sábado, 15 de maio de 2010

Uma peregrinação a Fátima -IV

Carlos Loures


Estávamos já só nós na sala. Numa outra mesa, os frades e os empregados comiam. Levantámo-nos. O frade pequeno interrompeu o almoço e veio ter connosco.
– Estava tudo bem?
– O melhor possível – respondeu prontamente o Gargântua.
O frade puxou de um papelinho e mostrou-o:
– A conta.
O Gargântua pegou no papel. E olhou-o.
– Trezentos e vinte escudos – leu em voz alta – Não foi nada caro. É até mesmo um preço muito razoável, dada a qualidade da refeição.
Nós esperávamos, expectantes. O fradeco também.
– Bem, irmão – disse lentamente o Gargântua – Há só um pequeno problema: nós não temos dinheiro para pagar.
A cara do frade fechou-se, apagando instantaneamente o seu permanente e artificial sorriso. Em tom apaziguador o Gargântua apressou-se, no entanto, a acrescentar:
– Não temos dinheiro, irmão, mas temos fé. Muita fé.
O frade fez sinal aos outros para nos vedarem a saída e andou com a mão à volta de uma orelha, dizendo para um deles telefonar. Para a polícia, certamente.
– A fé não chega – disse com um ar subitamente duro – Se não têm dinheiro, vão presos.
O Gargântua fez um ar magoado. No seu gesto mais peculiar, cofiava os bigodes:
– A fé não chega? - a sua expressão revelava uma profunda mágoa e desilusão.
Porém, subitamente, antes de o outro responder, os seus cento e vinte quilos passaram da imobilidade total à rapidez de um furacão. Empurrou o frade, que caiu por cima de uma mesa, e correu para os sete ou oito que formavam uma barreira junto à saída. Nós seguimo-lo. O impacte dele no amontoado de frades e de labregos foi demolidor. Sem lhes bater, dir-se-ia que sem violência, apenas com o seu peso deslocado à velocidade de um tiro de balestra, projectou-os em diversas direcções. Um deles ao cair quebrou um dos paus que sustentava a tenda. As paredes, daquele lado, oscilaram e imobilizaram-se numa posição torcida. Nós saímos correndo. Mas o Gargântua voltou atrás. Gritou para o interior do pandemónio de lona, madeiras e corpos agitados em que a tenda se transformara:
– Isso não é coisa que se diga, irmão! A fé chega sempre. A fé move montanhas! É a fé que nos salva!
Nós não parámos para ver o efeito produzido por estas sábias palavras. Viemos a correr até à estrada. Estava calor. Ficámos, ofegantes, estoirados, à espera de que o Gargântua chegasse. Ouvimos uma sirene e desatámos novamente a correr. A polícia vinha já no nosso encalço, pensámos. Caramba, tão depressa? Que eficiência! Estávamos num ponto difícil da estrada. Um barranco de cada lado dificultava-nos a fuga. Continuámos a correr. Mas era uma tentativa votada ao fracasso. O carro, com o grito da sirene esmorecendo, imobilizou-se uns metros adiante de nós. Era uma ambulância. Parámos, na expectativa, prontos a descer o barranco. Um tipo franzino saltou do banco do motorista para o asfalto. Tratava-se de um bombeiro. O seu ar não era ameaçador, mas antes pacífico, doméstico, pelo que o deixámos aproximar, embora permanecêssemos vigilantes. Quando chegou ao pé de nós, vimos que era um sujeito já entrado na idade, magricela, de gaforina grisalha saltando por debaixo do bivaque:
– Vejo que vêm a fugir.
O Gargântua deu um passo à frente para explicar, sabe-se lá o quê. Apercebendo-se disso, o outro, com um gesto surpreendentemente enérgico, cortante, disse-lhe:
– Não quero ouvir, não quero saber nada. Já dei fuga a muitos, mas nunca quero saber dos pormenores. Entrem para a ambulância e acomodem-se o melhor que puderem.
Abriu-nos as duas portas de trás. Entrámos. Sentámo-nos na maca que vinha montada e outros no chão.
– Vão para Lisboa, não é? - Assentimos. – Eu também. Então até já.
