Manuela Degerine
Capítulo VIII
Etapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Terceira parte
Subimos, a bom trotar das mulinhas, a empinada ladeira.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Passa das de três e meia, o calor, a partir de agora, começa a abrandar, o saco tornou-se leve – mas o pé dói-me cada vez mais. Abandono o dique, atravesso uma planície muito vasta cuja horizontalidade e cujas distâncias me impressionam. Deve ser grandioso caminhar aqui no Inverno ou na Primavera. Não, esta luz e este calor não me convêm...
Há quatro anos, numa viagem pelos Açores, extasiei-me a cada passo – e dei tantos – com aquele campo da minha terra: tão florido, ameno e asseado. Até agora, na região de Lisboa, atravessei um campo muito sujo; aqui parece-me enfim um pouco mais limpo.
Antes de chegar a Omnia, efeitos do calor e da dor no pé, começo a andar à toa. Primeiro engano-me num caminho sem engano possível, vou parar a uma casa particular, onde um rapaz e um senhor elegantes, pai e filho provavelmente, me recebem com urbanidade – não têm o aspecto, o cão, o medo e a linguagem dos rurais. Despeço-me lamentando que ninguém me conte a história daquela casa e daqueles dois habitantes; eu neste momento sinto-me cansada demais para a inventar. Poucos metros mais adiante, paro para tirar da mochila outro pacote de bolachas, penduro o bordão numa cerca, deixo-o lá esquecido e só reparo na subida para Santarém: dois quilómetros para um lado, dois quilómetros para o outro, como se os trinta e dois da jornada não bastassem. Recupero o bordão.
Apesar da experiência na primeira etapa, o bordão continuava a parecer-me inútil e incómodo... Na verdade não me conseguia imaginar a bater num cão – mesmo feroz. Ora em Porto de Muge, lança-se um na minha direcção, eu levanto a arma, o bicho dá meia volta. E agora, há pouco, numa vinha, corre um pastor alemão atrás de mim, pêlo e dentes assassinos, eu mostro o bordão, já mais confiante; e de imediato a fera se vai embora. Ignorava esta magia do bordão!
Recomeço a subida. Vejo, pela primeira vez, à beira da estrada, um fio de água sem cor nem cheiro na qual cresce até agrião. Chego a Santarém. Onde faço idas e voltas numa indecisão que não me é habitual. Entro num Centro Comercial, bebo um sumo de papaia. A coxear. Busco os bombeiros, que estão lá para baixo, a quilómetro e meio daqui. Mais vale eu procurar um hotel. O pé direito doi-me cada vez mais. Que hipóteses tenho de poder amanhã caminhar vinte e um quilómetros até Arneiro das Milharicas?
Concordo contigo, leitor atento, há um cansaço a partir do qual se torna perigoso teimar, é nestas ocasiões que se partem pernas ou se perdem objectos necessários, chaves, telemóveis ou documentos. Tens razão. Prefiro parar agora. Mais vale sarar a bolha do pé e, na próxima ocasião, prosseguir as minhas viagens.
Caminho ainda até à estação de Santarém e sento-me por fim num comboio que hoje me parece de um luxo quase fabuloso.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
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Há um momento que o corpo se impõe, tudo fica sem magia, os olhos não vêm e a cabeça deixa de pensar. Nessa altura, continuar é inútil...
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