segunda-feira, 10 de maio de 2010

Outra Constituição, outra Democracia, uma Terceira República – 2

Carlos Leça da Veiga

Então o que é que deles – desses graúdos – pode ler-se?

Vulgaridades despidas de quaisquer conteúdos políticos válidos, concepções economicistas anti-sociais, idealismos ultrapassados embora de grande conveniência, ausência de espírito humanista, tecnocracia avassaladora, retórica pura e lugares comuns que nada ensinam, esclarecem, acrescentam, formam e informam, um ror de obras palidónicas e abjurações, coisas comezinhas quantas delas empoladas com ardil, textos cevatícios dos situacionismos sucessivos, prosas alienígenas de aculturação orientada ou, então, meras controvérsias de pacotilha, máxime arrufos partidários tudo bem embrulhado nos famosos “discursos redondos” e “politicamente correctos”.

Se, entre o muito do quanto pode ler-se, transpareça demasiada presunção e, quanta dela, revestida com o despropósito da pompa e da circunstância, algumas textos há, tem de ser dito, que são obras muito bem acabadas tudo, apenas, por serem escritos num português invejável, razão bastante para, por justiça, pese embora o demérito das seus conteúdos, não ser errado pensar-se vir a vê-los transcritos nas boas antologias literárias.

Por bom augúrio há, também – importa assinalar-se – alguns, raríssimos, comentadores que a espaços tristemente longos, ao que parece por puro amadorismo, escrevem comentários políticos que são feitos, quanto a mim, com inteligência notável, metodologia apropriada, escrita escorreita, conteúdos dalgum modo significativos e, sobretudo, como parece, com o espírito livre dos implacáveis espartilhos doutrinários, sejam os partidários, sejam os alienígenas.

Seja como for, como não há bela sem senão, custa ter de dizer que, bem feitas as contas (oxalá, alguém consiga desmenti-lo) por desgraça mas em boa verdade, muitos desses autores – figuras meritórias – no mais fundamental e em resumo, acabam por não fazer outra coisa mais que não seja, umas vezes, acabar por tecer louvores de aceitação ao poder instituído e, outras, ao invés, com timidez máxima e grande disfarce, a gizarem-se-lhe queixas de contumélia. As próprias divergências, bom grado bem elaboradas e, até mesmo, lançadas com agressividade bastante, por sistema, acabam retidas ou ficam próximas do leque das doutrinas ou das tendências partidárias nacionais ou alienígenas. Nada de heresias; respeite-se a preocupação dominante! Só é aceitável o que já foi dito por um qualquer dos partidos políticos parlamentares, em especial, pelos do bloco central.

Nas conclusões dessas montanhas – dessas sumidades inquestionáveis – só são paridos ratos! O receio, talvez o medo, continua a impor o “politicamente correcto”. Séculos de Santo Ofício com a correlativa Inquisição e, por igual, meio século de salazarismo haveriam de deixar marcas indeléveis e, a seu lado, lamente-se, muitos apaniguados.

Em todo o caso, mesmo até daqueles raros textos cujos méritos interpretativos têm direito a ênfase e aplauso, nem por isso, em boa verdade, é possível dizer-se que qualquer dos seus autores tenha o atrevimento de ir ao ponto de colocar em causa, como é necessário, o regime político que tem sido facilitado – imposto – aos portugueses.

Na mais pura das verdades tem de considerar-se obrigatório, a todo o instante e em todas as circunstâncias, dever reconhecer-se, escrever-se e proclamar-se, que não é um regime democrático.
No panorama vasto dos produtores da opinião pública nacional, a questão da tão necessária apreciação critica da evolução dada à esperança trazida pelo 25 de Abril só tem beneficiado com a excepção do contributo dum intelectual de mérito reafirmado e de autoridade científica indiscutível, o Professor Doutor Vitorino Magalhães Godinho que, como a mais nenhum outro, fica a dever-se a afirmação bem necessária e dita com toda a frontalidade que, a realidade nacional portuguesa, está a viver sem Democracia. Admita-se – não pode perceber-se como é possível – haver dirigentes políticos, comentadores de serviço e alguns daqueles de ocasião que possam estar convencidos que temos uma Democracia o que, quanto a mim, é uma circunstância que, só por si, julgo dar às coisas um cariz de grande gravidade. De facto, uma qualquer insistência na convicção de classificar como Democracia o regime político em curso, no meu entender, só revela ou um oportunismo feroz ou uma ignorância extrema ou, pior, por ser prevalecente, uma desonestidade de grande monta.

Mal vão as coisas quando essa perspectiva política é apresentada e aceite por algumas personalidade que, quantas delas, têm gabarito intelectual firmado e são obreiros constantes da opinião pública nacional. Trata-se, afinal, dalguma intelectualidade nacional que, concluo – é mais uma opinião pessoal irreversível – ou não sabe distinguir liberdade e permissividade do que deverá ser Democracia (a ignorância não anda muito afastada das cabeças chamadas bem pensantes) ou, mais lamentável – e aí está a raiz de muitos males – tem compromissos políticos e éticos muito reprováveis que obrigam a fechar os olhos a todas as perversões, subserviências, abusos, malfeitorias, desonestidades, inconsequências, cedências e, imagine-se, comprovadamente, até a criminalidades.

A Constituição da República Portuguesa, como é visível, tem permitido atropelos constantes à Democracia cuja, ao contrário de quanto pensam os bonzos sagrados da politiquice nacional, não fica esgotada nos actos eleitorais que os alcandoram a auferir benefícios escandalosos durante, ou depois, duma passagem pelas lides legislativas e executivas.

Por infelicidade, no nosso País, há muitos incrédulos e muita aculturação e, deste modo, uma parcela imensa de portugueses tem aceite por bom e por certo tudo aquilo que os bonzos sagrados da manobra política dizem ser a Democracia. Mais grave, muito mais grave, bem poderá dizer-se, é não ter sido visto haver a coragem de contestá-los e fazê-lo, de sobremaneira, aos seus devotos mais destacados e mais publicitados. Honra ao Professor Doutor Vitorino Magalhães Godinho – tenho obrigação de insistir na repetição – de, até hoje, ter sido o único português, dentre quantos com gabarito intelectual de grande envergadura que, sem tibiezas, dum modo inigualável e em termos peremptórios, ao condenar o statu quo político – conforme documentado na comunicação social – afirmou, com clareza ímpar, que, entre nós – mas não só – não há Democracia.

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