quarta-feira, 19 de maio de 2010

A lição do professor: o contexto social da criança

Raúl Iturra

Ensaio de etnopsicologia da infância1. Abertura com todos os instrumentos.
Costumamos pensar que é o professor quem ensina. Na pré-primária, na escola, nos outros ciclos, no ensino técnico, no ensino denominado superior. Os primeiros, ditos primários, fazem cidadãos; os segundos orientam para um trabalho ou profissão, os últimos habilitam para tarefas técnicas ou académicas. Todos eles sabedores e respeitáveis. Todos eles em permanente debate. Nunca se consegue pleno acordo em relação à maneira de ensinar e sobre o que deve ser aprendido pelos mais novos. Mais novos que, por seu turno, andam a aprender nos seus ciclos de vida, na escola, na casa, no bairro. Crianças nascidas numa sociedade de quem são herdeiros, quer a entendam ou não, a saibam ou não, a aceitem ou não, a mudem ou não. Normalmente, acabam por retirar da memória social esse palavrão usado por mim e por outros em tantos textos e que consiste em transferir as ideias de uma geração à seguinte - da memória social, digo, o que deve ser feito e o que não. Por outras palavras e de forma simples, retiram de memória social o bem e o mal. Branco e preto. Sem gradações pelo meio, sem mais alternativas que as usadas e inventadas pelos seres que manipulam a vida para a continuar, para a produzir, para a reproduzir. Manipulação e estratégias não aprendidas na escola nem no lar, excepto as que permitem fugir do professor e do ensino ou dos trabalhos escolares. Essas que são moeda corrente no processo de ensino e aprendizagem, conceito criado por mim há algum tempo. No entanto, há manipulações e estratégias necessárias para viver dentro do social e das suas mutáveis estruturas económicas. Essas que fazem dos países sociedades diferentes conforme a conjuntura. Porém, há o processo de ensino. Porém, há as manipulações necessárias, as estratégias. Porém, subsiste o contexto social da criança e a inutilidade de muitos conteúdos da memória social. Como ser filho, como ser mãe, como tomar conta dos anciãos, como ser amigo, como ser namorado. Como e onde aprender e lidar com a vida. Um Portugal, é o da Monarquia; outro, o da República; um terceiro, o da Ditadura; um quarto, o do 25 de Abril; um quinto, a reorganização de República Democrática; um sexto, o da Democracia Europeia ou o da União Europeia. Um Portugal onde tudo é competição, violência e agressividade, quer nas escolas (como diz José Paulo Serralheiro na edição de Março de 2000), ou como tenho testemunhado na academia à qual pertenço: escolas de massas, como afirma Serralheiro, a comportarem-se como escolas de elites, como afirmam Luiza Cortesão, Stephen Stoer, Helena Costa e eu próprio. Com vinte anos de atraso, diz ainda José Paulo, a violência chegou até nós. Mas chegou para ficar. Como o dinheiro, as estradas, os carros, as casas. E as genealogias. De eternas ilegitimidades, ao matrimónio ou a respeitáveis uniões de facto. Essas que deviam ser defendidas ou caladas, ou optimizadas pela hierarquia adquirida em outros sectores da vida social. A genealogia, essa memória social aprendida dentro da família, usada no grupo, informação válida para saber o progresso que faz uma criança.


