que há coisas na vida dos adultos que são consideradas pecaminosas, que não devem ser ditas nem feitas senão num grande segredo, ou de forma simbólica, como brincar aos pais e às mães, por exemplo. Se não recebesse um presente, a criança poderia dizer para si mesma: «Eles sabem de qualquer coisa acerca de mim».

Acontece uma coisa idêntica mas mais próxima do consciente quando as crianças começam a corar. E como se se sentissem descobertas na sua intimidade, como se fossem transparentes e as pessoas descobrissem os seus impulsos, os seus desejos, os seus pensamentos. O corar não é só isso, mas é também isso, sobretudo nas crianças duma certa idade.

(Continua)* SANTOS, J., Monteiro, J.S. (1988 b)) - “Se não sabe, porque é que pergunta?”. Lisboa: Assírio e Alvim.

**Psicamalista e Pedopsiquiatra, reformulador dos serviços de saúde mental infantil na década de 60 (ver http://www.casadapraia.org.pt/)


(Desenho de uma criança do Centro Doutor João dos Santos)
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