domingo, 2 de janeiro de 2011

Sobre as avaliações, sobre os rating, sobre os professores

Júlio Marques Mota


Em tempos idos pensava que o neoliberalismo não avançava tão rapidamente na sociedade portuguesa como o está a fazer actualmente no ensino, mesmo quando o sistema dá sinais evidentes de estar quase defunto. Feita a reforma do ensino superior, dita reforma de Bolonha, pensava eu, ingenuamente, que algum pudor haveria em avançar com mais reformas antes de estabilizar esta e portanto que se passaria primeiro por uma análise em profundidade desta reforma, na óptica de quem a lançou no terreno, neste caso na óptica de Mariano Gago e de quem o acompanha, de quem o defende, de quem o serve ou d equem é obrigado a servi-lo. Mas não, mais uma vez me enganei. O ritmo de reformas avança, e agora é a avaliação dos docentes que avança, é o sentido da classificação, da quantificação da qualidade que se pretende, pretende-se assim o impossível mas como não é crível que intelectuais e técnicos assumidos andem a trabalhar para querer o que toda a gente sabe que é impossível, então o objectivo é outro, para mim é certo de que o que se pretende é garantir, agora ou depois, um certo ritmo da desclassificação, um certo ritmo de redução de custos. De resto, agora nem sequer se fala em promoções. Então avalia-se oara quê? Alguém é capaz de me dizer? Penso ter razão e, se assim é, ninguém mente pois nos tempos de crise que se vivem em que todos os cofres estão vazios, promover, significa agora despromover, e é disso que se anda à procura. Evita-se a mentira de o dizer.


Num texto sobre Bolonha afirmámos e passo a citar:


Por se seguir o caminho inverso daquele que a situação exige, inverteu-se a lógica da democracia quanto à função do Estado. Uns obscuros departamentos de trading de alguns poderosos bancos de investimento, uns poderosos e quase que anónimos hedge funds, uns obscuros especuladores, o mercado afinal, determinam num obscuro mercado os valores dos CDS, em que ninguém nos explica como funcionam, como se determinam as suas taxas; questão extraordinariamente importante quando são estas taxas que vêm a determinar o valor das taxas de rentabilidade implícita dos títulos da dívida pública e o peso do serviço da dívida soberana, quando depois é este que determina o volume de impostos a receber e o volume de despesas a cortar, os grandes investimentos públicos para o futuro a desaparecer. Tudo isto em nome das gerações futuras. E assim se determina o sentido das políticas nacionais e se anula a democracia. Quer-se agora sacrificar os próprios Estados, a própria democracia, no altar da soberania absoluta dos mercados financeiros, cada vez mais opacos, comme il faut. O resto é a plêiade de discursos dos nossos políticos e dos nossos intelectuais a glorificar o caminho imposto pelos mercados financeiros, prisioneiros que são, explícita ou implicitamente, do sentido da eficiência que a estes continua ainda a ser atribuída. E tanto é assim que até os traders, ou gerentes desses obscuros agentes, nesses obscuros mercados, com bónus na ordem das muitas dezenas de milhões de dólares por ano, são também eles classificados, avaliados, por empresas também elas internacionais, globais, e também elas sujeitas às agências de notação . Com tanta avaliação, do primeiro ao último elo da cadeia, quem se atreve a pôr em dúvida a eficiência dos mercados? E aqui a analogia com Bolonha é imediata: também a Universidade vai ser submetida à mesma lógica de eficiência, à mesma lógica dos rating, das avaliações, mas com uma grande diferença. Enquanto os rating para os traders marcam o ritmo dos bónus futuros, o ritmo dos milhões de dólares a receber, na Universidade, porque não há dinheiro, não há sequer tostões, Os rating para os professores têm apenas uma função ideológica: cumprir o modelo!