2. Minuete de cordas.Como dançava a trabalhar Conceição Sardinheira nas suas terras de Vila Ruiva! Respeitável mulher casada, como a divindade dos católicos manda e a vida social exige, ficou sem o marido nesse Portugal que mandava emigrar, o da Ditadura. De chicote na mão foi ensinando o filho herdado do marido ausente. E com carinho na outra, foi-o educando através das conversas ao pé da lareira após jornadas de trabalho duro nas terras de outrém. Aritmética na cabeça, fazia as contas na conversa com o filho até entender se era suficiente o dinheiro ganho para se vestirem, alimentarem, pagarem a renda, comprar os livros para a escola, pagar a lenha. Deduzidos os gastos do que ganhava, Conceição fez-se Sardinheira e trazia, de manhã cedo, o peixe para a aldeia. Todas as Quintas feiras ía andando, ainda noite, para a vila de Nelas, e regressava à hora a que as senhoras das casas começavam preparar o seu almoço. E percorria a aldeia os bairros do Portugal de hoje apregoando a sua mercadoria. Com palavras doces e sedutoras convencia os vizinhos da qualidade do produto, da sua frescura, do bem que fazia aos ossos, aos olhos, à pele, à força necessária para usar a enxada. Um suplemento alimentar alternativo à permanente carne de porco, o substituto do bacalhau que ninguém podia pagar. Lareira quente, mais contas feitas, repara que faltam tostões precisos para investir numa pequena terra própria útil para batatas e cereais, para alimentar o filho. Maria da Conceição Sardinheira, de enxada em mão, vai aos trabalhos à jorna e junta tostões que perfazem escudos. Lareira quente, sopa comida, diz ao seu filho António que deve trabalhar para a ajudar. O puto, com apenas sete anos, aprende. E colhe forças para tratar da rega das parcelas, da semeadura das batatas e do partir lenha. E também para fugir da casa para brincar com os amigos, quando a fadiga aperta. Esperta, Conceição percebe que as sardinhas não são futuro para o pequeno António e manda-o para a Escola. António lê e escreve e passa a ser o contabilista da pequena firma doméstica. E aprende que há mais sítios na geografia do mundo: a Argentina, onde mora o pai, Leiria, o lar da prima que tem loja de comércio, Lisboa, a cidade dos comerciantes. Enquanto o professor fala e explica, ele viaja. Viaja pela aldeia a pensar nas armadilhas para caçar pássaros e coelhos, no pião que sabe ganhar, nos berlindes retirados duma garrafa de sumo, nos botões que gosta de surripiar dos estendais onde as roupas secam e que servem para brincar com os amigos que, mais abonados, os podem trazer de casa. Sonha e lembra na surra certa que o espera em casa por via dos botões tirados das roupas de outrém. E sabe distinguir entre o meu e o teu. Entre o bom e o mau. Entre o permitido e o proibido, entre a luta por si e a luta dos outros que dão à mãe meio tostão pelo dia de jorna para lucrarem com ela. Dos quilómetros que a mãe faz, descalça para poupar as solas dos sapatos, e parecer melhor no dia das vendas de peixe, limpa para mostrar que o peixe é de confiança, sorridente e silenciosa para que os vizinhos a tratem com uma senhora respeitável, por acaso com um marido longe. Sem se queixar, sem dizer mal, sem levar o que sabe de um, para dizer a outro. Uma senhora. Uma senhora que aprende a tratar dos doentes terminais e a vesti-los, a lava-los e a penteá-los para uma última exibição pública, na Missa ritual ou no velório. António aprende a entender o que é trabalhar, que toda actividade é trabalho, que todo o trabalho é legítimo, que folgar é pecado, e que pecar é um castigo social. Castigo social passível de ser esquecido se a pessoa sabe manipular a informação dos factos. Como no dia em que Maria da Conceição dá a luz uma filha e a inscreve no Registo Civil: pergunta o Oficial, E quem é o pai? E ela responde: E quem é o meu marido? Convicto do facto, o oficial lavra a acta de nascimento e, sem comentários, faz do marido pai outra vez.


3. Quarteto com piano.


António aprende. Sabe que está pronto para iniciar a vida. Sabe que a mãe não é a mulher da sua vida. Sabe que o comércio é o que rende. Entende que o comércio da mãe não é para os dois. Sabe que a terra é um investimento que dá pão e dinheiro. Sabe que o trabalho da terra é um investimento possível se há dinheiro para comprar os instrumentos, as sementes, os adubos. Sabe que a Geografia da Escola é boa para aprender que há alternativas, como a Literatura lhe conta nos textos de aventuras ou de conquistas. Trafica entre o saber escolar, o saber do lar e o do bairro. As feridas causadas no trabalho são possíveis de curar porque os tecidos nascem outra vez, que o corpo fadiga-se com a multiplicidade de actividades, que a observação permite a Galileu descobrir que a terra é redonda, que Guttenberg espalha saberes em letra escrita, que a matemática permite calcular esforços e valorar lucros debitados do investimento feito no trabalho: poupar não é ganhar, é apenas uma forma de ter moeda para a usar na economia de bens procurados pelas pessoas. Como o peixe da mãe: ninguém tinha a hierarquia social de mulher digna, limpa e discreta e a força retirada da vida solitária, para se empenhar no cansativo trabalho de andar entre a aldeia e a vila a trazer mensagens ou a comprar alguns produtos solicitados por pessoas, as suas clientes. Entende que ter clientela é o maior investimento que um ser humano pode fazer. Apenas é preciso reunir dinheiro e aprender a trabalhar no sítio certo. Sítio certo que acontece ser o lugar onde a moeda seja mais forte do que no país onde se nasceu, ou mais abundante do que na aldeia onde lhe calhou viver. E António começa a andar e não pára até chegar à Alemanha, depois de passar por Lisboa e Leiria. Com um objectivo claro: organizar a sua própria genealogia com essa mulher da aldeia que tinha amado e lhe tinha garantido um sim para o futuro. Mulher que parte para esse mundo desconhecido, aprende uma outra língua e solicita à sua mãe tomar conta dos filhos que em Vila Ruiva vão crescendo, enquanto eles procuram a moeda com o fito no investimento no comércio. Conceição Videira dá a mão à sua filha Fernanda e cria Anabela e Luís, à distância dos pais. Quarteto de instrumentos, com essa sogra ao piano. Conceição que respeita a Conceição Sardinheira pelo seu empenhamento em trabalhar sem pedir ajuda a ninguém: apenas trabalho e trabalho. Duas Conceições amigas que acabam por fazer do Luís um jovem disciplinado e dedicado ao trabalho, gestor, marido e pai; e de Anabela, uma professora à procura dum mestrado para crescer dentro da vida intelectual escolhida. Heranças todas de Conceição Sardinheira, teimosa trabalhadora de riso divertido e ironia na ponta de língua. Como essa com que me brindou um dia: Atão, lá vai o Senhor Doutor com papel e lápis a ganhar a vida .Ora diga lá: é com as mãos que o trabalho se faz ou com esse passear folgazão a que o senhor chama trabalho? Sem saber que tinha criado uma escola com discípulos no cálculo, na aritmética, na economia e na gestão dos bens.

