quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma peregrinação a Fátima – I*

Carlos Loures

Como se sabe, o Satyagraha era o movimento indiano de resistência pacífica, inspirado nos sábios ensinamentos do Mahatma Gandhi, que durante os anos cinquenta, tentou integrar os territórios da Índia Portuguesa na União Indiana usando os louváveis princípios da não-violência. Os seus membros entravam nos territórios sob administração portuguesa, sentavam-se no chão, não oferecendo qualquer tipo de resistência, eram espancados pela tropa e pela polícia e arremessados brutalmente para o lado de lá da fronteira. Claro, como sempre que se enfrenta a besta estúpida de uma ditadura, a não-violência não conduziu a nada e a integração da colónia portuguesa na Índia só veio a ser possível pela força, com a invasão militar indiana em Dezembro de 1961. «Satiagrás» – era assim que, entre nós, eram chamados na linguagem popular estes indianos que entravam nos territórios, sendo depois expulsos pela tropa portuguesa. Mercê da propaganda patrioteira do regime, o termo ganhou alguma carga pejorativa e o senhor Sousa, o decano dos empregados de mesa do Café Ribatejano, resolveu aplicá-lo a um grupo do qual episodicamente fiz parte.

Era uma trupe heterogénea de estudantes, vadios, artistas, poetas, empregados e desempregados de escritório... gente assim. Só tínhamos uma coisa verdadeiramente em comum: a nossa condição de noctívagos assumidos, compulsivos. Quando o café fechava, se não estivesse a chover, ficávamos à porta a tentar encontrar uma forma de passar o resto da noite que, se não pudesse ser agradável, fosse pelo menos tão criativa quanto as condições o permitissem. Por vezes, alguém tinha uma ideia salvadora, outras vezes dividíamo-nos em pequenos e desalentados grupos ou ia cada um para seu lado. Eu estava a morar num quarto alugado na Almirante Reis e, por vezes, à noite, ia até aos Anjos, ao Ribatejano, reunir-me aos satiagrás. Por analogia, o apodo ganhava as suas justificações. Muitas vezes, com o café cheio, o grupo ocupava três ou quatro mesas e consumia uma, duas ou três bicas. No princípio dos meses era uma festa, uísques, brandes e outros luxos, mas à medida que o final do mês se aproximava a situação ia piorando a olhos vistos, chegando mesmo a recorrer-se ao crédito, privilégio a que nem todos, por razões óbvias, tinham acesso. Os empregados de mesa, chefiados pelo senhor Sousa tentavam tudo para nos expulsar e arranjar lugar para os que, muitas vezes, esperavam em pé que houvesse mesas vagas: tentavam primeiro as boas maneiras, experimentavam depois as grosserias, as ventoinhas que ficavam sobre as nossas mesas eram postas a funcionar em pleno Inverno, mas ninguém arredava pé. Porém, ao contrário do que acontecia com os colegas indianos, a nossa luta saía geralmente vitoriosa. A princípio a designação era só sussurrada pelos criados, depois, foram perdendo a vergonha e já gritavam de extremo a extremo da enorme sala: «Ó Chico, já levaste a bica aos satiagrás?» Nenhum de nós se ofendia e, pelo contrário, resolvemos mesmo adoptar o nome. Entretanto a gerência do café e o próprio senhor Sousa foram-se conformando. Embora fossemos, de uma forma geral, maus consumidores, a verdade é que o grupo, com alguma patine exótica, conferia um certo estilo àquele vulgar café de bairro, qualquer coisa indefinida situada entre o boémio e o intelectual. O marketing, embora de forma embrionária e pataqueira, ia já ditando as suas leis.