E fechou-nos as portas. O carro arrancou a grande velocidade com a sirene a uivar e nós caímos uns para cima dos outros. O Gargântua agarrou-se com força ao respirador do tecto e aguentou-se.
– Oxalá este tipo não nos entregue à polícia – comentou o Antunes.
– Se entregar, logo se vê – respondeu serenamente o Gargântua – mas não me parece. É louco, obviamente, mas tem a honestidade e a bondade estampadas nos olhos.
– Se foo-foo-se ho-ho-nesto, n-nnão ajudava cri-cri-criminosos a fugir. – sentenciou o Cortês.
O Gargântua disse apenas:
– Nós não somos criminosos. Somos peregrinos. Peregrinos pobres. Somos pessoas de fé. O nosso único crime é sermos pobres. Ele viu a honestidade e a crença estampadas nos nossos olhos.
Ninguém ousou discordar desta verdade mais duvidosa do que uma moeda falsa. Para nos entretermos, fomos enrolando ligaduras à volta das cabeças e dos braços. Pusemos alguns adesivos. Mais criativo, o Ernesto resolveu encher a cara de mercurocromo.
Passados uns três quartos de hora de um andamento a uma velocidade que estava a prejudicar a estabilidade do cabrito à padeira nos nossos estômagos, o carro travou subitamente. O Antunes, agoirento como sempre, disse o que todos temíamos que fosse verdade:
– O gajo parou à porta de uma esquadra.
O bombeiro abriu-nos as portas:
– Parei para bebermos um copo.
E riu-se com gosto quando viu o nosso ar de acidentados. Estávamos numa aldeia, à convidativa porta de um tasco. Entrámos com o bombeiro à frente. As conversas dos bebedores e jogadores de dominó interromperam-se. Devíamos fazer um cortejo magnífico. Chegados ao balcão, o bombeiro ia a fazer a encomenda, mas o Gargântua antecipou-se. Puxou de duas notas de vinte escudos que tinha ainda num dos miraculosos bolsos da batina. Para nós anunciou:
– São as últimas. – E para o tendeiro: – Amigo, troque-nos isto por vinho e por qualquer coisa para acompanhar.
O homem disse que sim e fomo-nos sentar os sete. Passado pouco tempo, trouxe-nos um grande jarro de vinho tinto, um prato com carapaus fritos e um cesto com pão:
– Depois trago mais.
Apesar do lauto almoço, a emoção da fuga criara-nos um apetite adicional, e começámos a devorar a merenda. Quando estávamos já a reduzir a velocidade da mastigação, o Gargântua disparou mais uma das suas misteriosas perguntas:
– Vocês sabem quem foi Aícha?
Olhava-nos de soslaio, seguro de que a resposta ia ser negativa. Ninguém sabia. E percebemos logo que íamos ter o privilégio de ouvir mais um dos factos. Recomeçámos a comer os carapaus e a beber o tinto. O discurso veio em estilo de guia turístico:
– Aícha foi a terceira mulher de Maomé. Era filha de Abu Bakr, el-Siddikh, que quer dizer o Verídico, o Verdadeiro. Foi um amigo de infância do Profeta e acompanhou-o desde o princípio, quando em 610 teve uma visão no monte Hira e despertou para a consciência de ser um enviado de Alá à Terra. Abu Bakr era rico e pôs a sua fortuna ao serviço do Islão e, não contente com isso, ofereceu a sua filha Aícha como esposa a Maomé. Aícha era ainda uma criança de nove anos e quando, passados precisamente outros nove, o Profeta bateu a bota ela tinha só dezoito anos. Ficou viúva aos dezoito anos e dizem que era linda.
O Nunes deu um assobio e o Ernesto soltou um gemido obsceno. O Gargântua silenciou-os com um olhar severo:
