terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Verdade? - Um conto de Natal de Urbano Tavares Rodrigues

Chovera muito, durante horas e horas. Ouvi gritos de aves, trovões e imaginei o súbito fulgor dos relâmpagos na noite dos olivais, tão perto do nosso “monte”.

Mas era Natal. E, apesar do frio, que não apertava assim tanto, teimei em sair. “Vê lá se te molhas”. Com duas camisolas enfiadas pela cabeça, uma sobre a outra, como os meus irmãos, e calçando botas grossas, fomos espreitar um lírio de água, naufragado quase à entrada da horta, na zona dos tanques.

O sol subia no firmamento, mas as ervas ainda estremeciam, molhadas, sentia-se a húmida respiração de todas as coisas matinais.

Fomos os três espreitar o mistério dos valados e barrancos, onde se acoitavam melros, rouxinóis, toutinegras e outros pássaros; e dávamos com os pequenos paraísos verdes que nasciam daquela água de Natal, entre pedras, silvas, musgos e débeis cascatas meio escondidas.

No regresso distanciei-me dos meus irmãos e fui averiguar se havia morcegos no casão. O que vi era bem diferente. Dois trabalhadores da apanha da azeitona, um rapaz e uma rapariga de cerca de vinte anos, que por qualquer motivo se haviam isolado do rancho, ali quase completamente nus, enfrentavam-se como vagas intensas de desejo.

Agarram-se, caem sobre a palha, a espada de luz que nele entretanto cresceu desaparece na escuridão do ventre dela, que protesta, mas em voz baixa, e em breve é tal o delírio que os consome, os afogueia, que as mãos de um se prendem nos cabelos do outro e vice-versa e os puxam, barbaramente, beijando-se, mordendo-se.

Tenho buracos na minha memória, verifico-o quando tento recordar figuras e cenas desse tempo. Lembro-me no entanto bem de ter deixado os meus irmãos frente ao forno do pão e haver prosseguido ainda o passeio até à ribeira do Ardila, onde sempre me encantava aquele silêncio fresco, só cortado pelo murmúrio da água e pela música do vento nos choupos, hoje quase desaparecidos, e nos amieiros, nos freixos.

Sentei-me numa pedra, que ali fazia de banco e fiquei a gozar o calor breve do meio-dia, a doçura da luz do Inverno na terra lavrada e nos campos de trigo a querer nascer. O sol pendurava-se também nas azinheiras. Era lindo.

Foi então que o vi, sentado junto a uma malhada de pastor, que não lhe pertencia.

Olhou-me, desconfiado, mas tinha a cor do céu na íris. À parte a beleza rara desses olhos, todo ele era sujidade, lama, farrapos; até trazia os pés enrolados em trapos.

Estivemos ainda uns segundos a observar-nos, até que, movido por um misto de curiosidade e de solidariedade, me levantei e caminhei lentamente para ele.

A desconfiança do homem aumentou. Encolheu-se, como se receasse que eu fosse bater-lhe ou insultá-lo.

- Creio que já o vi por estas bandas. Posso ajudá-lo com qualquer coisinha para o Natal?

- Para mim não há Natal.
Os meus dez anos empertigados e atrevidos tremelicaram e logo perderam a segurança.

Continuava remexendo nos bolsos das calças, à procura da notazita que o meu pai me havia dado para comprar o que eu quisesse, quando fosse à vila; e o desgraçado, tão aflito ou mais do que eu, parecia disposto a mudar de sítio.

- Fique, por favor, eu não quero estorvá-lo.

E, melhor ou pior, acomodando-me ao lado dele, lá lhe falei da fraternidade do Natal, com que tantos nessa altura enchiam a boca ou a vaidade, e consegui por fim que ele se abrisse comigo, a pouco e pouco.
Tinha sido motorista de táxi e gostava da sua profissão. Um dia como os outros, numa rua estreita de Moura, uma menina de quatro anos saíra a correr do poial de uma porta e metera-se-lhe à frente. Ficara paralisado, sem reflexos, e a criança morta. Na Guarda Republicana tinham-lhe batido. Que estava bêbado. Era um irresponsável, um anormal. Matar assim uma criança.