A personalidade tutelar do grupo era um tipo corpulento, coriáceo, de grandes e luzidios bigodes e voz tonitruante. Andava pelos trinta anos e era, segundo vim a saber, funcionário público. Não me lembro do nome, nem é importante, pois todos o conhecíamos por Gargântua. Era dono de uma gula virtual extremamente ambiciosa que excedia mesmo a capacidade real do seu estômago, que era muito grande. Por vezes, após uma lauta refeição, com o estômago repleto, o Gargântua não estava ainda subjectivamente saciado. Então ia aos lavabos, metia dois dedos à boca, vomitava, lavava o congestionado rosto e vinha sentar-se de novo à mesa e a refeição começava novamente pelo princípio. Era aquilo a que ele chamava uma «reabertura». Quando entrava numa taberna, aspirava o ar como se estivesse num pinhal e dizia-nos:
– Vá, rapazes, abram-me bem esses pulmões, sintam só este cheirinho a vinho!
A alcunha derivava de uma das suas habituais, e geralmente chatas, prelecções. Um dia, após uma ceia, já entrado nos copos, confessara-nos a sua devoção pela obra de Rabelais, sobretudo pelo ciclo de Gargântua e Pantagruel. Descrevera-nos o gigante Pantagruel e seu pai Gargântua. A divisa da Abadia de Thélème, «Faz aquilo que te apetecer», adoptara-a o nosso amigo como bússola para a sua vida. Falou-nos de Panurgo e da sua demanda em busca do oráculo da deusa Garrafa. De toda a palestra, aquele grupo de tontos, bêbedos, idiotas, pobres-diabos e pelintras retivera o nome de Gargântua. E assim passou a ser chamado, sem revelar ofensa ou incómodo. Já se referira algumas vezes a um livro que andava a escrever, uma tal Crónica de Factos Inusitados, da qual nunca nenhum de nós vira ou ouvira o mínimo vestígio. Revelado o título nessa noite de vulnerabilidade, o Gargântua referia-se-lhe agora apenas pela designação de a obra. Fazia-o geralmente com um ar distante e retorcendo as guias dos bigodes. Mas nunca entrava em pormenores. E se alguém fazia alguma pergunta relacionada com a obra o Gargântua não respondia. Limitava-se a olhar o interlocutor como que avaliando a sua capacidade de assimilação. E decidia-se sempre pelo silêncio. Era o seu mistério. Possuía uma personalidade forte, dominadora e uma argumentação pronta, embora nem sempre muita clara. Era, além de mais, um dos poucos que podia, com resultados asseguradamente positivos, dizer ao senhor Sousa «é para assentar». Mal recebia o ordenado, liquidava escrupulosamente as suas dívidas. Se estava bem disposto, servia de avalista ao crédito nos nossos modestos consumos ou até pagava mesmo generosas rodadas. Em suma, por todas as razões, mas principalmente por esta, o Gargântua era uma espécie de representante de Deus na mesa dos satiagrás.

Numa sexta-feira de uma bela noite de Maio fomo-nos reunindo como era costume. Ali não era obrigatório existir uma conversa comum. Uma conversa colectiva, geral, não se preparava – acontecia, embora muito raramente. Como já disse, nada de ideológico nos unia e, portanto, na maior parte das vezes, mais valia não conversarmos muito. Uns liam o jornal da tarde, um magazine desportivo ou um livro, havia quem fizesse palavras cruzadas ou estudasse, outros trocavam monossílabos, outros ainda ficavam simplesmente mergulhados nos seus pensamentos ou imersos nas aberrações dos seus humildes infernos pessoais. Estava-se nas vésperas da peregrinação anual a Fátima e alguém, tentando fazer espírito, disse que devíamos era ir ao Santuário. Embora nenhuma disciplina política ou religiosa nos unisse, o ateísmo, verdadeiro ou simulado, era ali francamente dominante. Só o Gargântua fazia gala na sua religiosidade. Afirmava-se crente de todas as religiões monoteístas, do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, inspiradas no «Deus único de Abraão», como ele gostava de dizer. Parecia complicado, mas mais tarde, como adiante veremos, ele quase explicou. Dado esse ateísmo ou agnosticismo formalmente compartilhado pela maioria dos satiagrás, houve uma gargalhada geral, ou melhor, quase geral, pois o Gargântua, silenciada a risada alvar com um olhar gélido e prenhe de ameaças, ficou calado, com os olhos a fitar o infinito. Passados momentos murmurou, como que falando para si:

– Fátima, a filha de Maomé. A esposa de Ali...

