Carlos Loures
Na passada sexta-feira, estava a almoçar com uns amigos quando na televisão disseram que José Saramago tinha morrido há minutos. Restaurante modesto, perto do mar, onde se serve bom peixe, com uma clientela heterogénea incluindo estrangeiros, surpreendeu-me o sopro de tristeza que percorreu a sala. Como se todos tivéssemos tido a noção da perda que nos atingia.
Quis vir logo para casa e escrever um texto de despedida a Saramago. Mas não pude, pois o almoço também era de trabalho. Quando cheguei vi que o Professor Raúl Iturra tinha escrito belas palavras, um poema. Fiz delas uma primeira homenagem do nosso blogue. Depois, a pouco e pouco, têm chegado depoimentos, comentários. Foi no domingo o Josep Vidal na carta que me endereçou, ontem um testemunho da Clara Castilho e outro do Luís Moreira, já hoje, um texto de Sílvio Castro. Aqui ficam também algumas palavras minhas.
Não sou admirador incondicional de nenhum escritor. Com Saramago não fugi a essa regra. Não gostei por igual de todos os seus livros – a minha opinião sobre as suas obras abre um leque que vai do não ter gostado mesmo nada até à leitura repetida e apaixonada. Não gostei do seu «Caim», mas gostei muito do «Levantado do Chão», do «Memorial do Convento» (que considero estar entre o que de melhor se escreveu no século XX), de «O Ano da Morte de Ricardo Reis», do «Ensaio sobre a Cegueira»… E de outros de que gostei mais moderadamente, além de outros ainda dos quais gostei pouco ou não gostei nada. Aliás, os autores sabem que cada livro é sujeito a julgamento e cada leitor é um juiz. Ter escrito, como Saramago, tantos livros, entre os quais três ou quatro obras-primas, não é para todos. Saramago foi um grande escritor. Como juiz, este é o meu veredicto.
E já agora vou contar uma história, que já contei noutro lado.
Corria o ano de graça de 1966, mais precisamente o dia 24 de Novembro. Por esses anos, semanalmente, quando a censura não cortava tudo, publicava uma crítica de poesia no «Suplemento Literário» do Jornal de Notícias. José Saramago que, nessa altura era um nome apenas conhecido no meio editorial, publicara um livro na colecção Poetas de Hoje da Portugália Editora – “Os Poemas Possíveis” - e teve a amabilidade de me enviar um exemplar com uma dedicatória muito cordial.
Ao contrário do que na maior parte das vezes acontecia, gostei da colectânea e escrevi uma apreciação muito favorável. Como já tenho dito, por aqueles tempos discutia-se muito a prevalência, ou não, do conteúdo sobre a forma. Saramago ia ao encontro do que ali defendia semanalmente. O seu livro era um paradigma do tipo de uma poesia ligada aos problemas do quotidiano e às inquietações mais prementes dos seres humanos.
Até aqui, tudo estava a correr bem. Acontece que quem fazia a paginação do suplemento se enganou e no título, em grandes letras, a seguir ao nome da obra escreveu JOSÉ SERRANO. Guardei para sempre a cópia dactilografada para, em caso de dúvida, poder provar que a culpa não foi minha. Escrevi repetidamente ao director do suplemento (Nuno Teixeira Neves) pedindo-lhe que contactasse o autor, em nome do jornal, pedindo desculpa. O que, segundo me disseram, ele não fez.
Há quase vinte anos (dezassete, dezoito?), estava no Aeroporto da Portela com o editor Lyon de Castro. Íamos, salvo erro, para Francoforte, para a feira anual dos editores, e de repente quem pára junto a nós – o José Saramago que cumprimentou o Francisco Lyon de Castro. (Saramago, num dos seus Cadernos de Lanzarote faz-lhe uma curiosa alusão; num sonho, o editor vem abrir-lhe um portão).
Estávamos perto do free shop e logo me afastei a ver com atenção excessiva uma qualquer mercadoria que ali se vendia. O Lyon de Castro ainda olhou na minha direcção, com evidente vontade de mo apresentar. Adorava brilhar e tratar com familiaridade, à frente de testemunhas, pessoas famosas – fizera-me essa cena, entre outros. com o Jorge Amado e com a Beatriz Costa. O Saramago ainda não ganhara o Nobel, mas já era um escritor muito conhecido. Pelo canto do olho observei as movimentações, avancei mais para o interior da loja. e debrucei-me sobre qualquer artigo. Não fosse o Saramago lembrar-se do dia em que um obscuro escriba foi suspeito de lhe ter trocado o nome…Talvez tenha feito mal, pois era uma boa altura para lhe ter pedido desculpa por esse erro que não cometi.
A leitura de «Os Poemas Possíveis», em 1966, foi o meu primeiro contacto com a escrita de um maiores escritores de língua portuguesa. Deixo-vos com um poema dessa colectânea - «Declaração»:
Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Tem vida no contorno dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Assim um dia, quando esta mão secar,
Na lembrança doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O perfume da boca que a beijou.
terça-feira, 22 de junho de 2010
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Bela homenagem. Sou avessa às homenagens póstumas. Respeito-as e até procuro entender. Mas irritam-me mesmo aquelas onde o homenageado pouco foi reconhecido em vida.
ResponderEliminarIrritantes por transformarem o homenageado num ser que ele não foi.Mas é assim com todos.
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