Carlos Loures
O dia estava bastante bonito e fomos beber café. Café a sério, pois o da hospedaria era uma água chilra. O Gargântua acompanhou com uma aguardente velha. E pagou. Aquela batina tinha, por certo, poderes mágicos. Dos seus bolsos o dinheiro continuava a brotar à medida justa das nossas necessidades.
– Tivemos uma boa ideia em vir – disse ele quando voltámos à rua.
Na longa alameda do Santuário, principalmente junto à Capelinha das Aparições, aglomerava-se já uma considerável multidão de fiéis. Os degraus da basílica estavam também repletos de gente que entrava para uma das muitas missas da manhã. Fomos percorrendo lentamente a alameda. Sentámo-nos num banco de pedra, à sombra de uma árvore, com o Gargântua ao centro, como, segundo as imagens clássicas, devia ocorrer na informal academia de Platão.
– Estão a ver aquelas pobres gentes? – perguntou-nos o Gargântua – Vejam ao que leva a falta de verdadeira fé e o desespero da descrença no homem e em Deus! Porque só os descrentes precisam destas manifestações exteriores de crença. Como dizia o grande Omar Khayyam: «Nos mosteiros, nas sinagogas ou nas mesquitas escondem-se os fracos que receiam o Inferno. O homem que conhece a grandeza de Alá não acolhe no seu coração as más sementes do terror e da imploração.» E disse também: «O que tem mais valor? Sentar-se numa taberna e fazer exame de consciência, ou ajoelhar numa mesquita com a alma fechada?». No fundo, ser verdadeiramente religioso é apenas estabelecer uma relação entre o homem e o universo. Nada mais simples do que isto.
Depois de uma pausa, acrescentou:
– Que mal pode fazer o vinho? O vinho faz bem a quase tudo. O Profeta apenas condenou a ingestão do vinho feito de tâmara. Alguns discípulos mais zelosos é que tornaram a proibição extensiva a todo o álcool. Em todas as obras sagradas e divinas aparecem sempre sacanas destes, artolas com excesso de zelo, para estragar o trabalho de quem sabe.
Quando ele se calou, com o ar solene, hierático, de um dervixe ou de um aiatola que tivesse posto míseros mortais em contacto com a transcendência, após um conveniente silêncio, o Cortês, a medo, gaguejando, claro, perguntou-lhe, se não seria melhor fazermo-nos à estrada e irmos andando para Lisboa. Ao cabo de um grande silêncio e quando todos julgávamos já que a pergunta não tinha sido ouvida, respondeu:
– Não. Só voltamos depois do almoço. É o que está programado. É muito importante cumprir os programas. Se não somos capazes de levar a cabo um plano tão simples que traçámos ainda anteontem à noite, como é que nos podemos atrever a encarar o futuro de olhos nos olhos? Hã?
Estava um pouco colérico e nós, envergonhados, baixámos os olhos. O Cortês ainda gaguejou:
– Só e-e-estou preocupado po-po-por causa da da ma-ma-massa!
O Gargântua encolheu os ombros e nem se dignou responder, ou melhor, respondeu com uma pergunta:
– Tens vergonha de ser gago, não tens?
O Cortês acenou timidamente que sim.
– Pois não há qualquer razão para teres. Grandes homens foram gagos. E já nem vos vou falar do Demóstenes, grande orador, grande político. Upa! Upa! Falo de um gajo muito mais importante, logo abaixo do xerife, de Jeová, a bem dizer.
Fez um silêncio de suspense, após o que lançou a revelação:
- O Moisés era gago!
- Nunca tinha ouvido dizer – comentou o Nunes, palitando um dente com um pau de fósforo, sem dar sinais da emoção com que a informação merecia ser acolhida.
– Pois não. Tem sido um segredo bem escondido. Talvez tenha sido por em bebé ter estado nas águas frias do rio dentro de uma arca de juncos até que a filha do faraó de lá o retirou. Um problema de hipotermia pode ter desencadeado a disfunção na fala. Sabe-se lá – cogitou como que para si mesmo.
– Mas há provas disso? – perguntei.
Olhou-me de alto a baixo como se a minha pergunta fosse insultuosamente disparatada.
– Provas? Claro que há provas. Vem tudo no Génesis. Foi Aarão quem teve de transmitir os mandamentos ao povo de Israel, não foi? E porquê? Porquê? É simples: já viram a barracada que era o Moisés, naquele momento solene da vida da humanidade a dizer, aqui como o Cortês, n-n-não ma-ma-tarás! Foi também por isso que ele teve de entoar aquele cântico «Cantarei ao Senhor, etc., etc.». Como se sabe os gagos a cantar não gaguejam. Provas? Ora, vai-te matar. Há montes de provas!
E lá nos confidenciou que este era outro dos factos inusitados da sua colecção destinada à obra.