Não ligámos. Ele detinha o poder de ser excêntrico, hermético, revolucionário ou conservador, conforme lhe aprouvesse. Quando já ninguém se lembrava da chalaça sobre a peregrinação, deu uma forte palmada sobre o tampo da mesa, concitando deste modo as atenções do grupo:
– É uma boa ideia!
E, mandando calar todos com a sua voz estentórea, começou de imediato a gizar a estratégia:
– Amanhã, de manhãzinha, estamos aqui à porta. Depois apanhamos um autocarro para Sacavém e vamos para a estrada pedir boleia com uns cartazes a dizer «Fátima».
Ficámos banzados. Choveram perguntas:
– De manhãzinha, a que horas?
– Às sete, sete e meia.

Houve logo desistências, sob apressadas desculpas a que o líder não concedeu qualquer atenção e, finalmente, só uma meia dúzia alinhámos na proposta, principalmente aliciados por um «coelho à bruxa» que, segundo o Gargântua, um restaurante local, o Dávi, cozinhava de forma verdadeiramente fabulosa e única. A ideia era ficarmos lá de sábado para domingo e virmo-nos embora domingo depois de almoço, a tempo de toda a gente que tinha obrigações na segunda-feira, como era o caso do Gargântua, estar já em Lisboa. Nesse ano, o dia 12 calhava a um domingo, altura em que haveria a procissão das velas, cerimónia litúrgica em que não estávamos minimamente interessados.

Quando nos despedimos, o Gargântua fez uma última, mas importante, recomendação:
– Temos de ir com capa e batina. - e explicou - Sempre dá alguma credibilidade.
Esta última ideia criou-me um problema adicional, pois capa e batina fora coisa que nunca fizera parte do meu guarda-roupa. Até porque naquela época, usar capa e batina em Lisboa constituía um excelente certificado de cretinice. Lembrei-me depois de um rapaz que já vira com a farpela praxística no Continental, um café da Praça do Chile. Eu costumava lá parar, embora raramente, a jogar xadrez. Despedi-me e voei num eléctrico até ao Continental, onde, por sorte, encontrei o tal estudante que se prontificou a emprestar-me a indumentária. O facto de ele ser dez centímetros mais alto do que eu e bastante mais encorpado nem sequer me preocupou. O rapaz morava ali perto da Fonte Luminosa, no Bairro dos Actores, e eu vim com o embrulho da roupa até ao meu quarto.

Na manhã seguinte, lá nos encontrámos no local e à hora combinados. Eu dobrara as calças em baixo, segurando-as por dentro com fita gomada; a batina também estava comprida, mas a capa disfarçava o mau aspecto geral do conjunto. O Gargântua mediu-me da cabeça aos pés:
– Estás porreiro, pareces um pinguim.
Ele não estava melhor, pois usava uma roupa que fora mesmo dele, mas quinze anos e quarenta quilos antes, quando fora estudante liceal. Porém, nunca é muito conveniente dizer a verdade aos líderes, sobretudo quando ela não é agradável.

Éramos apenas seis: o Gargântua, o Nunes pinta-monos, um rapaz chamado Cortês, que parava também pelo Café Gelo, do Rossio, muito gago, que, segundo ouvi dizer, está agora poeta em Guimarães, o Ernesto, ajudante de cenografia num teatro do Parque Mayer, também frequentador do Gelo e do Lisboa, o Antunes, um estudante que tocava guitarra, e a minha pessoa. Eu e o Nunes não éramos frequentadores assíduos daquela tertúlia e, por isso, o Gargântua tratava-nos com maior deferência (ou seja, com menor rudeza) do que aos outros, como o Cortês, o Antunes e o Ernesto e restantes satiagrás, aos quais era óbvio que considerava como súbditos e a quem se referia depreciativamente com a designação genérica de «a cambada». Sem mais conversas, tomámos o caminho da central de camionagem que ficava um pouco abaixo, junto ao chafariz do Desterro.

(Continua)

*Excerto do livro inédito A Vida é um Desporto Violento.

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