sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Reforma de Bolonha: Porquê, como, para quê? - 1*



Júlio Marques Mota




Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acôrdo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as forcas caudinas.

(Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal, os problemas da Europa, 2.ª ed., Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 62).

Introdução


Num documento da Comissão Europeia, Educação & Formação para 2010: A urgência das reformas necessárias para o sucesso da Estratégia de Lisboa, pode ler-se: “Na recente reunião que realizaram em Berlim, os Ministros da Educação reafirmaram firmemente o seu empenho na criação de um quadro europeu de referência para as qualificações de nível universitário e solicitaram a aceleração das reformas necessárias na arquitectura dos diplomas, nos sistemas de garantia de qualidade e no reconhecimento mútuo de qualificações” .

Este excerto é elucidativo das intenções da reforma de Bolonha. O que aqui está em causa é o reforço da construção do mercado único europeu e, em particular, a intensificação da mobilidade do trabalho no espaço da União Europeia. Pretende-se assim que o “quadro europeu de referência” seja um espaço de homogeneização e de medida das diferentes habilitações que cada um dos Estados-membros possui e que no mercado devem ser valorizadas, avaliadas, certificadas, como investimento.

Na concepção do mercado único europeu está o primado da livre concorrência e do indivíduo como agente económico, sendo o colectivo apenas visto como um conjunto de indivíduos e não como uma sociedade. De acordo com isto, passou-se a assumir a formação como um investimento individual da responsabilidade cada vez maior do estudante. Inversamente, cria-se assim condições para se ir indo desresponsabilizando o Estado pelas Universidades. Neste quadro, para além disto, a educação passa a ser vista como uma acumulação de saberes e/ou competências, mais destas do que daqueles, a serem negociadas num espaço mais vasto que anteriormente.

Bolonha representa mais uma componente deste grande mercado do ensino e formação, vem trazer o primado das competências negociáveis no mercado, dos marketable skills, sobre os saberes. Ou seja, o que se pretende desde logo é que seja o mercado a ditar às instituições universitárias os conteúdos e as práticas de aprendizagem, com a consequente desvalorização dos saberes. Isto é assim na medida em que se quer que seja o mercado o normalizador e quem valida, em última instância, essas formações escolares e os trajectos individuais de cada estudante. Assim se compreende a multiplicidade de opções escolares em muitos cursos, em que as licenciaturas são equivalentes a autênticos menu à la carte, em nome da liberdade e da responsabilidade individual do estudante investidor arbitragista, do estudante que para escolher tem que ser já conhecedor do que precisa de saber, como se fosse possível sabê-lo a priori apenas a partir dos dados presentes do mercado de trabalho, como se este não fosse instável e, por isto, muitas das vezes imprevisível, como se a decisão individual nunca entrasse em colisão com a de muitos outros que individualmente tomaram a mesma opção.

Neste contexto, a função da Universidade é pois a de criar “especialistas” dotados de um stock de competências que se vendam bem no mercado e ao menor custo, ou seja, que permitam a cada futuro trabalhador entrar no mercado de trabalho. O resto, o que faltar à formação para que cada um se adapte às condições exigidas pelo mercado em cada momento caberá de novo à decisão individual, trabalhador ou empresas, num contexto de um vasto mercado de ensino e formação que se pretende que seja cada vez mais resultante do sector privado.

A lembrar tudo isto está um conjunto de declarações da ministra do Ensino Superior em França, Valerie Pècresse, feitas em Outubro de 2010, quando lhe perguntaram para que serve a publicação do Palmarés das Universidades:



Nous devions cette information aux familles et aux étudiants. Car, pour s'orienter à l'université et pour réussir ensuite sur le marché du travail, il faut être correctement informé sur les performances des différentes filières. Longtemps, les universités ont considéré que leur responsabilité s'arrêtait à la délivrance du diplôme. Depuis la loi de 2007 sur l'autonomie des universités, l'insertion professionnelle et l'orientation sont devenues leurs nouvelles missions, comme le souhaitaient les étudiants, aux côtés de la formation et de la recherche.
C'est aussi un instrument de pilotage pour tous. Pour les universités elles-mêmes, afin qu'elles puissent réfléchir aux améliorations nécessaires des filières les moins professionnalisantes, et pour l'Etat, qui en tiendra compte dans ses dotations financières aux campus. D'ici à 2012, nous allons pouvoir bâtir de vrais indicateurs de performance nationaux qui seront intégrés dans le calcul de l'allocation des moyens, comme le prévoit la loi de 2007 .


