segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 9

24 de abril, de tarde.


À tarde

Tudo que contei dos fatos vividos pela manhã, minha querida filha, acabou-se quando o sol ja ia alto e debaixo de uma tamanha confusão e algazarra que em determinado momento ninguém mais podia entender ninguém. Então mandamos aquela gente entusiasmada - tudo isso por acenos e gestos variados - que se fossem. Assim eles fizeram. E depois retornamos às naus. Mas quando assim fazíamos, da terra nos faziam sinais de retornar. Retornamos e eles mandaram-nos o Afonso Ribeiro que não queriam que ficasse ali. Afonso Ribeiro foi mandado de volta com todas as coisas que levara, inclusive aquelas que deveriam ser dadas de prendas ao eventual chefe deles, se um tal chefe realmente existisse. Mas de nada disso quiseram ou tomaram. Bartolomeu Dias enfureceu-se com o degredado e mandou que ele retornasse à terra e desse todas aquelas coisas de regalo. Ele retornou à praia, o espantado Afonso Ribeiro, e deu todos os presentes, à nossa vista, àquele que o recolhera no primeiro encontro. Logo voltou e nós o trouxemos para bordo.

Ah! minha querida filha, que estranha gente é essa para a nossa compreensão! Estranha, mas plena de simpatias. O homem maduro que recolhera Afonso Ribeiro andava por galanteria cheio de penas pegadas pelo corpo, semelhante a um S. Sebastião crivado de setas. Alguns traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros ainda, de verdes. E uma daquelas moças estava toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura de que já te falei, querida filha. Esta moça era certamente tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha - coisa que ela não sentia! - tão graciosa que a muitas mulheres a¡ da nossa terra, vendo-lhe tais feições, provocaria vergonha por não terem as suas como ela. Desculpe-me, se assim brinco, minha boa Maria, mas não posso deixar de dizer-te como me sinto sem nenhum pecado por estimar a nudez de mulher assim publicamente exposta. Mais te digo, querida filha, diante dessa rapariga nua sinto menos pejo que diante de determinadas damas de nossa terra, suntuosamente vestidas de fora, mas despidas pelo espírito lascivo de seus modos e costumes. Deus, Nosso Senhor, ‚ testemunha da sinceridade de minhas palavras e de meus sentimentos. Nas suas nudezes os homens dessa terra deixam ver que nenhum deles é circunciso, o que, junto com tantas coisas que estou a descobrir deles, me leva a considerá-los como gente muito semelhante a nós.

Era já tardinha quando o Comandante saiu em seu batel com todos nós e todos os seus capitães em outros barcos. Fomos a folgar pela ba¡a, diante da praia, mas ninguém desceu à terra, por ordens de Pedro Álvares, ainda que a praia se apresentasse deserta. Descemos somente num ilhéu que se encontra na ba¡a e que sendo cercado de águas por todas as partes ninguém pode chegar até lá a não ser a nado ou por barcos. Ali o Comandante descansou sereno, e com ele todos nós, por hora e meia. Foi um repouso muito tranqüilo depois da manhã agitada. Alguns aproveitaram para pescar, outros para contemplar a natureza cheia de paz e beleza. Era já noite quando retornamos às naus.



26 de abril

Hoje, minha Maria, é domingo de Páscoa.

São tantos os episódios dessa jornada que eu não sei por onde começar. Certamente foi o dia mais bonito e emocionante de quantos já passamos nessa navegação. De tudo aconteceu hoje, felizmente e graças a Nosso Senhor, somente fatos de paz. Mais conheço esta gente daqui e mais meu coração se comove com eles, minha querida filha, com a doçura do caráter, com a gentileza dos gestos, com a sinceridade de cada ação. São ingênuos e bons. Parecem com os passarinhos ridentes destas terras e como eles são mansos e dóceis. Ainda que entre nós não possa existir compreensão de l¡ngua - e já agora lastimo de não conhecer a deles - eles demonstram grande boa vontade de nos compreender com o uso de uma grande gama de gestos. Tantos gestos, sorrisos e risos fazem de nossos encontros uma constante festa.

