terça-feira, 22 de junho de 2010

José Saramago, palavra definitiva

Sílvio Castro

A palavra definitiva é aquela que atingiu todas as dimensões e confins, superando tempo e espaço. A morte de José Saramago representa para a literatura portuguesa, e não somente para ela, a tomada final de consciência de um alto testemunho da palavra definitiva. Testemunho feito a um só tempo de insólita capacidade de criação artística e de integração na consciência do mundo. Voz certamente incômoda pois, fascinando pelo vigor expressivo do texto literário que se faz a cada momento mito, não se limita somente a encantar na sua recepção, mas a conduzir o receptor privilegiado à tomada da consciência ética e política quanto às mais diversas dimensões do estar-no-mundo.


Nascido em Azinhaga, aos 16 de novembro de 1922, José Saramago acompanha a sua família humilde que se transfere para Lisboa em 1924. Sua formação é múltipla, condicionada pelas precárias condiçõe financeiras do pai. Mas o moço José supera os maiores obstáculos e se prepara para futuras grandes conquistas. Em 1947, casa-se com Ida Reis que lhe dá a única filha, Violante, nascida no mesmo ano. Desde sempre atento à realidade política de seu país, ele se increve, em 1969, no Partido Comunista Português. A partir de então intensifica, em modo particular, a sua dimensão individual, bem como uma correspondente produção literária. A assumida posição política oficial o conduz a encetar um intenso período da própria produção literária. Escreve de tudo, a começar pela poesia. Assume, em 1975, a direção do Suplemento Literário do Diário de Notícias e passa a viver como um profissional da literatura, com todas as consequências que uma tal posição obriga a todo escritor de um país de pequeno mercado editorial. Mas, a tudo enfrenta, escrevendo poemas, crônicas, contos, romances, ensaios, textos teatrais. O futuro escritor de imenso sucesso internacional se prepara assim para as próximas grandes realizações pessoais.

O primeiro romace publicado por Saramago é Terra do pecado, de 1947, obra mais

tarde repudiada pelo autor. Efetivamente, o primeiro grande texto saramaguiano é o romance Levantados do chão, de 1980, inserido na já grande tradição dos romances do neo-realismo português. Segue aquele que talvez seja a obra-prima de Saramago, Memorial do convento (1982), com o qual o autor conquista defintitiva projeção inernacional. Logo depois aparece o inovador texto ficcional de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), definitivo marco do nascimento de um grande romancista que produzirá ativamente até o momento de sua morte.

A criatividade literária de Saramago pode ser dita como consequência direta de sua preocupação com a palavra e, de consequência, com a poesia. Do exercício da poesia, o autor do Memorial do convento faz derivar uma imediata, empenhada participação com a linguagem poética e com a consciência da palavra como elemento essencial da criação literária:

“As palavras são novas: nascem quando

No ar as projectamos em cristais

De macias ou duras ressonâncias.”

Além dos processos derivados diretamente da prática da poesia, Saramago recorre igualmente a uma sua primeira atividades de prosador, aquela da crônica, numa experiência que prefigura todo o sistema narrativo do autor. A crônica saramaguiana é manifestação do homem político e de sua direta partecipação com a dimensão social. Nela ele testemunha um empenho cívico que passa da discursão programada, até a análise da relação do “eu”dialético com o “outro”, razão do vínculo do mesmo “eu” com a história.

Antes de fazer-se livro, as crônicas aparecem no jornais nos quais trabalhou Saramago por muitos anos, sobretudo di 1968 a 1975. A linguagem jornalística - linguagem feita de sínteses, velocidade expressiva, clareza nos conceitos imediatos, consciência dos limites exspsressivos com respeito ao renovar-se constante dos eventos – se transforma em importante laboratório para o futuro grande romancista e à melhor perspectiva para a sua escritura. Das crônicas ele tomas muitos dos elementos que permitem a um tomancista um contacto mais íntimo e claro com a realidade e o devir da história, tornando-o capaz de unir oralidade e língua culta. Além disso, o autor, como ele mesmo sempre amou declarar, faz com que esta operação aparentemente menor se transforme em uma espécie de banco de dados, ao qual possa recorrer como fonte de matéria de seus grandes romances.

