(Continuação)
6. Outras culturas.
Permita-me o leitor dar uma pequena volta por outras terras, essas que os antropólogos estudam fora do continente europeu, para comparar e relativizar o território português. Entre os povos que nós chamamos primitivos, e que são nossos contemporâneos, o conhecimento de como se relacionar com os outros, e o lugar que cada um ocupa na estrutura social, está determinado antes de um indivíduo nascer. O primeiro conhecimento que se incute a cada nova geração é o das hierarquias sociais, que começa logo pelas históricas, quer dizer, desta terra até às dos ancestrais que desde algum lugar fora da matéria observam e intervêm nos destinos dos vivos. Todo o indivíduo Tallensi, no Ghana, como Meyer Fortes estudou (1949), sabe que o seu destino não depende da sua vontade, mas da arbitrariedade da divindade que passou a ser seu antepassado. Assim como todo Tallensi sabe que em caso de guerra (Fortes, 1940), não pode matar nem ferir pessoas do deu próprio sangue que, por causa da lei exógama que governa a troca matrimonial, se encontrem entre o clã com que se batalha. Os meninos Baruya, da Nova Guiné (Godelier, 1982), sabem que um dia serão separados das suas mães para irem viver com homens na casa reservada a eles; o sobrinho do chefe Kiriwina, na Melanésia (Malinowski, 1922 e 1928), está advertido desde sempre que não pode brincar sexualmente com as mulheres jovens de seu tio, sob pena de ser expulso e perder a chefia, a terra e as suas relações. Enfim, uma mulher Maori, na Nova Zelândia (Firth, 1929), quando sai da casa dos pais para ir casar a outra casa, sabe antecipadamente, por causa da cultura ou usos e costumes reiterados, que seu filho voltará um dia ao lar original a reclamar a herança da mãe e trabalhá-la.
Este é o segundo conhecimento que se ensina a cada membro da tribo ou clã, de que há uma estrutura dentro da qual decorre o processo de vida, e que sair dela é o risco de não ser aceite no meio dos outros. Sem dúvida que tudo isto acontece dentro de signos e símbolos que permitem o entendimento das regras do convívio, assim como sob as ideias religiosas que estabelecem que se assim não agirem serão punidos até pelos outros seres humanos. Não há diferença entre estes comportamentos e os nossos, enquanto processo, embora existam enquanto conteúdo. A diferença não é de primitivo contemporâneo para civilizado contemporâneo: a diferença é, simplesmente, entre prática e prática dos povos conforme a sua experiência histórica. A questão que se coloca é como é que se chega a conhecer, quais as maneiras, conteúdos e processos que permitem que a memória social seja incutida e respeitada pelos membros dos grupos.
É verdade que o saber se transmite, mas que saber é transmitido, por que procedimento, é o que interessa analisar. A resposta geral é que é a cultura – isto é, as formas de pensar a vida material e de interacção -, a tradição, os valores, a autoridade, a instituição que ensina. Eu penso que, sobretudo, por existir a possibilidade de discordar, o que existe é um conjunto de conceitos partilhados por todos os grupos sociais de uma mesma cultura, que se impõem como aprendizagem a cada pessoa e que forma o processo educativo ao qual se adere, porque do entendimento individual e social depende a sua subsistência, coordenada com os outros, a felicidade e a permanência entre os seus.
7. Querer aprender.
Não há qualquer dúvida que toda a criança quer aprender, hipótese derivada depois de ter observado o processo educativo durante vários anos, e em culturas diversas. Até por que ganha com isso a aprovação dos seus adultos. Mas, mais importante que isso, porque ao aprender entende o que se passa em torno de si. O processo educativo é, em consequência, mais amplo do que é o ensino em instituições especializadas. A primeira aprendizagem que procura a criança é a de distinguir pessoas. É evidente que, desde o seu nascimento, uma criança tem uma aproximação emotiva, pelo menos à pessoa que a cria e alimenta.
O que eu quero referir aqui é a aprendizagem genealógica, entre pessoas com as quais se tem relações de subordinação, direitos e obrigações, e aqueles que é preciso evitar. A distinção genealógica leva à distinção entre os parentes e os que o não são, tais como vizinhos e amigos, adultos e pares, jovens e velhos, homens e mulheres. Daí, segue-se, apenas numa ordem convencional através do crescimento, a distinção do que cada um deles faz, qual o seu trabalho, o que parece ser o que a criança quer imitar. Em qualquer cultura, o que se quer aprender é altamente diferenciado: primeiramente, porque se o grupo é altamente hierarquizado, isto é, com pouca mobilidade, a criança será e é orientada para o trabalho da pessoa que depois vai substituir; se a sociedade é menos hierarquizada, e apesar de entender principalmente o que fazem os adultos com os quais convive, prática que tem grande influência na sua memória, uma criança pode ser orientada para conhecimentos diferentes daqueles do lar. Seja como for, na aprendizagem existe sempre o limite do que o grupo sabe, conhece e pratica, o que a nível universal resulta de sociedades e povos pescadores, pastores, caçadores, industriais e outros. É na medida da compreensão do que aí é feito, que quem está a aprender ganha ou não o respeito dos restantes. Respeito que é um estímulo para querer aprender: todo o pequeno ser que mostra conhecimento e entendimento, recebe também a aprovação dos demais. Na vida quotidiana, o processo educativo é funcional à incorporação dos mais novos nos afazeres do grupo, uma incorporação interessada por parte dos adultos que estão empenhados em ter permanentemente mão-de-obra e outras inteligências que colaborem com eles. O facto de percorrer os sítios e lugares onde tudo acontece é já parte do processo. Para levar as crianças a outras actividades, é preciso contrariar as primeiras tentativas de imitar os adultos com mais importância. E é isto o que se faz nos processos de iniciação, quer entre os povos primitivos quer nos rituais dos povos denominados civilizados. Em ambos os sistemas existem, ou estão organizados, grupos de especialistas que empurram o seu candidato para este desencadear do processo mais primário de querer aprender. Saber é fazer parte dos que têm o conhecimento. Saber o quê é ser parte útil à função social da continuidade histórica.
O problema de querer saber apresenta-se quando no grupo aparecem formas diferenciadas de técnicas para ensinar, e a arte de contrariar não fica nas mãos do grupo, mas nas mãos do poder que destina a sua actividade a só preparar essa política de contrariar.
(Continua)
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
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