domingo, 12 de dezembro de 2010

O Reino da Lusitânia Setentrional

Carlos Loures

Ontem ocupei-me do Reino da Traulitânia e hoje vou ocupar-me de outro reino exótico - o Reino da Lusitânia Setentrional. Mas para isso tenho de antes falar ainda de outro reino de que muita gente nunca ouviu falar – O Reino da Etrúria.

O Reino da Etrúria foi criado por Napoleão Bonaparte e teve existência entre e 1801 e 1807. E onde era a Etrúria? - No centro da Península Itálica, ocupando sensivelmente a região da Toscana, e tinha capital em Florença. Para compensar os Bourbons de Parma pela ocupação dos seus domínios, Napoleão criou o Reino da Etrúria. Napoleão, um apaixonado pela história inspirou-se na designação romana para o território etrusco. Era um estado-fantoche e o rei, Carlos da Etrúria, era um Bourbon. Faz hoje 203 anos, em 12 de Dezembro de 1807, o rei Carlos da Etrúria abdicou. Assim o determinava o Tratado de Fontainebleau. Ao dissolver este reino, Bonaparte prometeu outro ao rei Carlos – qual? Nem mais nem menos do que o Reino da Lusitânia Setentrional, grosso modo a Província portuguesa de Entre-Douro-e-Minho – as cidade do Porto e de Braga ficavam integradas nesse fantasioso reino. Napoleão distribuía reinos (com o à-vontade com que hoje alguns barões das finanças distribuem presidências de conselhos de Administração. Mas o que estava por detrás desta fantasia?


Quando em 1806 Napoleão decretou o Bloqueio Continental à Inglaterra, Portugal, respeitando o Tratado de Windsor, recusou-se a aderir. Como represália, o imperador ordenou a invasão do país; mas, para invadir Portugal, tinha de atravessar Espanha. O instrumento jurídico para permitir essa operação militar foi o Tratado de Fontainebleau assinado em 27 de Outubro de 1807. O território português foi previamente retalhado, prevendo-se a divisão em diversos reinos. O que dizia esse documento secreto? Dizia assim:


Conteúdo do Tratado de Fontainebleau


Nós Napoleão, pela graça de Deus e da Constituição, Imperador dos Franceses, Rei da Itália e Protector da Confederação do Reno, tendo visto e examinado o tratado, concluído, arranjado e assinado em Fontainebleau, a 27 de Outubro de 1807, pelo general-de-divisão Michel Duroc, Grão-Marechal do Nosso Palácio, grão-cavaleiro da Legião de Honra, etc., em virtude de plenos poderes conferidos por nós para este fim, com D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lezaun, Conselheiro Honorário de Estado e da Guerra de Sua Majestade o Rei de Espanha, o qual também estava munido com plenos poderes pelo seu soberano, o qual tratado é na forma seguinte:

Sua Majestade o Imperador dos Franceses, Rei da Itália e Protector da Confederação do Reno, e Sua Majestade Católica o Rei da Espanha, desejando regular por comum com sentimento o interesse dos dois estados, e determinar a futura condição de Portugal, de maneira que seja consistente com a boa política de ambos os países; tem nomeado para seus ministros plenipotenciários, a saber: Sua Majestade o Imperador dos Franceses, Rei da Itália e Protector da Confederação do Reno, ao general de divisão Michel Duroc, Grão-Marechal do Palácio, grão-cavaleiro da Legião de Honra; e Sua Majestade Católica o Rei da Espanha, a D. Eugénio Izquierdo de Ribera y Lezaun, seu Conselheiro Honorário de Estado e da Guerra, os quais ministros, havendo ambos mutuamente trocado os seus plenos poderes, concordaram no seguinte:

Artigo 1. — A província de Entre Douro e Minho, com a cidade do Porto, se trespassará em plena propriedade e soberania para Sua Majestade o Rei da Etrúria, com o título de Rei da Lusitânia Setentrional.

