domingo, 27 de junho de 2010

A comédia que falta escrever

Carlos Loures


Parecia um dia de Verão igual a todos os outros, aquele 3 de Agosto de 1968. Salazar passava as férias no Forte de Santo António do Estoril como, aliás, acontecia todos os anos. No terraço, batido pelo sol, preparava-se para ler os jornais diários enquanto o calista, o senhor Hilário, lhe iria tratar dos pés. Segundo se disse depois, o ditador sentou-se pesadamente sobre a cadeira de lona, ou melhor, deixou-se cair. A cadeira não terá aguentado o impacto, desconjuntou-se e Salazar teria batido violentamente com a cabeça nas lajes. Corroborando esta versão do calista e da D. Maria de Jesus, o ex-ministro e embaixador Franco Nogueira (que não terá assistido ao acidente) conta que, embora queixando-se de dores no corpo e, particularmente, na cabeça, o ditador não deixou que o médico fosse chamado e foi tomando aspirinas. Esta a versão oficial, com mais ou menos pormenores.

Há uma segunda versão. O barbeiro Manuel Marques, que também teria assistido à queda, afirma que esta não se deu da cadeira. Esta estaria fora do lugar e Salazar distraidamente, já a olhar para os jornais, caíra  desamparado.


Uma terceira versão, afirma que a queda se terá dado na banheira, mas para evitar que o País fosse sacudido por anedotas pícaras, com a nudez do ditador como tema principal, inventou-se a história da cadeira, com descoordenação entre a versão do ministro e a do barbeiro. Um ex-ministro de Salazar, já há muitos anos, afirmou-me que esta, a da banheira, é que é a versão correcta. Mas, para o caso não interessa, Salazar caiu, bateu com a cabeça e não se quis tratar, como relatou Franco Nogueira.

As dores não passavam e as aspirinas já não faziam efeito. Só em 4 de Setembro, aceitou que estava doente. No dia 6 foi internado no Hospital de São José. Há discrepâncias quanto ao diagnóstico – hematoma intracraniano, trombose cerebral… mas unanimidade na urgência de operar. Em 7 de Setembro foi operado no Hospital da Cruz Vermelha. Ficou incapacitado e o presidente da República, em 27 de Setembro, nomeou Marcello Caetano para substituir Salazar. E aqui começou a comédia.

Foi o Adriano de Carvalho, um amigo jornalista (entretanto falecido), quem me chamou a atenção do potencial dramático da situação. Viera visitar-me e trouxera um exemplar, salvo erro do Le Monde, onde se dizia que Salazar não sabia que fora substituído e que os «ministros» do seu governo iam à residência de S. Bento, para reuniões do «conselho de ministros». E todos eles, estando à frente de empresas ou em cargos políticos, se prestavam àquela farsa.

Soube depois que aquele teatro do absurdo, dirigido pela D. Maria de Jesus, tinha uma logística complicada. Um grupo de senhoras ia todas as manhãs a S. Bento preparar os jornais para o «Senhor Professor». Cortavam todas notícias que as pudessem desmascarar.

As visitas das crianças das escolas, ritual que vinha desde os tempos heróicos da «Revolução Nacional» continuavam. Um dia, uma das senhoras quis brilhar e perguntou a uma menina, supondo-a devidamente amestrada: «- Diz lá, querida, quem é o Senhor Presidente do Conselho?» «- É o Senhor Professor Marcelo Caetano!», respondeu a garota, provocando o pânico entre as senhoras do grupo e as professoras. Mas Salazar não reagiu, manteve o sorriso apático e distante. O tal ex-ministro do seu último governo garantia-me que Salazar, nos momentos de lucidez, sabia o que se passava, fingindo que se deixava enganar.

Talvez. No entanto, deixo a ideia a um dramaturgo que a queira aproveitar: um ditador tem um acidente, fica afectado. Os ministros e secretários de Estado, que já estão todos a olhar pela vida, em conselhos de administração de empresas públicas, de bancos, de multinacionais, no dia do conselho de ministros têm de deixar os seus afazeres e ir ao Palácio reunir e despachar com sua excelência. Deliberando, intervindo, sugerindo, como se fosse a sério. Perante um ditador que talvez saiba o que se passa, mas que finge não saber…

Uma peça e tanto.

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