quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Um conto de Natal de Júlio Verne - Os Grandes Frios do Natal



A temperatura caíra subitamente na sala para sete graus abaixo de zero (-22º centígrados).


Mas se o doutor estava já sem imaginação, já não sabia o que fazer, outros sabiam-no por ele. Assim Shandon, frio e resoluto, Pen, a cólera espelhada nos olhos, e dois ou três dos seus camaradas, os que ainda conseguiam mexer-se, avançaram para Hatteras.


- Capitão! – disse Shandon.


Hatteras, absorto pelos seus pensamentos, não o ouviu.


- Capitão! – repetiu Shandon, tocando-lhe na mão.


Hatteras endireitou-se.


- Senhor – disse.


- Capitão, já não temos fogo.


- E então? – respondeu Hatteras.


- Se é sua intenção matar-nos de frio – retomou Shandon com uma terrível ironia – pedimos-lhe que nos informe desde já!


- A minha intenção – respondeu Hatteras num tom grave – é que cada um aqui cumpra o seu dever até ao fim.


- Há algo que está acima do dever, capitão. – respondeu o imediato – É o direito à própria vida. Repito-lhe que não temos fogo e, se isto continua, dentro de dois dias, nenhum de nós estará vivo!


- Não tenho madeira – respondeu Hatteras em voz surda.


- Pois bem! – exclamou violentamente Pen – Visto que não há mais madeira, resta-nos ir cortá-la onde ela existe!


Hatteras empalideceu de cólera.


- Onde?


- A bordo – respondeu insolentemente o marinheiro.


- A bordo! – retomou o capitão, de punhos crispados e os olhos brilhantes.


- Sem dúvida – respondeu Pen – Quando o navio já não serve para transportar a sua tripulação, queima-se o navio!


No início desta frase, Hatteras empunhara um machado; no fim, o machado erguia-se sobre a cabeça de Pen.


- Miserável! – exclamou.


O doutor atirou-se para a frente de Pen, que o empurrou; o machado, caindo por terra, fendeu profundamente o soalho. Johnson, Bell, Simpson, agrupados em trono de Hatteras, pareciam decididos a apoiá-lo. Mas umas vozes lastimosas, queixosas, dolorosas, escaparam-se dos catres transformados em leitos de morte.


- Fogo! Fogo! – gritavam os infortunados doentes, invadidos pelo frio sob os cobertores.


Hatteras fez um esforço, e, passados alguns instantes de silêncio, pronunciou estas palavras num tom calmo:


- Se destruirmos o nosso navio, como regressaremos a Inglaterra?


[…]


O gelo alastrava criando longos espelhos foscos sobre o soalho; um espesso nevoeiro invadia a sala; a humidade caía como neve espessa; já não se conseguiam ver uns aos outros; o calor humano fugia das extremidades do corpo; os pés e as mãos começavam a ficar roxas; a cabeça envolvia-se de um manto de ferro, e o pensamento confuso, diminuído, gelado, atingia o delírio. Sintoma aterrorizador: a língua não conseguia já articular uma palavra.


Depois do dia em que ameaçaram queimar o navio, Hatteras passeou longas horas na ponte. Vigiava, velava. Essa madeira era a sua própria carne! Cortar-lhe um pedaço era como cortar-lhe um membro. Estava armado e de guarda, insensível ao frio, à neve, a esse gelo que enrijecia as roupas e o envolvia como uma couraça de granito. Duk, compreendendo-o, ladrava sobre os seus passos e acompanhava-o com os seus uivos.


Contudo, no 25 de Dezembro, desceu à sala comum. O doutor, aproveitando um resto de energia, dirigiu-se a ele.


- Hatteras – disse-lhe – vamos todos morrer por falta de fogo!


- Nunca! – disse Hatteras, sabendo bem a que pedido respondia deste modo.


- É preciso – retomou o doutor.


- Nunca – retomou Hetteras com mais veemência – nunca tal consentirei Se quiserem, desobedeçam-me!


Assim era dada a liberdade de agir. Johson e Bell lançaram-se para a ponte. Hatteras ouviu a madeira do seu brigue estalar sob o machado. Chorou.


Era dia de Natal, a festa da família, em Inglaterra, a noite das reuniões infantis! Que lembrança amarga a dessas alegres crianças em torno da árvore enfeitada! Quem não se recordava das grandes peças de carne assada que recheavam o boi engordado para a circunstância? E essas tortas, essas tartes, onde ingredientes de todo o género eram misturados para esse dia tão caro aos corações ingleses? Mas aqui, havia apenas dor, desespero, miséria no seu mais baixo grau, e, como tronco de Natal, os pedaços de um navio perdido na mais recôndita zona glaciar!


Contudo, sob influência do fogo, o sentimento e a força regressaram ao coração dos marinheiros; as bebidas escaldantes de chá e café produziram um bem-estar instantâneo, e a esperança é algo de tão tenaz ao espírito que voltaram a ter fé. Foi com estas alternativas que se terminou este funesto ano de 1860 cujo Inverno precoce deitara por terra os projecto
 ardilosos de Hatteras.


(101 Noites de Natal, uma antologia literária, 101 Noites)


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A partir de Janeiro próximo, neste horário, será diariamente apresentada a rubrica "Jardim das Delícias", coordenada por Augusta Clara de Matos. A série de contos de Natal que apresentamo, é por ela seleccionada.




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