Mas é preciso que eu comece a contar-te, minha querida filha, o que aconteceu neste domingo de só alegrias.

Pela manhã determinou o nosso nobre Comandante Pedro Álvares Cabral de ir ouvir a pregação naquele ilhéu onde já estivéramos. Determinou que todos os capitães preparassem os batéis e organizassem um grande cortejo. Desta maneira foi feito. Mandou igualmente que fosse erguido um pavilhão no ilhéu e dentro levantado um altar de grande beleza. Ali diante de todos nós, o frei Henrique de Coimbra disse missa entoada, acompanhado por todos os padres e religiosos do séguito. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta, e todos nós estávamos espalhados pelo areal. Então frei Henrique fez uma comovente e piedosa pregação. Falou da parte do Evangelho referente a este dia e mais, com voz solene, tratou da nossa vinda nessa terra e do seu achamento, referindo-se à luz, sob cuja obediência viemos. Tudo isso nos comoveu até as lágrimas, minha adorada filha, e minha comoção foi tamanha, e minha alegria tão plena, que eu tenho a certeza que jamais nenhum homem se sentiu tão perto de Deus quanto eu diante daquela natureza e daquele espetáculo.

Nós estávamos assim embebidos na glorificação mais pura de nossa Santa Fé, mas pod¡amos ver que a gente da terra acompanhava a nossa unção. Enquanto assistíamos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente como ontem, com seus arcos e setas, e andavam folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E acabada a missa, quando sentados nós escutávamos a pregação, muitos deles se levantaram e começaram a tocar corno e buzina, saltando e dançando, com muita alegria, por longo tempo. E muitos deles se metiam n’água, numa jangada - diferente das que eu conheço: são somente três traves atadas entre si - mas não se afastavam muito da praia.

Acabada a pregação, o Comandante voltou aos batéis, acompanhado por todos nós, com a nossa bandeira da Ordem de Cristo que sempre estivera com o Comandante - alçada da parte do Evangelho.

Embarcamos e nos dirigimos todos em direção da terra para passar ao longo por onde elas estavam. Na dianteira do cortejo ia o impávido Bartolomeu Dias que recolhera um pau de uma jangada que o mar lhe levara, pronto a restituí-lo aos que estavam na praia. E todos nós íamos em fila a uma distância de mais ou menos vinte, trinta metros. Apenas viram o barco de Bartolomeu Dias, logo muitos deles entraram n’água. Ao sinal de baixarem as armas por terra, muitos assim o fizeram, outros não. Então eu vi entre eles um que convidava aos demais para dali se afastarem, mas, segundo me pareceu, não era muito escutado. Este que tanto se movimentava em tentativas de convencimentos estava mais adornado do que os outros. Não sei, minha querida filha, mas me lembrou a figura de um chefe. Empunhando sempre seu arco e setas, estava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas, até embaixo, mas os vazios na parte da barriga e do estômago eram de sua própria cor. A tintura era tão vermelha que a água não conseguia desfazer, antes pelo contrário, quando saía da água parecia ainda mais vermelha. Logo este chefe foi esquecido e começou-se uma grande confraternização entre nós e eles, naturalmente sempre com mais alegria e entusiasmo da parte deles. Porém muitos dos nossos logo se contagiaram com tamanha e clara hospitalidade. E naqueles ares ecoaram sons de gaitas e trombetas e formaram-se muitos bailes, sem nenhum constrangimento da parte deles.

Com isto, retornou Bartolomeu Dias até o Comandante e volvemos às naus para comer. E eles voltaram a sentar-se na praia e assim ficaram por muito tempo.

