domingo, 2 de janeiro de 2011

Noctívagos, insones & afins - O tempo definido entre picunche, galegos e portugueses

Mulher mapuche com as sua joias  tradicionais que indicam a pasagem do tempo

Raúl Iturra

Tenho escrito uma carta aberta ao Poder Legislativo de Portugal, para definir una política da educação como primeira prioridade do seu Governo. As ideias não têm sido retiradas de ideias improvisadas. Uma delas, provem de um livro, resultado do meu trabalho de campo em vários sítios diferentes, texto usado já antes para o blogue: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto, 1998. A minha teoria sobre a educação não está apenas materializada em este texto, bem como em outros vários que os leitores devem conhecer. Este excerto é apenas parte do livro citado e a teimosia de três raparigas que queriam aprender na vida académica, o que já sabiam na vida real, empregar-se e ganhar dinheiro para serem livres das tutelas familiares.


Queira lembrar o leitor, que denomino tempo a cronologia da sua passagem. Esse, que era delineado enquanto expunha saber. Pense o leitor, que talvez Jack Goody (1973,1976), bem como os seus mestres Meyer Fortes (1938 e 1970) e Evans Pritchard (1962), todos eles mestres meus também, tenham tido razão ao correlacionar o tempo e a estrutura dos grupos sociais, entre os quais, o doméstico. Como debato em outro texto (1991). O tempo é o crescimento da experiência. O tempo é a reprodução do grupo. O tempo é o ganhar saber do indivíduo. O tempo, em fim, é a entrada do indivíduo aos vários sítios sociais. Quer a sua entrada ao próprio saber, quer ao saber do grupo, aberto como um leque. Cada momento da vida, é entendido de forma diferente, conforme a experiência pragmática que a pessoa desenvolve e incute no seu entendimento. Nas suas ideias, nas suas alianças com os outros, nas suas separações dos outros, nos seus lutos, nas suas novas alianças. Victoria é muito característica. Uma pequena Picunche, no seu tempo de criança subordinada ao lar, que vive as experiências dos seus pais, sem dar por isso. Há já dois irmãos e uma irmã, bem mais velhos do que ela, quando ela aparece na Historia. Germanos, como em Antropologia denominam-se aos irmãos. Germanos, que já tinham um conglomerado de outras pessoas de fora do lar, nas suas relações. Relações que Victoria perturbava, por refrear a dinâmica mais desenvolvida, de esses germanos mais velhos. A sua alternativa é mais interna, mais íntima do lar: os pais, os cantos do mesmo, as fantasia desses cantos, os jogos solitários, a cozinha, esse sítio de trabalho da Yeyé. As saídas com essa mãe Yeyé aos sítios dos adultos, a relação com os adultos, intermediada pela Yeyé. Beatriz é já uma pré adolescente de onze anos, quando a sua irmã Victoria aparece, e os irmãos Maurício e Eduardo, homens de experiência larga de adolescentes desenvolvidos ( ver Genealogia 1).O grupo pessoal de Victoria, o grupo que a recebe, tem já um pai com filhos alem do quadro, e filhos do quadro, como gostaria dizer: do matrimónio, de fora do matrimónio. Em consequência, o Irmão do quadro, Maurício, tinha conhecido o silêncio da luta do casal, fora das relações abertas com a vizinhança que ainda os não acolhia, os cuidados preferenciais de uma mãe nova para um filho só, e foi aceitando a entrada dos outros á sua vida. Havia escola, ia á escola, era o pioneiro do livro e do caderno, essas novidades do saber de fora do lar, às quais os seus irmãos ficabam habituados pela prática de os ver. Como Victoria, a intelectual do grupo, a Técnica Agrícola de hoje, superiormente habilitada na cercania da cidade de Talca, sem surpresa nenhuma com a disciplina de estudar. De conhecer métodos para entender a realidade pragmática. De conhecer experiência de interacção com pares e experiência quotidiana do trabalho de adultos e dos horários de outros. De festas e ritos. Descoberta feita pelos mais velhos que Victoria tinha recebido como uma questão de sui. Entre 1957 e 1997, mediam