À saída o pessoal tinha-o quase linchado. Nem tentara defender-se. De começo fora o horror total, agora começava até a sentir-se culpado. E a imagem da criança morta perseguia-o em sonhos.

De tanto haver chorado – pensei eu – ficara com aquelas rugas, aqueles olhos lacrimosos onde o azul desmaiava.

- Fui condenado, com pena suspensa, uma injustiça. Perdi o emprego. Já todos acreditavam que eu tinha bebido e, coberto de insultos, doente, nem eu já tinha qualquer certeza.

Estava a vê-lo rebaixado, a levar bofetadas e pontapés em plena rua, a afastar-se de toda a gente, a aceitar a caridade ritual de certos ricos ou a piedade dos pobres quando calhava, cada vez mais humilhado, mergulhado no silêncio.

- Dizem que eu já tinha pancada e que endoidei, porque assim tinha de ser.

- Vamos fazer um almoço de Natal nós os dois, aqui mesmo? Diga que sim. Eu vou buscar comida ao “monte”.

- E os seus pais?

- Eu cá me arranjo.

Larguei a correr em direcção ao “monte” onde, desconfiando de que esta minha loucura não ia ser particularmente bem aceite, arrebanhei um pão e uns chouriços, verifiquei que trazia no bolso uma navalhinha, apanhei uma garrafa de vinho. Água Castelo, com picos, para mim, e um pedaço de sericaia. Meti tudo num alforge e ala para o rio.

A primeira visão que me aqueceu a alma foi a de uma cegonha branca, que entretanto tinha pousado num choupo, e logo após ouvi a restolhada de um bando de codornizes no seu voo rasante sobre as águas que a brisa muito leve parecia florir.

Para lá do rio a imensidade do montado falsamente adormecido pelo sol de inverno.

Cercado pelo sol, e com os pés frios, o velho (seria mesmo velho?) acendia uma fogueira, à volta da qual nos instalámos para comer. Era mesmo um saco de ossos, contorcidos, que deviam doer. E fedia, nos seus andrajos.

Dispusemos a comida num taco de madeira alisada, que ele desencantara por ali. Não conseguiu sorrir, mas os seus enrugados olhos azuis tinham por vezes um brilho fundo, que talvez pudesse ser de gratidão.

Dava a impressão de lhe saber bem o chouriço, mas não tocou na sericaia. Já era provavelmente alimento a mais para quem vivia de sobras e outras vezes calava a fome dormindo. Tinha posto uma serapilheira a agasalhar-lhe os joelhos, que os farrapos deixavam a descoberto.

Respondia apenas por monossílabos às minhas perguntas de circunstância, mas pelos estremecimentos da sua boca amarga, quase sem dentes, pressenti que desejava dizer-me alguma coisa. E disse, por fim.

- Eu contei-lhe a verdade da desgraça que me caiu em cima, mas não contei tudo. É que talvez eu pudesse tê-la salvo, se não estivesse embriagado. Estava mesmo bêbado. A minha companheira tinha-me deixado. E eu andava já começando a destruir-me. Aquela menina mora no meu peito, é uma chaga sem cura. Aí tem a razão deste estado em que me vê. Muitos terão esquecido, já nem me reconhecem. Eu é que continuo a culpar-me.

- É Natal! É Natal! – gritam uns miúdos, que passam por nós correndo e atirando pedras ao rio.

( A Última Colina, Publicações Dom Quixote, 2008)

A partir de Janeiro próximo, neste horário, será diariamente apresentada a rubrica "Jardim das Delícias", coordenada por Augusta Clara de Matos. A série de contos de Natal que iremos apresentando, é já por ela seleccionada.

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