Este é pois o quadro de Bolonha, este é o quadro de regulação do espaço europeu onde homens e empresas podem ser vistos de igual para igual, objecto de investimentos produtivos, cuja rentabilidade depende exclusivamente das condições dos mercados. Mas a ministra francesa chama a atenção para uma outra implicação de tudo isto: no caso de não haver empregos para os licenciados, tal facto não representa um disfuncionamento do sistema económico e político nem um disfuncionamento do mercado, porque este é sempre eficiente, representa antes a incapacidade ou a incompetência da Universidade em responder às necessidades daquele e, por isso, deve ser sujeita a uma revisão das suas dotações orçamentais.

É neste contexto, cremos, que se pode perceber a lógica da Comissão Europeia que no documento já citado refere que as grandes questões que ao ensino superior são postas são o financiamento, a diversidade das instituições nas suas funções e nas suas prioridades e a criação de pólos de excelência, o que parece indicar o caminho para a existência de Universidades a duas ou mais velocidades.

Analisar a reforma do ensino universitário, dita reforma de Bolonha, analisar os seus efeitos presentes e perspectivar as suas consequências no futuro cremos ser hoje imperioso, necessário e urgente, se quisermos escapar à lógica redutora do ensino universitário que está a ser imposta em nome da ideia de eficiência dos mercados inerente à concepção do mercado único europeu.

Curiosa esta concepção do espaço económico europeu e o quadro em que se inserem as políticas aí praticadas que nos levaram à situação de crise em que nos encontramos, curiosa arquitectura institucional da União Europeia que não é capaz de dar nenhum sinal, não é capaz de utilizar nenhum instrumento de política económica — porque provavelmente não é capaz de o conceber — como resposta contra a quase morte lenta em que estão política e economicamente a colocar a ideia original de Europa comunitária, tudo isto em nome, sublinhe-se, da soberania dos mercados.

Ser-se contra a situação presente é ser-se igualmente contra Bolonha e é neste plano que se vai inserir o nosso discurso.


Sobre a crise, sobre Bolonha


Neste texto, optámos por apresentar um exemplo tirado da economia americana para caracterizar e ilustrar a profundidade de conhecimentos que se deve exigir a um estudante de Economia no mundo de hoje, o que é completamente o contrário do que é possível com a reforma de Bolonha. O exemplo escolhido foi a análise do mercado dos cereais e em particular o do trigo na principal Bolsa de mercadorias do mundo, o Chicago Mercantile Exchange. Não foi por acaso que escolhemos este exemplo e escolhemo-lo por uma série de razões, todas elas graves no contexto de crise presente, razões que passamos a expor:


1. O trigo é um produto base na alimentação de muitos milhões de pessoas, cujos preços têm sido sujeitos a fortes oscilações e objecto de subida continuada durante um certo período de tempo, o que levou muitos milhões de pessoas à situação de fome.


2. Trata-se de um mercado determinante no estabelecer do preço de um bem fundamental, o pão, preço esse que serve de referência para os agricultores de todo o mundo.


3. Sobre o mercado do trigo, tomámos conhecimento de um documento de Junho de 2009 do Senado americano intitulado Excessive Speculation in the Wheat Market que é um claro exemplo do que deve ser um trabalho feito a nível governamental. Não conhecemos nada na Europa de equivalente. A análise em questão debruça-se em profundidade sobre o que são os produtos derivados nestes mercados, produtos estes que como sabemos foram elementos-chave na presente crise. Neste texto sublinham-se bem as diferenças entre as políticas da Administração Roosevelt e as políticas neoliberais das últimas décadas que desregularam completamente estes mercados.


4. A partir do documento referido, podemos discutir, no limite do possível, a problemática dos efeitos da especulação sobre os mercados de matérias-primas e de produtos alimentares bem como a necessidade de que esta seja contida em certos limites, os limites de bona fide, e que pressupõem uma vigilância constante da especulação nestes mercados se queremos que eles cumpram os objectivos para que desde longa data foram criados.


*Observatório Pedagógico do ISEG – 3.º Seminário anual
Bolonha: Diferentes Olhares, 3 de Novembro de 2010


(Continua)
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3 comentários:

  1. Se o Processo de Bolonha não tivesse sido um debate limitado aos meios académicos era mais fácil falar da sua reforma. O mesmo em relação à Estratégia de Lisboa que em vez de um debate amplo teve slogans para consumo eleitoralista.
    Depois a "Europa", que os portugueses acham que não tem a ver com eles, abate-se sobre todos nós.
    A resistência é o autismo militante.
    Mas os problemas actuais não são da "massa bolonhesa" que está a sair agora, é de quem tem confeccionado o prato das políticas económicas, ou seja, a geração de economistas que se multiplica em justificações para a crise e que nos governa há muito.

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  2. E quando forem os economistas "à bolonhesa"? Vai ser melhor ou pior? O que é que achas?

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  3. Não são os economistas que aprovam as leis que criam e protegem as off shores, nem as Leis que desregulam os mercados. São os políticos onde também há economistas.

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