quarenta anos de acumulação de saber, como denomino em outro texto ( 1990a, ), esse habitus de Bourdieu que Madureira Pinto (1985) e Eduarda Cruzeiro (1990), entre outros têm desenvolvido para nos entender. Acumulação de saber transferido sem que Victoria soubesse: as conversas são uma forma de educação cidadã que a família entrega. Da qual os pais, ocupados com o cálculo e a maximização de John Stuart Mill (1844) e o uso da terra á David Ricardo (1817), autores dos quais eles nunca ouviram mas que usavam as técnicas de Clodomiro e da Yeyé para teorizar universalmente, conceitos que feitos acção, os ocupavam. E não lhes permitia entender o mundo mais além das práticas reprodutivas. É um conjunto acumulado de entendimentos comunicados e trocados, mas não partilhados, que caem dentro das ideias de Victoria. Como tinham estado a cair dentro das mãos dos seus irmãos Maurício, Eduardo e Beatriz, ao longo dos anos. Maurício devia ajudar ao pai nos trabalhos rurais, enquanto o pai guiava camiões, trabalho rural ao qual Eduardo devia-se juntar depois. Enquanto Beatriz, aprendia os trabalhos da mãe, para a libertar de Victoria e assim ela tecer á Inca, cozinhar á Espanhola, cuidar da horta á Inquilina. Como no sitio vizinho de Huilquilemu, em que eu vivi etnograficamente (1972, a) e 1973). Onde Margarida regava a horta e Ventura trabalhava nas terras do patrão, pelos anos sessenta deste século. Victoria, entrava ao ciclo histórico no meio de um tempo com Avó e Avô paternas, e Avô materna solteira com sete filhos crescidos e adultos. Onde um Bisavó materno, geria as contas dos proprietários de terras que mais tarde haviam de ser de todos. Victoria nasce dentro da herança do saber da subordinação ao proprietário, pessoa meio divina, dadivoso em bens, cuja propriedade era a condição para a existência reprodutiva de todos: todos aí trabalhavam, de aí vinham produtos e dinheiro para usar a natureza que mantinha activa a natureza humana de todos. Inquilinos por ofício, Picunche por origem, definido o ser Picunche no agir e o ofício. Assuntos que ficam para o capitulo 3. Só resta entender a heterogeneidade que circula na formação do saber de Victoria. O natural que é para ela perceber a multifacetada conduta dos seus adultos e pares. Diferente de Beatriz, a sua irmã onze anos mais velha como foi dito, que foi a pequena mãe da pequena irmã. Encargo que prepara a então adolescente para o dia de ser ela própria mãe. O tempo acumula saber, o tempo ajuda a seleccionar saber, o tempo permite escolher entre as alternativas que, por vias emotivas, as actividades normais dos outros, e as vidas dos outros, mostram á vida da pequena. Não foi nada estranho que Victoria fosse embora à cidade, para ser Técnica Agrícola, para aprender de formas académica, o que já sabia na experiência. Donde, era só pôr conceitos no saber. A parte mais difícil. Traduzir à pratica, as ideias de outrem de terras longínquas as suas. O grupo social, tratava a Victoria como uma mais de entre eles, porque o saber de Victoria não era entendido nem procurado pelos vizinhos. Nem ela queria reparti-lo, não era necessário: a sua inserção entre os seus era por ter aí nascido, filha de Reineria, essa Yeyé da qual tenho andado a falar neste texto, e desse Clodomiro, repartido entre tanta casa. O seu saber não mudava o seu estatuto. O mundo ao qual tinha entrado Victoria, era o mundo do trabalho, de circulação emotiva, da não surpresa entre a doutrina dominante e a prática quotidiana. Os seus colegas tinham o trabalho de conciliar a doutrina oficial do País dominante, e a doutrina não escrita e mal lembrado o motivo, do seu sítio de origem. Victoria, como criança, também, ao qual acrescenta o saber conceptual, que a Brünhilde, essa Walkiria de Wagner (1876), dá-lhe armas para cavalgar pela vida. Longe do Wothan , e do Walhala de Pencahue. O tempo, conjuga saberes, se a pessoa se souber distanciar. Emotivamente. Fisicamente. Geograficamente. Como Pilar fez.

