domingo, 26 de dezembro de 2010

A Sereiazinha - Hans Christian Andersen (1)




Lá longe, bem longe no mar a água é tão azul como as folhas da centáurea mais bonita e tão límpida como o vidro mais puro, mas é aí também muito funda, mais funda do que uma âncora pode descer. Muitas torres de igrejas seria preciso colocar umas sobre as outras para do fundo virem a surgir ao de cima da água. É aí que vivem os povos marinhos.

Mas não se deve pensar de qualquer modo que o fundo só tem areia branca e mais nada. Não senhor, aí crescem árvores e plantas maravilhosas, de tão delicados troncos e folhas, que com a mínima agitação da água se mexem, como se fossem vivas. Todos os peixes, pequenos e grandes, deslizam por entre os ramos, como voam cá em cima os pássaros no ar. No ponto mais fundo está o palácio do rei do mar, as paredes são constituídas por corais e as janelas longas em bico por âmbar do mais claro, mas o telhado é de conchas, que se abrem ou fecham, conforme a água se move. É um espectáculo lindo de se ver, pois em cada uma das conchas há pérolas a brilhar. Bastava só uma para vir a ser um grande luxo na coroa duma rainha.

O rei do mar tinha enviuvado há muitos anos, mas a mãe velha cuidava da casa. Era esta uma sereia inteligente, orgulhosa, porém, da sua nobreza, por isso andava com doze ostras na cauda: as outras sereias de distinção só podiam trazer seis. De resto merecia ser louvada, espe¬cialmente pelo muito que se ocupava com as princesas do mar, suas netinhas. As princesinhas eram seis crianças lindas, mas a mais nova era a mais bonita de todas. A pele era tão clara e suave como uma pétala de rosa, os olhos tão azuis como o lago mais fundo, mas igualmente como todas as outras não tinha pés, o corpo terminava em cauda de peixe.

Podiam todo o dia brincar em baixo no palácio, nos salões onde flores vivas cresciam das paredes. Se as janelas grandes de âmbar ficavam abertas, entravam os peixes, tal como muitas vezes andorinhas entram em nossas casas, quando abrimos as janelas. Mas os peixes nadavam direitos às princesinhas, comiam das suas mãos e deixavam fazer-lhes festas.

Cá fora, diante do palácio, estava um jardim grande com árvores rubras de fogo e azuis escuras. Os frutos luziam como ouro e as flores pareciam um fogo ardente, pois agitavam constantemente o tronco e as folhas. O próprio chão era da areia mais fina, mas azul como a chama do enxofre. Sobre tudo isto aí em baixo reflectia-se um clarão azul maravilhoso. Julgar-se-ia antes que se estava no alto mar a ver só céu por cima e por baixo e não no fundo do mar. Com tempo calmo podia-se observar o sol, parecendo uma flor de púrpura, do cálice irradiando toda a luz.

Cada uma das princesinhas tinha o seu cantinho no jardim, onde podia cavar e plantar como lhe aprouvesse. Uma deu ao seu canteiro a forma de uma baleia, outra pareceu-lhe melhor que o seu se assemelhasse a uma sereiazinha, mas a mais nova fez o dela completamente redondo como o sol e só pôs aí flores brilhando vermelhas como ele. Era esta uma criança estranha, calada e pensativa e enquanto as suas irmãs se enfeitavam com as coisas mais extraordinárias que colhiam dos navios naufragados, só se interessava ela, além das flores cor-de-rosa que se assemelhavam ao sol lá em cima, por uma bonita estátua de mármore dum belo jovem. Era a estátua esculpida em pedra branca e clara, vinda para o fundo do mar com outros destroços. Plantou junto à estátua um chorão cor-de-rosa que cresceu maravilhosamente, deixando pender os ramos frescos sobre esta, para baixo para o fundo de areia, onde as sombras se mostravam violetas e com movimentos iguais aos dos ramos. Parecia que a copa e as raízes estavam a brin¬car, beijando-se umas às outras.

Nenhuma alegria era para ela maior do que ouvir falar do mundo dos seres humanos lá em cima. A velha avó tinha de contar tudo o que sabia dos navios e cidades, dos homens e dos animais. Parecia-lhe de modo especial e estranhamente belo que lá em cima, na terra, as flores exalassem perfume, o que não sucedia no fundo do mar. E que os bosques fossem verdes e que os peixes, que aí se viam entre os ramos, pudessem cantar tão alto e tão admiravelmente que dava gosto. Eram os passarinhos, aos quais a avó chamava peixes, pois doutro modo não a com¬preenderiam, nunca haviam visto um pássaro.