As duas experiências, aquela lírica e aquela cronística, são etapas substanciais para a formação da linguagem do autor de O cerco de Lisboa. Como razão dos muitos elementos de coincidência entre os dois gêneros literários, pela qual a prosa da crônica muitas vezes tende a aproximar-se à pronta síntese linguística da lírica e a retirar desta igualmente as mais amplas potencialidades expressiva, Saramago gradualmente de tudo isso colhe as características típicas de seu processo estilístico: rigor expressivo, essencialidade e clareza narrativa, abertura para com as dimensões mais radicais e mágicas da linguagem, consciência do direito absoluto da liberdade artística, uso da língua da realidade objetiva e dos valores significantes da oralidade.

A operação pela conquista da palavra definitiva em Saramago sempre me atraiu pessoalmente, sobre ela escrevendo criticamente e ao autor consignando o contacto e o convívio com as minhas atividades didáticas na Universidade de Padova. Quanto aos textos, posso citar, entre outros: 1)“L’invenzione della realtà e della storia”, in Profili Letterari (Edit. Montefeltro), Mendrisio, Suiça, junho de 1994, pp.45-62; 2) “Andamento espaço-temporal como descoberta em Viagem a Portugal, in AA.VV. José Saramago – Il bagaglio dello scrittore (org. de Giulia Lanciani), Bulzoni edit., Roma, 1996, pp. 101-109. Na Universidade de Padova Saramago foi recebido em 1984 quando da saída da tradução italiana do Memorial do Convento, em edição Feltrinelli. Nessa ocasião Saramago estava acompanhado pela sua segunda companheira, a romancista Isabel da Nóbrega. Logo após o autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo haver recebido o Prêmio Nobel para a literatura-1998, organizamos em Padova, em colaboração com o prof. Manuel Simões, da Universidade de Veneza, e com o prof. Giampaolo Tonini, da Universidade de Trieste, o “Convegno Internazionale su José Saramago (Premio Nobel per la letteratura, 1998 – Univ. di Padova, Venezia e Trieste, 13-15 maggio 1994.“ Nessa oportunidade apresentei a relação “A Jangada de Pedra: dal fiume patrio al mare ilimitato”.

No dia 18 de junho de 2010 morria serenamente José Saramago na sua casa de Lanzarote, assistito por aquela que ele esposou em 16 de julho de 2007, a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Rio. A voz de Saramago então silenciava definitiva, porém projetando com grande ênfase a palavra definitiva que o caracterizava. A mesma que mais amplamente se traduzia em prosa, mas que em poesia sabia manter a correspondente força de comunicação, sempre procurando a melhor união entre literatura e empenho social, sem condicionar-se jamais de ser considerado incomôdo. A palavra defintiva neste momento ecoa em poemas como “Se não tenho outra voz...“:

Se não tenho outra voz que me desdobre


Em ecos doutros sons este silêncio


É falar, ir falando, até que sobre


A palavra escondida do que penso.






E dizê-la, quebrado, entre desvios


De flecha que a si mesma se envenena,


Ou mar alto coalhado de navios


Onde o braço afogado nos acena.






É forçar para o fundo uma raiz


Quando a pedra cabal corta caminho,


É lançar para cima quanto diz


Que mais árvore é o tronco mais sozinho.






Ela dirá, palavra descoberta,


Os ditos do costume de viver:


Esta hora que aperta e desaperta,


O não ver, o não ter, o quase ser.





1 comentário:

  1. José Saramago, el escritor que nunca se escondió

    Tu abuelo, nos contaste, intuyendo el final de su existencia en la Tierra, fue diciendo adiós a los amigos, a su familia, a la naturaleza, porque quería estar lúcido y presente cuando la muerte llegara. Por eso, se abrazaba a los árboles que guardaban las páginas escritas de su vida.

    Me llega la triste noticia de tu muerte y te evoco, el verano pasado, en la biblioteca de tu casa de Lanzarote. Vuelves a ser el perfecto anfitrión, el hombre cortés, inteligente, generoso, al que le gusta compartir la amistad. Me honra ser tu invitado. Pilar, tu compañera, tu cómplice, parece señalar en silencio a todos y cada uno de tus personajes en ti: al Ricardo Reis que se compadece de la soledad de los poetas y ayuda a no temer la memoria, a los inventores de artefactos angélicos que quieren enseñar a los seres humanos a volar "aunque les cueste la vida", a aquel alfarero que libra a los esclavos de una nueva caverna porque se niega a aceptar ciertas cegueras que imponen desigualdad y dolor.

    Tú, que has sido también todos los nombres, no terminas aquí. 2010 es ya, para siempre, el año de la muerte de José Saramago, pero tus libros forman un maravilloso bosque de dignidad. Y yo me abrazo al árbol para mantener tu memoria.


    (José Luis Rodríguez Zapatero em «El País»

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