Pilar, a filha de Hermínio de Vilatuxe, estava mais do que farta de tomar conta de cabras e irmãos. Esse papel da Beatriz de Pencahue, que nunca quis deixar e lá foi ficando. Pilar queria música e, sem conhecer a cidade de Compostela, essa cidade húmida e sem amigos, foi, viveu, lutou, outra Brünhilde, também com a lança e o cavalo das suas ideias. Deixando o Walhala á Wotan, o mito. Os pais não foram. A mãe não entendia, o pai estava ocupado com a sua vida. Eram muitos em casa. E foi a aprender teoria e clarinete, insttumento que tinha estudado na banda de Vilatuxe com Pepe o Xastre Novo. E por Compostela foi ficando por tempos compridos. Pilar, que como Victoria, nasceu num grupo. O de Victoria, estava estruturado, feito, organizado, e tinha, como tenho já definido em 1987 em um texto castelhano (1987), os movimentos da lua: crescente, minguante, cheia, não lua. Ora os irmãos casavam e iam, ora abandonavam mulher e filhos e tornavam ao lar original. O moravam perto. Picunche, duas culturas: uma de larga data com tempo e subsumida, outra de curta data e com tempo raro, a dominar Pilar. Duas culturas sólidas em luta centenária, de dois mil anos de ideias, de monogamia heterossexual estabelecida, de compartir o teto do lar todos os dias. As disputas e as alegrias, os debates e as magoas. Pilar queria uma vida de ela. A sua mãe saiu da sua casa paterna para a casa marital, depois de dois filhos nascidos. Nasce outro, e Pilar, e o pequeno Miguel. E as cabras, essa irmandade sempre a crescer e a ser cuidada por todos, porque é de aí que todos vivem. Há primeiro um Avó José António para cuidar, na sua viuvez e velhice. E a mãe de Pilar, toma conta de ele, como de todos. E vive fechada em casa e na cozinha, e assim vai crescendo Pilar, a observar e formar saber de que a mulher é para ficar fechada em casa a tomar conta das gerações: os que entram e os que saem. E fica horrorizada e fala e disputa com o meu velho amigo Hermínio, até ir embora a Compostela. O tempo acumulado em Pilar, é da Avó paterna, a fugir sempre de casa e passear. Dos Avos maternos, a andarem com a família, trás o arado. Os dos vizinhos, parentes e amigos, a terem uma mulher que cozinha, tece, calceta, faz amor, gera filhos. Enquanto que os romances de Garcia Marques (1967), de Camilo José Cela (1983), as ideias de Alfonso Castelão (1944) e de Emília Pardo Bazán (1887), entram pela sua cabeça dentro. Como se a cidade próxima, Lalín, fosse o sitio onde esses romances são vividos. E até organiza uma associação com esse meu filho emotivo do passado, Carlitos Fernández, para desentranhar o passado da aldeia e exibi-lo aos vizinhos. Exposição que fica fora dos sítios dominados pelo tio Amado, irmão da mamã Esperanza, gestor da interacção de amigos e parentes para os trabalhos da cooperativa, de colaboração recíproca, referida por mim faz já duas décadas (1977). O saber de Pilar é para manipular e estrategizar o comportamento de ela e dos outros. E vai embora. Até ter que voltar pelo cansaço que impõe a cidade e o conservatório e a distancia da família, com todo, amada. Reconhece que é bom estar perto dos pais, conhece ao seu Alfonso, e passa a morar em casa de ele, a seis quilómetros do lar paterno. Lar longínquo que é perto. Já com carro e telefone, o que Victoria não tinha. Carro que permite sair, estar em contacto, ir e voltar várias vezes se for preciso. E já pode dizer que é música, assim como as suas amigas são comerciantes, medicas, advogadas, técnicas em formação profissional. Em esse Vilatuxe que em vinte e cinco anos muda do carro de bois, para o carro de motor. Das mensagens enviadas de palavra, às mensagens telefonadas. O mundo de Pilar muda, e ela, com ele. Como os seus irmãos, como os seus parentes. Como o do seus pais, que fazem agricultura para se divertirem e entreterem. Com cavalo, á antiga, para manter o seu mundo. E se Pilar ia a Escola da Paroquia, Ezequiel o filho, vai já a cidade de Lalín, Vila nos anos sessenta. O saber de Pilar, pela sua capacidade de entender, não é o herdado da cultura, é o fabricado por ela. Observou, aprendeu, mudou. Alfonso era um marido galego importado desde a Venezuela, a terra da emigração do seu pai, um técnico em electricidade e leitor persistente. Com ideias políticas radicais, diferentes as ideias do sitio, de reiteração dos factos. Pilar aprende conscientemente o passado da Paroquia, enquanto estudamos a sua genealogia. Essa que vamos ver mais em frente, no capitulo 3. Cá, esta Brünilhde estrategiza o seu comportamento e adequa uma existência calma e artística, aos seus desejos e concepção do mundo. Talvez como manipula Anabela.