Artigo 2. — A província do Alentejo e o reino dos Algarves se trespassarão em plena propriedade e soberania para o Príncipe da Paz (Manuel de Godoy), para serem por ele gozados, debaixo do título de Príncipe dos Algarves.

Artigo 3. — As províncias da Beira, Trás-os-Montes e Estremadura portuguesa, ficarão por dispor até que haja uma paz, e então se disporá delas segundo as circunstâncias, e segundo o que se concordar entre as duas partes contratantes.

Artigo 4. — O Reino da Lusitânia Setentrional será tido pelos descendentes de Sua Majestade o Rei da Etrúria, hereditariamente e conforme as leis da sucessão, estabelecidas na família que ocupa o trono da Espanha.

Artigo 5. — O Principado dos Algarves será tido pelos descendentes do Príncipe da Paz hereditariamente e conforme as leis de sucessão estabelecidas na família que ocupa o trono da Espanha.

Artigo 6. — Se não houver descendentes ou herdeiros legítimos do Rei da Lusitânia Setentrional ou do Príncipe dos Algarves, se disporá por investidura do Rei de Espanha, de maneira que nunca se unirão debaixo de uma só cabeça, nem se anexarão à coroa de Espanha.

Artigo 7. — O Reino da Lusitânia Setentrional e o Principado dos Algarves reconhecerão como protector Sua Majestade Católica o Rei de Espanha, e em nenhum caso os soberanos destes países farão paz ou guerra sem o seu consentimento.

Artigo 8. — No caso de que as províncias da Beira, Trás-os-Montes e Estremadura portuguesa, tidas em sequestro, se devolvam na paz geral à Casa de Bragança, em troca de Gibraltar, Trindade e outras colónias, que os ingleses têm conquistado à Espanha e seus aliados, o novo soberano destas províncias terá, relativamente a Sua Majestade Católica o Rei de Espanha, as mesmas obrigações que tem o Rei da Lusitânia Setentrional e o Príncipe dos Algarves, e as terá debaixo das mesmas condições.

Artigo 9. — Sua Majestade o Rei da Etrúria, cede o Reino da Etrúria em plena propriedade e soberania a Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei da Itália.

Artigo 10. — Assim que as províncias de Portugal forem definitivamente ocupadas, os diferentes príncipes que as devem possuir nomearão mutuamente comissários para verificar os seus limites naturais.

Artigo 11. — Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei da Itália, garante a Sua Majestade Católica o Rei de Espanha, a posse dos seus domínios no continente da Europa, situados ao sul dos Pirenéus.

Artigo 12. — Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei da Itália obriga-se a reconhecer a Sua Majestade Católica o Rei da Espanha como Imperador das Duas Américas, quando tudo estiver pronto para Sua Majestade assumir este título, que pode ser, ou ao tempo da paz geral, ou o mais tardar três anos depois daquela época.

Artigo 13. — As duas altas partes contratantes concordam mutuamente em uma igual divisão das ilhas, colónias e outras possessões ultramarinas de Portugal.

Artigo 14. — O presente tratado será tido em segredo. Será ratificado e trocado em Madrid dentro de vinte dias, o mais tardar, da data da sua assinatura.

Dado em Fontainebleau, aos 27 de Outubro de 1807. = Napoleão = O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Champagny = O Secretário de Estado, Maret.

Na sequência do Tratado de Fontainebleau foi assinada, na mesma data e local, uma Convenção Secreta entre a França e a Espanha tendo por fim a operacionalização da prometida ocupação e divisão de Portugal. Os aspectos práticos da operação – efectivos disponibilizados por um e por outro, quem comandava, por quem seriam divididos os territórios.

Uma curiosidade: o Reino da Lusitânia Setentrional, que (felizmente) nunca chegou a ser constituído, não ficava no território da verdadeira Lusitânia criada pelos romanos e que, como se sabe, tinha como limite Norte o Rio Douro. Napoleão fixou precisamente no Rio Douro a fronteira Sul da sua Lusitânia Setentrional.

Afinal que importância tinham para sua majestade imperial esses mesquinhos pormenores histórico-geográficos?

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