Estamos pois a falar de ratings,, e é de ratinhos que se fala com a avaliação dos docentes. Num outro texto sobre o mesmo tema afirmei sobre a modernização do Ensino Superior de que o primeiro Ministro e Mariano Gago se orgulham tanto :

Dizem-nos ter “modernizado” o sistema de ensino superior

Flexibilizaram-se os contratos de trabalho, precarizou-se a segurança no trabalho, colocou-se, por essa via, os professores a considerarem a sua carreira como uma espécie de campeonato de futebol onde o importante é marcar pontos contra os outros e impedir que no-los marquem a cada um de nós, onde estão sujeitos a avaliação contínua como se as sucessivas provas públicas deixassem de ter qualquer significado, onde se passa a fazer não o que se deve verdadeiramente fazer mas sim aquilo que o avaliador é capaz de exigir e compreender, de quantificar e, normalmente, trata-se de coisas diferentes. Possivelmente, a partir de agora, cada professor poderá estar mais interessado em compor a montra onde se irão colocar os dados que vão ser quantificados, avaliados, medidos, do que propriamente em preocupar-se com a função para a qual é pago: ensinar. E esta última função passa-se sobretudo na sala de aulas, no que está aquém dela, no que está para além dela mas onde esta é sempre o centro. Aqui, não há métrica que valha mas a lógica neoliberal exige o impossível que é que seja quantificável o que incomensurável e é assim, pela simples razão de que o que lhe interessa não é a qualidade mas a quantidade. Primado absoluto da quantidade sobre a qualidade, primado absoluto da precariedade a que os docentes vão estar submetidos sobre a estabilidade que a estes deveria ser oferecida, primado absoluto, portanto, do número, neste caso das vias que levam à redução dos custos. O que passa a ser preciso é considerar a carreira e a vida como uma escada de acesso a um trapézio muito alto e de onde não se pode cair ou não se deve, já que a queda pode ser mortal. Por essa via, é a profissão que sai minimizada e os estudantes, esses, passam para segundo ou terceiro plano, desejando-se apenas que não nos atrapalhem na subida das escadas da vida de cada um de nós, professores. Adicionalmente, reduz-se a dimensão dos cursos, multiplica-se o número destes, vejam-se só os números de cursos em engenharia espalhados por esse país, multiplicam-se os mestrados e inventa-se a transversalidade para os diversos mestrados, em que um licenciado em direito ou em agronomia ou noutro curso qualquer, onde praticamente não teve economia, pode tirar um mestrado na área de gestão ou de economia e num tempo bem curto.


Em suma, “modernizar” o ensino superior pode vir a poder-se considerar como um custoso processo de autonomização e de conservação da ignorância dos estudantes que, em vez de verem a ignorância por si vencida, esta é a função da Universidade, passam é a ser possuidores de uma ignorância mantida ou acrescida, derivada da erosão do tempo em que não se estuda ou em que se passa por cima de quase tudo o que é estudo, com a velocidade de quem tem medo de perder um outro comboio, o de ir procurar e conseguir emprego antes dos outros, os seus colegas concorrentes. Mas, tudo isto faz parte da “modernidade” de que nos falam até à exaustão os nossos políticos .

O modelo subjacente à política do Ensino Superior é o modelo neoliberal na sua versão mais dura, naquilo que leva a que cada um de nós se molde na nossa interioridade aos parâmetros do sistema, de um contra todos, o mesmo se passando quanto à nossa exterioridade. Se queremos sobreviver, terá que ser assim, o trabalho que se faz deve ser feito fundamentalmente para a quantificação. Neste modelo a quantificação é primordial, pois não tem valor tudo o que não se possa medir, aferir, comparar, quantificar: Neste modelo é fundamental o rating, como o é em qualquer Bolsa e, descobrimo-lo agora de forma bem terrível, como o é também assim com o nosso pão de cada dia, porque as nossas vidas, dependem das políticas económicas seguidas e estas dependem, também elas do rating da dívida pública. Condenados, cercados pela lógica do rating, eis pois a condenação do cidadão moderno. Procure-se, por todas as esquinas, por todas as praças de Lisboa, por esse mundo quem nos assegure um pouco de paz, quem nos assegure um rating de qualidade e triplo A que seja!.Boa sorte.