Essa Anabela de Vila Ruiva que manipula o tempo. Deve estar no café para poder colaborar como o pai diz, e estudar como já foi referido antes. Essa Anabela que não vive a infância ao pé da mãe, e a segunda infância também com a mãe-avó materna, e parte da adolescência. O saber acumulasse em ela de forma de entender de que tem duas casas suas, de que tem um irmão longe, em outro país. Que, quando volta sem pais para começar a escola em Portugal, ia a ter com os amigos e jogar á bola, mais do que ficar em casa, de que tem duas famílias distantes, de que há países para alem da sua terra, de que esses países o dinheiro ganha-se com o trabalho, de que o dinheiro serve para viver mas não da a felicidade. Até cria uma diferença entre rapaz e rapariga. Ele é levado, ela fica. Um lar em quarto crescente, pela persistência do pai, que mantinha a mãe, viva e com forças, na Alemanha gélida e cheia de horas trabalho. Anabela vai ouvindo e aprendendo o facto, e sabe que cuidar da casa agora, é dedicar o seu tampo às crianças que ensina, é dedicar o tempo a infância que ela nunca teve como as ideias do modelo central diz: grupo doméstico á etnográfica, conceito que ela entende desde que connosco, antropólogos, tem compartido a vida. Quando estudamos a sua e a de todos aí. Essa ciência que ela ama e queria estudar e o pai não deixa, porque é uma ciência que leva longe e não permite a estabilidade. É como viver de passagem, com a lembrança dos seres amados, sem a sua presença e as suas carícias e atenções. Mesmo que a futuro, o grupo seja desfeito pelas trocas de pessoas, o que parece normal. Um pai, no entanto, que, sem lar ele próprio, e com um lar conjuntural ao longo da vida, habituado a cultivar o que for possível fazer. Ia ser antropóloga a Anabela? Para ganhar a vida fora, sempre, sempre? Como o Sr. Doutor Iturra, que vê a s filhas só quando a pesquisa o permite? E Anabela junta a informação, negoceia a realidade pragmática e, mesmo que os outros sejam enveredados a saírem as universidades para estudos de dinheiro, ela calmamente vai ao Politécnico de Viseu e é professora, como foi referido. É professora, porque é assim que pode tomar conta de si, enquanto toma conta dos filhos dos outros. Não temos uma Brünhilde em ela, mas sim talvez, uma Elisabeth que espera pelo seu Tanhäuser (1845). Que, de certeza, virá, se não estiver já.

Evans-Pritchard, Sir Edward Evan, 1962: Essays in Social Antropology, Faber and Faber, Londres.
Fortes, Meyer, 1938: Sociological and psychological aspects of education in Taleland, em Africa, Vol XI, Nº 4, Londres.
Fortes, Meyer, 1970: Time and social structure and other essays, Athlone Press, Londres.Goody, Sir Jack, 1973: Domestic Groups, Addisson-Weslley Modules, Nova Iorque.
Goody, Sir Jack, 1976: Production and Reproduction, Cambridge University Press, UK.
Iturra, Raúl, (1991) 1990: A religião como teoria da reprodução social, Escher, 1ª Edição, Fim de Século, 2ª Edição

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