quinta-feira, 17 de junho de 2010

«Little Galiza»

Carlos Loures



No século XIX e no princípio do XX nem todas as casas de Lisboa tinham água corrente. Trabalho penoso que os portugueses não o queriam fazer, o dos “aguadeiros”; os galegos aproveitaram para criar aquilo a que chamaríamos hoje um «nicho de mercado». Aquilino Ribeiro em Lápides Partidas (1945), refere um galego, do Porriño, que escreve à mulher: «A terra é boa, a xente é tola, a auga é deles e nòs vendemoslla». Aliás, na literatura portuguesa da primeira metade do século XX, os galegos eram parte integrante da paisagem humana, principalmente em Lisboa. Eduardo Noronha, em Memórias de um galego, tem uma personagem que diz «Os portugueses vão para o Brasil, nós vamos para Portugal, é mais perto, melhor caminho e ganha-se mais dinheiro». Entre muitos outros, Fernando Assis Pacheco pertencente a uma família oriunda da Galiza e José Saramago, escreveram sobre galegos. Uma lista de referências literárias a tão simpática gente, não cabe nas características deste texto por demasiado extensa e já existe um bom trabalho, o de Rodrigues Vaz, Os Galegos nas Letras Portuguesas, (Pangeia Editora, Lisboa, 2008)

Nasci em plena Baixa de Lisboa e, desde que me lembro, sempre encontrei galegos por perto. E as minhas primeiras recordações remontam a um tempo em que as feridas da Guerra Civil de Espanha ainda sangravam naqueles anos quarenta e, portanto, ainda havia imigração galega, pese embora a pobreza que grassava aqui por Portugal. A presença desses imigrantes era notória. Na minha rua, a dos Douradores, quase todos os restaurantes eram de galegos. Aniversário, dia festivo ou por qualquer extravagância naqueles tempos de economia apertada, lá íamos, eu e os meus pais, até à Antiga Casa Pessoa, ao Bessa, ao Guimarães. Por vezes saíamos da nossa rua e íamos até ao João do Grão. Éramos amavelmente atendidos por empregados com a característica pronúncia. Nunca considerámos os galegos como estrangeiros. Faziam parte da cidade, lisboetas como todos os outros. Mas ali, a Baixa, sobretudo as ruas mais modestas – Madalena, Fanqueiros, Douradores, Correeiros, Sapateiros… - concentravam comércios (tascos restaurantes – em casas de andares superiores, em quartos e partes de casa alugados viviam famílias galegas. Era uma pequena Galiza, a «little Galiza», como diriam os norte-americanos.

Na escola primária tive diversos colegas galegos ou galegos de segunda geração e no Ateneu, onde estudei, também os meus dois melhores amigos eram, em graus diferentes, descendentes de galegos. O José González, filho de galegos, ambos do Porriño e que terão vindo já adultos e casados. O José já aqui nasceu. Gente bem colocada, com uma excelente alfaiataria. O Jaime Camecelha, que, mais do que um amigo, foi para mim como um irmão, (faleceu em 2003) era descendente bastante mais remoto de uma família galega vinda, salvo erro, de Pontevedra para Portugal há muito tempo, talvez nos anos negros do século XIX. Era neto de Alfredo Camecelha, o primeiro atleta a ganhar uma prova para o Benfica (depois transferiu-se para o Sporting). Num torneio realizado em 1909, lançou o peso e fez também parte da equipa de luta de tracção nesse mesmo torneio. Ainda o conheci, na casa onde o Jaime vivia com os pais e irmãos, numa festa de aniversário por meados dos anos 50, tocando viola e cantando. Nascido em 1880, teria cerca de 75 anos, conservando uma grande jovialidade. Já nascera em Lisboa. Seu pai, sim, era um imigrante, nascido no Porriño. Penso escrever uma pequena biografia deste atleta. No grupo do café Gelo, havia um poeta galego de 2ª geração – o José Carlos González que colaborou no nº 2 da revista “Pirâmide”, de que já aqui falei. Era um bom poeta, com uma linguagem surrealista ou surrealizante.