Vou-vos reproduzir uma fábula, passada num país qualquer, a que damos o nome de Numerolândia, o país do número, e claramente esse país poderia estar actualmente a ser governado por um qualquer governo da Eurolândia. Qualquer deles ficaría aí muito bem.

A fábula, portanto.


A verdade da fábula


Um dia na região onde se desenrola esta fábula, a Agência dos Avaliadores informa o Centro de Investigação Regional de que os seus Peritos viriam da capital para avaliar a investigação, as equipas, e o Instituto na totalidade dos seus serviços, com excepção dos investigadores.

Neste país entre os países, os Estatísticos pediram um dia ao governo autorização para incluir informações de ordem étnica nos seus inquéritos. O debate abriu-se. Houve gente “por”, ou gente “contra”, e a controvérsia transcendia, e de longe, a clivagem habitual entre partidos do governo e da oposição.

As pessoas que defendiam a inclusão deste tipo de dados , os do “por” explicavam que dado que se podia, a partir de agora, aceder à informação, não tinha sentido privarem-se dela: é a utilização de um saber que se revela boa ou má, não o saber em si- mesmo. E de momento, só se faziam coisas boas, porque somos todos os democratas - não é assim ? - e somos todos bem conscientes das nossas responsabilidades.

Os “Contra” sublinhavam que o número étnico, no caso, não traria nenhuma informação suplementar sobre as pessoas, mas abriria a caixa Pandora que ninguém seria capaz de controlar depois. Quem sabem entre que mãos cairiam estes inquéritos e para que fins poderão eles servir, então? Na sua grande sabedoria, o governo transigiu: poder-se-ia incluir dados étnicos nos inquéritos, mas apenas durante um tempo limitado. Dois anos. E nenhuma publicidade é feita em redor dos resultados. Então, este país esqueceu.


Mas, tecnicamente, descobriram-se desvios importantes entre as administrações, entre as administrações e o sector privado, e no interior do sector privado. Inventou-se então um índice que permitisse medir a relação de negros, árabes e judeus, num meio socioprofissional dado , número que se baptizou imediatamente como “o índice NAJ”, porque se gosta de siglas, nesse país. Não se tratava, certamente, de um número bruto de que se deduz simplesmente, no momento do inquérito, o número de Negros, Árabes ou Judeus porque então teria sido impossível proceder a comparações portadoras de significado.


Não, tomava-se o maior número de Negros, Árabes e Judaicos citados pelos seus colegas durante os cinco anos precedentes, ponderado por uma combinação linear de Negros, Árabes e Judeus efectivamente presentes, depois, dividido por uma per-equação incluindo média nacional, regional, e tendo em conta a classe profissional considerada. É munindo-se de todas as precauções que se pode explicar a precisão, e mesmo, ousamos , a equidade deste índice. O NAJ era diabolicamente interessante.


Alguns meses depois, a Agência dos Avaliadores preveniu o Instituto de Investigação


Regional - porque a região onde se passa esta fábula orgulhava-se de possuir um Instituto de Investigação - que os seus peritos viriam da capital para aplicar as suas funções e avaliar, em boa e devida forma, a investigação, as equipas, o Instituto na sua totalidade mas não os próprios investigadores, porque tal não era o seu mandato. Agitação no Instituto!

Publicou bastante?

É necessário preparar-se para o melhor como para pior, é necessário reservar o restaurante, mandar limpar as instalações sanitárias, preparar as exposições bem como o nosso balanço dos quatro anos transactos. Publicou bastante? Bastantes contratos com o privado? Bastantes patentes? Como foi o enquadramento dos estagiários? Quanto a responsabilidades internacionais? Ninguém não se interrogou: fez descobertas?


A pergunta pareceu absurda, fora de questão. Mas uma voz elevou-se na sala: “não seria necessário que estudávamos nós o nosso índice NAJ? Evidentemente, não estamos nada de acordo com este índice. Revela uma sociedade em cheia deliquescência, uma sociedade em que só vale o que é contabilizável. Mas, por outro lado, é necessário ter em conta que os nossos avaliadores não se privarão de o calcular e, se não está está conforme, atacar-nos-ão desse ponto de vista. O nosso Instituto passará então do nível A para o nível B e nós perderemos os nossos créditos. Acabam-se os contratos de trabalho de duração determinada para empregar os nossos técnicos, os nossos engenheiros. Acabam-se os postos de investigadores e de professores.