— Quando fizerem quinze anos - disse a avó — , receberão autorização de subirem à super¬fície do mar, para se sentarem ao luar nas rochas e ver os grandes navios navegando ao largo, e bosques e cidades hão-de vir a ver! No ano seguinte, uma das irmãs fazia quinze anos mas as outras... sim, cada uma era um ano mais nova do que as outras... a mais nova tinha portanto bem cinco anos a esperar antes de poder subir do fundo do mar para ver como eram as coisas connosco. Mas cada uma prometera contar às outras o que vira e achara mais bonito no primeiro dia, pois a avó não lhes contara bastante. E tanto havia que precisavam de saber!

Nenhuma estava tão ansiosa como a mais nova, precisamente aquela que tinha de esperar mais tempo e que era tão calada e pensativa. Ficava muitas noites com as janelas abertas a olhar a água azul-escura, onde os peixes agitavam as barbatanas e as caudas. A lua e as estrelas conseguia-as ver, a brilhar propriamente bastante pálidas, mas, vistas através da água, pareciam muito maiores do que aos nossos olhos. Se aí deslizava uma espécie de nuvem negra por baixo, sabia então que era uma baleia que nadava por cima dela ou um navio com muitos seres huma¬nos. Não imaginavam estes certamente que uma linda sereiazinha estava lá em baixo a estender as mãos brancas para cima, na direcção da quilha.

Então, fez a princesa mais velha quinze anos e pôde assim subir à superfície do mar.


Quando regressou, tinha centenas de coisas a contar, mas a mais bonita, disse ela, foi deitar-se ao luar num banco de areia no mar calmo, a ver junto à costa a cidade grande, onde brilhavam luzes, como centenas de estrelas, escutar a música e o alarido e o rumor das carru¬agens e dos homens, ver as muitas torres de igrejas e as suas agulhas, e ouvir os sinos tocar. Justamente porque lá não podia ir, mais ansiava por tudo aquilo.

Oh! Como a escutou a irmã mais nova! E quando depois, à noite, se pôs na janela aberta a olhar através da água azul-escura, pensou na cidade grande com alarido e rumor, parecendo-lhe que chegava ali em baixo, até ela, o som dos sinos das igrejas a tocarem.

No ano seguinte, recebeu a segunda irmã autorização de subir pela água e nadar por onde quisesse. Emergiu exactamente quando o sol se punha e esta visão achou-a como a coisa mais bonita. Todo o céu parecia como de ouro, disse ela, e as nuvens, sim, a sua beleza não conseguia descrevê-la suficientemente! Tinham flutuado ali vermelhas e violetas sobre ela, mas mais rápido voou, como um longo véu branco, um bando de cisnes brancos ali sobre a água, onde estava o sol. Nadou na direcção do sol, mas este afundou-se e o clarão róseo sumiu-se sobre as águas e entre as nuvens.

Um ano depois veio a terceira irmã cá acima, era a mais audaciosa de todas, portanto nadou por um longo rio adentro, que desaguava no mar. Viu belas colinas verdes com vinhas, castelos e quintas espreitando por entre bosques magníficos. Ouviu como todos os pássaros cantavam e o sol brilhava tão quente que teve de mergulhar várias vezes para refrescar o rosto ardente. Numa baiazinha encontrou um bando de serzinhos humanos. Inteiramente nus, cor¬riam e chapinhavam na água. Quis brincar com eles, mas correram assustados a fugir e veio então um animalzinho negro. Era um cão, mas ela nunca vira um cão. Ladrou-lhe tão terrivel¬mente, que teve medo e afastou-se para o alto mar. Mas não podia nunca esquecer os bosques magníficos, as colinas verdes e as lindas crianças que sabiam nadar, se bem que não tivessem nenhuma cauda de peixe.

A quarta irmã não foi tão audaciosa, ficou no meio do mar bravo e contou que foi isso precisamente o mais bonito. Via-se muitas milhas longe à volta, e o céu por cima era como um grande copo em forma de sino. Navios tinha-os visto, mas bem ao longe, pareciam gaivotas. Os golfinhos divertidos tinham dado cambalhotas e as baleias grandes esguichado água das narinas, assim parecendo centenas de repuxos ao redor.


(Hans Christian Andersen, Histórias e Contos Completos, Gailivro)





(Continua)
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A partir de 3 de Janeiro, neste horário das 14:00, poderemos entrar no Jardim das Delícias pela mão da Augusta Clara de Matos. Foi ela que nos ofereceu os contos de Natal e prossegue a sua selecção com esta maravilhosa história de Hans Christian Andersen.

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