Quando éramos ainda estudantes, fomos os três à Galiza, o José, o Jaime e eu. Foi uma bela viagem. Recordo-me de, com o Jaime, pois o González tinha ido ao Porriño, passear à noite pelas ruas de Vigo, surpreendidos com a alegria, com o bulício das ruas. Na “Calle Príncipe”, numerosas esplanadas com orquestras. Nada que pudesse ser comparado às bisonhas cidades portuguesas naquele final dos anos 50. Ao recolhermos à pensão, numa rua quase deserta cruzámo-nos com um padre de sotaina que ajudava um senhor de meia-idade, bem trajado, com uma grande bebedeira. Apesar dos esforços do padre para prosseguir, o senhor parou junto de nós e interpelou-nos em galego. Dissemos-lhe que éramos portugueses e logo ele desatou a insultar Salazar e Franco. Lembro-me que filhos de puta foi das expressões mais suaves que lhes dedicou. Nós rimo-nos e o padre, muito perturbado, conseguiu arrastar o amigo ou familiar ébrio, dizendo-nos – Vão em paz! Vão em paz!

Não quero idealizar ou mitificar a realidade (as coisas são como são). Não vou dizer que os galegos não eram descriminados. Claro que eram. Pelo menos, alguns deles eram. Os pobres, os moços de fretes, por exemplo, eram-no não por ser galegos, mas por ser muito pobres. Os ricos eram respeitados, não por ser galegos, mas pela sua riqueza. E alguns tornaram-se mesmo muito ricos, como Manuel Boullosa que, nos anos 60 chegou a ter a quinta maior fortuna do mundo. Os da classe média também. E nunca dizíamos que eram espanhóis, ao contrário de Eça que várias vezes se lhes refere assim. Às vezes misturávamos minhotos no lote. Lembro-me de um comerciante “galego” e que no dia em que amavelmente se despediu de nós, pois ia reformar-se e voltar à terra, nos disse ser de uma aldeia de Monção, que sabia que o julgávamos, mas galego e que isso nada o incomodava.

O adjectivo galego ganhou um sentido particular, pois significava trabalhador braçal «eu não sou nenhum galego» ou «hoje trabalhei como um galego». No Brasil, chamam galegos aos portugueses com sentido marcadamente pejorativo. E os dicionários testemunham esse sentido Depois da designação latina, gallaecu e da acepção mais imediata, antecedidos de fig. (figurado), lá vem: moço de fretes, indivíduo grosseiro, incivil… Galegada ou galeguice, grosseria. Note-se que estas entradas dos dicionários de há 60 ou 70 anos, persistem. No de José Pedro Machado, com edições sucessivas, as últimas das quais recentes e no de Houaiss (de 2003) que lhe acrescenta a qualidade de «amabilidade» dos brasileiros para com os portugueses – e com uma lista enorme de sinónimos – dezenas, onde figura portuga, sapatão, marreta…

Gente discreta, trabalhadora, espalhada por todo o leque social, os galegos, hoje indissoluvelmente misturados entre a população, formam uma comunidade honrada e prestigiada. Agora que já não há “aguadeiros” nem moços de fretes, os que ficaram são comerciantes, bem sucedidos na sua maioria. Só nos mais velhos, vindos durante a Guerra Civil ou antes, se nota ainda o acento típico. Os pobres regressaram à Galiza onde o nível de vida é superior ao de Portugal.

Os dicionários têm que compor novas entradas para galego, galegada, galeguice. E os brasileiros, se querem ofender os portugueses, têm de encontrar novo insulto – porque galego «virou» elogio.

3 comentários:

  1. E há um centro galego, com boa comida Galega, cantares e dançares galegos ali no jardim ao cimo do Elevador (o que vai da Rua S. José para a antiga faculdade de medicina)

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  2. É a Xuventude de Galicia, na Rua do Torel, salvo erro. Vou lá muito. O polvo à galega é uma maravilha, E tem uma excelente biblioteca. O palacete onde funciona um centro cultural galego, foi doado pelo Manuel Bullosa. Eu e o Rocha ainda chegámos a ser-lhe apresentados, pois o nosso Administrador-Delegado era um ilustre galego, Xoan Xosé Deiros e, nomeado pelo Bullosa, foi administrador da Livraria Bertrand. Eram muito amigos. Uma quinta-feira, podemos ir almoçar à Xuventude de Galícia.

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  3. Grande ideia! Foi mesmo o Rocha que me mostrou aquilo.

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