Preparar uma argumentação idónea

Enquanto se formos nós a calculá-lo, nós saberemos antecipadamente o que é que temos que enfrentar e podemos assim preparar uma argumentação idónea. É certo, o nosso índice NAJ é mais elevado -ou mais baixo , isto será assim o resultado do estudo - que a média internacional. Mas é necessário ter em conta que se trata de uma herança histórica. Na nossa disciplina , os negros eram naturalmente os primeiros, enquanto que os judeus e os árabes só de longe seguem a média indicial. É por esta razão, dada a nossa preocupação total com a excelência preocupámo-nos em empregar mais negros, ou menos árabes e menos judeus, adaptar-se-á a argumentação, guiados, voltemos a sublinhá-lo por outras palavras, em melhor convencer os nossos respeitados avaliadores e provar também o nosso entusiasmo, unicamente, pela ambição de sermos os melhores num contexto internacional altamente competitivo e de elevar bem alto a bandeira do nosso país”.

Os investigadores estavam contentes. Como eles se saíram, uma vez mais brilhantemente, da armadilha estendida pelo Governo! Com uma tal inteligência, eles não arriscaram verdadeiramente nada. Foram os investigadores do outro Centro que tiveram problemas para se desenrascarem, mas não estes. Estes simplesmente iam ganhar velocidade e ultrapassar os Avaliadores que - surpresos e contentes, saciados igualmente porque se lhe tinha reservado um muito bom restaurante - mantiveram a classificação ao nível A. Tinham escapado de boa .

As comparações com o sistema são totais. Produz-se um produto NAJ, sem sentido, e é-se avaliado com A, produz-se um produto tóxico qualquer, sem sentido, igualmente, precisa-se de um rating, obtém-se este rating triplo A, pela avaliação externa, a saagências de notação, lança-se na bolsa, e tudo está bem. Viva Numerolândia, viva o rating, vivam os mercados financeiros. Esta é a lógica do neoliberalismo.

4 comentários:

  1. Eu entendo que o mérito tem que ser medido, o que não entendo é a origem da legitimidade das empresas de rating para o fazerem e, ainda menos, porque se vergam os Estados às suas prepotências.

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  2. Excelente! Finalmente alguém fala no ministro Mariano Gago e diz que o rei vai nu. E já ia quando, nos anos 90 do século passado, nem sequer nos recebeu, nem quis ouvir as propostas que tinhamos para lhe fazer no laboratório do Estado em que eu trabalhava. Já tudo se encaminhava neste sentido e o ministro Mariano Gago foi-se escondendo na sombra do governo para não se dar muito pelas políticas que defendia. Que sentido faz este amontoado de mestrados quando o que devia acontecer era sair-se das licenciaturas e começarem a preparar-se doutoramentos a sério dentro das áreas de formação de cada um, ou em áreas afins? Esta destruição do saber, pela quantificação em detrimento da qualificação, não sei onde nos vai levar.

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  3. Ratings e rankings, a mistura explosiva.
    Os deméritos da meritocracia, a selecção cientifica no aviário europeu.
    Alguém andou a fazer de aprendiz de feiticeiro.
    Já agora; este Mariano Gago não é o mesmo que há quinze dias era o melhor ministro, aqui pelo Estrolabio. Deve ter havido mudança no método de avaliação...

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  4. Carlos, estamos no estrolabio.blogs.sapo.pt

    Não houve mudança nenhuma, há é duas pessoas (no caso tres, já que eu sublinhava a elogio público do Prof. Eduardo Lourenço, que não é um qualquer) ao ministro Mariano Gago (grande trabalho em ciência e investigação, com resultados reconhecidos internacionalmemte)que pensam de maneira diferente. assim eu tivesse razões para dizer o mesmo dos outros...

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