– Linda e inteligente, pois rapidamente começou a exercer uma grande influência entre a comunidade islâmica, ao ponto de lhe chamarem a «mãe dos crentes». Quando começaram as lutas pela sucessão do Profeta, ela atirou-se como gato a bofe aos partidários do Ali, primo e genro de Maomé, pois casara com Fátima, a tal Fátima de que já vos falei. Ali tinha ido meter intrigas no cu do velho, dizendo que a Aícha lhe punha os cornos e aconselhando-o a repudiá-la como adúltera. Portanto, ela não podia com o Ali, nem pintado, e, por isso, apoiou Talha e Zobeir. Em 656 deu-se a Batalha do Camelo, assim chamada porque Aícha combateu montada num camelo. Foi vencida e aprisionada, mas parece que, apesar de tudo, o Ali a tratou bem.
O Nunes continuou a tentar avacalhar a conversa:
– Pudera, se calhar também a comeu.
Mais uma vez, o Gargântua fingiu não ouvir. O tendeiro trouxe mais acepipes e também mais um jarro com vinho tinto. Tal como no Livro Quinto do ciclo, em que Panurgo recebe do oráculo a ordem exemplar, Gargântua gritou-nos:
– Bebam!
E prosseguiu os seus ensinamentos. Nós não escutávamos com demasiada atenção, mas o bombeiro estava fascinado com aquele contínuo fluxo verbal. Como os ratos atraídos pela flauta de Hamelin, o taberneiro e os jogadores de dominó foram abandonando as suas actividades e acercando-se, fizeram roda para escutar a explicação de muitas coisas: da verdadeira diferença entre fé e crença (a primeira baseia-se na razão e cria ideias sobre Deus, a segunda é a vivência interior da divindade); da estupidez e da arrogância que representa, num universo onde, por certo, abundam biliões de biliões de formas de vida diferentes, acreditar-se que o homem foi feito à imagem e à semelhança de Deus (os imbecis não sabem ler e interpretar devidamente os livros sagrados); de que esta excessiva antropomorfização constitui a principal raiz do ateísmo, pois, rebaixando Deus à condição de coisa humana, forneceu aos filósofos do iluminismo e aos pindéricos que se seguiram argumentos contra a fé e a crença; etc. Enfim, desbobinou a essência da parte final da sua obra, uma espécie de girândola pirotécnica que, pelos vistos, e apesar da sua nobre intenção ecuménica, se fosse publicada, lhe acarretaria a excomunhão e a condenação de todas as religiões do «Deus único de Abraão». E das outras, pois na sua arenga os respeitáveis hinduísmo, budismo e tauismo, eram sempre referidas como idolatrias «pagãs». O bombeiro, o tendeiro e os frequentadores do tasco ficaram em silêncio quando ele, finalmente esgotado, se calou e, meditativo, olhou o copo vazio. Saindo do seu estupor, o dono da taberna foi reverentemente buscar mais um jarro de vinho, um grande pão caseiro e um queijo a condizer («Oferta da casa!», informou).
Era já noite quando retomámos a marcha. O bombeiro foi deixar-nos à porta do Ribatejano. Despedimo-nos desta alma nobre com efusivas juras de retribuirmos o seu gesto salvador. Entrámos no café. O próprio senhor Sousa, que costumava olhar-nos com algum desdém, impressionado e curioso com as nossas indumentárias e com as aparentes escoriações, veio-nos atender. Os satiagrás que não tinham participado na expedição punitiva lá estavam, ocupando as mesas do costume, sob um ameaçador céu de ventoinhas. Nada mudara desde sexta-feira. Quando nos sentámos, levantaram os olhos dos jornais e dos livros ou suspenderam os seus anódinos e curtos diálogos. Não ousaram fazer perguntas. O Gargântua olhou-os severamente com cintilações de excomunhão. Disse para um senhor Sousa expectante e quase respeitoso:
– Traga seis uísques para os peregrinos. – E acrescentou as palavras mágicas: – É para assentar.
Depois, voltou-se para nós, os cruzados, e disse-nos num sonhador tom de bênção:
– Tivemos uma bela ideia. Foi uma linda jornada.
Lentamente voltou-se para os outros, com o semblante anoitecido:
– E vocês, cambada de inúteis?
Lar, doce lar.
Tudo voltara à normalidade.

Excerto do livro inédito A Vida é um Desporto Violento.

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