Aproximava-se a hora do almoço, era o que os nossos estômagos diziam, mas nenhum de nós tinha a coragem de lhes dar voz. Até que o Gargântua verbalizou o nosso anseio colectivo:
– Bem, vamos lá almoçar com os franciscanos.
E regressámos à Hospedaria de São Francisco. Na sala das refeições estava já muita gente, mas conseguimos encontrar lugar para os seis numa das mesas. O nosso frade aproximou-se saltitante, enrolando as mãos uma na outra e perguntando o que queríamos comer. Depois de nos ter recitado a ementa e de um pequeno conciliábulo entre os seis, optámos por cabrito à padeira, acompanhado (nada de luxos!) por vinho tinto discreto, um bucelas do ano. Estava uma maravilha. Nós dissemos que não queríamos sobremesa, mas o Gargântua insistiu em que encomendássemos uns doces conventuais para os seis. E, com os cafés, veio também um uísque velho para ele. O frade veio perguntar-nos se queríamos mais alguma coisa.
– Têm cigarrilhas? – perguntou o Gargântua.
Não tinham. Mas tinham charutos.
– Ainda melhor! Venha um charuto. Um Romeo y Julieta? Viva o luxo! É o melhor que há para a digestão – explicou ele ao frade quando este trouxe a caixa. Para nós, elucidou – Eram dos preferidos do senhor rei D. Carlos.
Voluptuosamente, tirou o papel celofane do charuto, retirou a cinta e cortou-lhe a ponta. Espetou-lhe um palito e segurou a ponta entre os dentes. Acendeu-o de olhos semicerrados. Nós assistíamos a esta liturgia enquanto íamos aspirando o cheiro adocicado. Seguindo-lhe o exemplo, os que fumavam puxaram dos seus modestos cigarros, como quem come pão seco com o odor de carne assada. Lançou um olhar em redor.
Havia agora menos gente. Na parede de fundo um crucifixo presidia. Numa das paredes laterais, aquela que ficava na nossa frente, estava um Cristo segurando um coração em chamas.
– Aquela imagem está errada!
Nós olhámos com atenção e não vimos nada de estranho. Era um convencional «Sagrado Coração de Jesus», como lhe chamava o povo. O Nunes, certamente que para desconversar, disse:
– Lá isso é verdade. O Jota tem um ar esquisito.
O Gargântua perguntou:
– Esquisito, como?
– Esquisito, amaneirado, a mãozinha a segurar no coração, os olhinhos revirados para cima...
O Gargântua interrompeu-o, ameaçador:
– Ouve lá? Estás a insinuar que o filho de Deus Nosso Senhor era panilas?
O Nunes tentou uma retirada estratégica:
– Bem, não vou tão longe.
– É bom que não vás. Partia-te já os cornos.
Depois assumiu um ar didáctico:
– A imagem incorre num erro clássico.
Uma pausa:
– Jesus nunca usou cabelo comprido.
E tivemos direito ao que, por certo, era mais uma pérola da sua Crónica:
– Cristo usava o cabelo curto. E assim como a lenda da virgindade de Maria terá nascido de um erro de tradução, pois em hebraico as palavras «jovem» e «virgem» eram sinónimas [«bons tempos!», comentou o Ernesto], a ideia dos cabelos compridos de Cristo terá a sua origem numa transposição, feita pelos gnósticos no século II, da imagem dos filósofos daquele tempo, que usavam cabelos e barbas compridas. Naquela época, na Palestina, só os názires usavam cabelo comprido.
– Porra, já havia nazis nesse tempo?
O Nunes continuava a tentar estragar a conversa, mas desta vez o Gargântua não lhe deu troco.
– Só quem tinha feito voto de názir podia deixar crescer o cabelo. Em contrapartida, os názires não podiam tocar em cadáveres e se o fizessem ficavam impedidos de entrar no templo. Ora Jesus tocava nos mortos e continuava a predicar na sinagoga. Os názires não podiam beber vinho e Cristo bebia. Até São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, condena o uso de cabelos compridos pelos homens, considerando ser desonra para o varão ter cabelo crescido. Cristo só podia usar cabelo curto. As imagens, de Leonardo da Vinci a Ticiano, estão todas erradas e o santo sudário de Turim é uma contrafacção evidente. Uma trapaça, uma aldrabice do caraças. Cristo usava cabelo curto! – concluiu com ar levemente colérico, olhando-nos, desafiando-nos a discordar. O que ninguém fez, claro.
Depois voltou atrás e, após mais um olhar ameaçador para o Nunes, explicou que Cristo não terá sido, de modo algum, homossexual. Em tom confidencial, baixando a voz para não poder ser ouvido pelos frades ou seus acólitos, deu-nos outra informação: Jesus seria até, muito provavelmente, o pai de João Evangelista, o autor do Apocalipse. Resultado das suas intimidades com Maria Madalena...
(Continua)
Excerto do livro inédito A Vida é um Desporto Violento.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
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