4. Coda final.O comércio prosperou sem violência, sem os temores correctos de José Paulo Serralheiro, com a pesquisa certa de Luiza Cortesão e Steven Stoer, com a escrita certa sobre a vida deles de Filipe Reis. Hoje, António manipula o comércio, tem presidido à Junta de Freguesia, tem feito da aldeia uma pequena vila. Tudo isso aprendeu ao juntar a vida da mãe com o ensino da escola e a relação cordial com os seus vizinhos. História que permite entender que o saber nasce da interacção do lar, escola e vizinhos, instituições em contradição enquanto não se saiba que a pedra angular destas três instituições é a gentileza e cortesia de quem tem a capacidade de lucrar com o seu trabalho e a distribuição de mão-de-obra ou objectivos de poupança dentro da família, no tempo certo, quando a sua sociedade abre para a pequena empresa. Tempo não existente durante a vida de Conceição Sardinheira, mas possível durante a vida de António e Fernanda e com terreno preparado para as vidas de Luís e Anabela. Lição que o professor da criança ou entende, ou não sabe ensinar por falta de informação. Sem a genealogia da criança, coordenada com esse suceder de acontecimentos conjunturais e mutáveis de época em época na História de um País e o seu Continente, não há professor que possa transferir saber doutoral às mentes pragmáticas dos seus investigadores: os seus estudantes. Que, entretanto, recorrem à violência e defendem-se da violência da sociedade e das escolas...com a conivência dos adultos, como disse que diz José Paulo Serralheiro.

Bem-haja, Conceição, pela escola que formou e pela emotividade que acordou entre os seus e entre os vizinhos! Saiba o Ministro da Educação entender qual o livro para aprender, longe do Decreto ou da Lei que herdou, e que ele conhece, porque Santos Silva é o Augusto investigador de trabalho de campo que andou pela vida do país e conheceu milhares de Conceições. Embora, nunca a Sardinheira...

Bibliografia•Cortesão, Luiza, 1988: Escola, sociedade, quê relação?, Afrontamento, Porto.
•Cortesão, Luiza et al., 1995: E agora tu dizias que...Jogos e brincadeiras como dispositivos pedagógicos, Afrontamento, Porto.
•Iturra, Raúl, 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto
•1988-2001: Diário de trabalho de campo.
•Notas do debate com Darlinda Moreira, Membro Doutorandi do Seminário de Antropologia da Educação, ISCTE, Lisboa, 16.01.01
•2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te, porque te amo, Afrontamento, Porto.
•Reis, Filipe, 1991: Educação, ensino e crescimento, Escher, Lisboa.
•Serralheiro, José Paulo, 2000: Violência nas nossas escolas in Jornal a Página da Educação, Março, Profedições, Porto
•Stoer, Stephen e Costa Araújo, Helena, 1993: Genealogias nas escolas: a capacidade de nos surpreender, Afrontamento, Porto.
•Silva Santos, Augusto, 1994: Tempos cruzados. Um estudo interpretativo da cultura popular, Afrontamento, Porto

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