sábado, 1 de janeiro de 2011

Quando Chegou o 1º. de Janeiro

Marcel Proust


Quando chegou o 1º. de Janeiro, fiz primeiro as visitas de família, com a mamã que, para não me cansar, as tinha de antemão (com a ajuda de um itinerário traçado pelo meu pai) classificado por bairro e não pelo grau exacto de parentesco. Mas, mal entrámos no salão de uma prima bastante afastada que passara à frente devido ao facto de a sua residência não ficar muito afastada da nossa, a minha mãe ficou apavorada ao avistar, as castanhas glacés ou decoradas na mão, o melhor amigo do mais susceptível dos meus tios a quem iria contar que não tínhamos começado a ronda por ele. Esse tio iria seguramente ficar magoado; teria achado muito natural que fossemos da Madalena ao Jardim das Plantas onde morava antes de pararmos em Saint-Augustin, para voltar a partir em direcção à Escola de Medicina.


Terminadas as visitas (a minha avó dispensava a sua, visto que jantávamos lá em casa nesse dia), corri aos Campos Elísios para entregar à nossa vendedora, que por sua vez a faria chegar às mãos da criada dos Swann que por ali passava várias vezes por semana para comprar o pão de cereais, a carta que desde o dia em que a minha amiga me causara tanta mágoa decidira enviar no Ano Novo, e na qual afirmava que a nossa antiga amizade desaparecia com o fim do ano, que esquecia as ofensas e as decepções e que a partir do 1º. de Janeiro era uma nova amizade que iríamos construir, tão sólida que nada poderia destruir, tão maravilhosa que esperava que Gilberte se dedicasse a preservar toda a sua beleza e a prevenir-me a tempo, como eu próprio prometia fazer, assim que surgisse algum perigo que pudesse estragá-la. Ao regressar, Françoise obrigou-me a parar, na esquina da Rue Royale, à frente de uma banca ao ar livre onde escolheu, como prenda de Ano Novo para si própria, fotografias de Pio IX e de Raspail, e onde eu próprio comprei uma de Berma. A admiração suscitada pela artista imprimiam algo de pobre àquele rosto único, imutável e precário como a roupa dessas pessoas que não têm outra para troca, que deixava apenas transparecer a pequena dobra por cima do lábio superior, o erguer das sobrancelhas, e umas quantas outras particularidades físicas, as mesmas que, em suma, estavam à mercê de uma queimadura ou de um choque. Esse rosto, aliás, não me teria parecido belo por si só, mas suscitava-me a ideia, e por conseguinte o desejo, de beijá-lo devido a todos os beijos que teria sofrido, e que do fundo do cartão-postal parecia convocar ainda através daquele olhar provocadoramente terno e daquele sorriso artificialmente ingénuo. Pois Berma devia sentir efectivamente para bem dos homens jovens esses desejos que ela confessava sob a capa da personagem de Fedra, e que tudo nela, mesmo o prestígio do seu nome que aumentava a sua beleza e prorrogava a sua juventude, devia tornar fácil o prazer. A noite caía, detive-me à frente de uma coluna de teatro onde estava anunciada a representação que Berma iria dar no 1º. de Janeiro. Um vento húmido e doce soprava. Era um tempo que eu conhecia; tive a sensação e o pressentimento de que o dia de Ano Novo não era um dia diferente dos outros, que não era o primeiro de um mundo novo em que teria podido, com a sorte ainda intacta, voltar a travar conhecimento com Gilberte como nos tempos da Criação, como se não existisse ainda passado, como se tivessem sido amenizadas, com os indícios que poderíamos ter retirado para o futuro, as decepções que alguma vez ela pudesse ter-me dado: um novo mundo onde nada subsistisse do velho…apenas uma coisa: o desejo que Gilberte me amasse. Compreendi que se o meu coração desejava essa renovação de um universo que não o satisfizera, era porque ele, o meu coração, não mudara, e disse a mim próprio que não havia motivo para que o de Gilberte tivesse mudado por seu turno; senti que essa nova amizade era a mesma do mesmo modo que não estão separados por um fosso os novos anos que o nosso desejo, sem poder alcançá-los ou modificá-los, cobre com um nome diferente. Fora em vão que a dedicara a Gilberte e, tal como submetemos uma religião às leis cegas da natureza, tentara imprimir ao dia de Ano Novo a ideia particular que fizera dele; sentia que ele não sabia que o chamávamos dia de Ano Novo, que acabava no crepúsculo de uma forma que para mim não era nova; no vento doce que soprava em torno da coluna de cartazes, reconhecera, sentira ressurgir a matéria eterna e comum, a humidade familiar, a ignorante fluidez dos dias antigos.


Regressei a casa. Acabara de viver o 1º. de Janeiro dos homens velhos que ao contrário dos jovens diferenciam esse dia, não porque lhes dão mais prendas, mas porque já não acreditam no novo ano. Recebera muitas prendas, mas não a que me teria dado mais prazer e que seria um bilhete de Gilberte. Era contudo ainda muito jovem pois conseguira escrever-lhe um através do qual esperava, ao contar-lhe os sonhos solitários da minha ternura, despertar nela algo semelhante. A tristeza dos homens que envelhecem é a de nem sequer sonharem em escrever tais cartas das quais conhecem antecipadamente a ineficácia.


Quando fui deitar-me, os ruídos da rua, que se prolongavam pela noite fora neste dia festivo, mantiveram-me acordado. Pensava em todas as pessoas que acabariam esta noite com prazer , no amante, na trupe de debochados que talvez tivesse ido buscar Berma no final da representação anunciada para aquela noite. Não podia sequer, para acalmar a agitação que esta ideia provocava em mim naquela noite de insónia, acreditar que Berma não pensava no amor, visto que os versos que recitava , e que ela estudara longamente, lembravam como ele era delicioso, como ela demonstrava saber ao deixar transparecer as emoções bem conhecidas de todos – mas dotadas de uma violência nova e de uma doçura insuspeita – aos espectadores deslumbrados apesar de todos as terem já experimentado. Reacendi a minha vela apagada para voltar a admirar o seu rosto. Ao pensar que naquele momento ela estaria a ser acariciada por aqueles homens que não podia deixar de atribuir a Berma, e que dela recebiam alegrias sobre-humanas e vagas, sentia uma comoção mais cruel que voluptuosa, uma nostalgia que vinha agravar o som da trompa, que se escuta na noite de Quaresma, e por vezes de outras festas, e que, porque é então desprovido de poesia, é mais triste, saindo de uma taberna, que “a noite no fundo dos bosques”. Nesse momento, não teria sido uma palavra de Gilberte que me teria ajudado. Os nossos desejos interferem uns com os outros , e na confusão da existência é raro que a felicidade venha justamente instalar-se no desejo que a havia reclamado.


(Trad. de Sandra Silva, À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs, in 101 Noites de Natal, 101 Noites)

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