Então, depois de acabado o almoço, vieram os capitães até a capitânea. Como fazia sempre, o nobre Pedro Álvares Cabral indagou as nossas opiniões sobre várias questões, a todos os capit„es e a mim, que tambm eu fora convidado pelo meu Comandante a me apartar. E perguntou ele a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a D. Manuel, nosso Rei e Senhor pelo navio dos mantimentos, com conselhos para melhor a descobrir explorar, já que disso não nos poderíamos ocupar pela nossa obrigação de continuar a viagem na direção das Índias. Esta proposta foi aceita por todos nós como coisa boa e de se fazer. E logo que a decisão foi tomada, perguntou se nos parecia bem tomar por força dois ou três destes homens para remetê-los até a vista de El-Rei, nosso Senhor, deixando aqui por eles dois dos degredados presentes na armada. Sobre esta questão a maioria concordou que não valia a pena fazer tal coisa, pois em geral todos os homens tomados a força e levados para Portugal jamais davam informações correspondentes à realidade, mas tinham a tendência de responder sempre positivamente sobre as coisas que lhes eram indagadas. Assim se comportavam em geral esses homens pensando de fazer coisa agradável àqueles que os questionavam. Foi concorde a opinião que melhor seria deixar ali os degredados, pois estes sim, depois de algum tempo, tendo aprendido a língua, certamente se fariam preciosos informantes para os desejos do nosso Soberano. E desta maneira ficou determinado, por assim parecer melhor a todos.

Decididas estas questões, o Comandante nos disse de irmos nos batéis à terra para uma definitiva verificação do rio e também para folgarmos. Disso muito nos alegramos, tanto que, apenas retornados à praia, reencontramos muitos deles e logo se criou uma grande confraternização entre nós. Muitos dos nossos logo se apartaram com alguns deles para além do rio, festosamente. Este encontro foi muito belo, minha querida Maria. Diversos e variados grupos se formavam, em todas as partes. Eles ofereciam arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes fosse dada.

Passaram além tantos dos nossos e de tal forma andavam misturados com eles que muitos deles se esquivavam e se afastavam. Alguns iam para cima de um monte onde outros já se encontravam. Então o Comandante mandou que dois homens o carregassem em forma de cadeirinha, passou o rio e fez retornar a todos. Nesse momento aconteceram coisas amenas, minha querida filha. Então, eu dizia, tornou-se o Comandante aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira. Não teria sido porque reconheciam em Pedro Álvares o nosso chefe - pois me parece que eles não dão muito valor a essas coisas - mas certamente atraídos pela figura nobre e altaneira do nosso Capitão-mor. Ali estavam e veríeis galantes pintados de preto, vermelho, e quartejados tanto nos corpos quanto nas pernas, com isso apresentando-se muito bem às nossas vistas. Também estavam quatro ou cinco mulheres, como já descrevi, belas e gentis. Também andava por lá uma mulher, ainda jovem, com um menino ou menina - eu não conseguia distinguir - atada com um pano, da natureza do qual não sei dizer, aos peitos, de modo que lhe apareciam somente as perninhas. Devo dizer porém que nas pernas da mãe, assim como no resto do seu corpo ainda jovem, não havia pano algum.

Em seguida o Comandante foi subindo ao longo do rio, que corre sempre próximo da praia. Ali esperou por um velho que trazia na mão um tronco de jangada. O velho falou enquanto Pedro Álvares estava com ele, diante de todos nós; mas ninguém o entendia e nem ele a nós, por mais perguntas que lhe fizéssemos com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra. Trazia este velho o lábio inferior tão furado que lhe cabia pelo buraco um grande dedo polegar e no buraco trazia uma pedra verde - claramente de pouco valor - que fechava por fora aquele buraco. O Comandante lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca de Pedro Álvares, para ali metê-la. Rimos todos, por um pouco, com a cena, e então enfadou-se o nosso Comandante e deixou-o. Continuamos então com o nosso cortejo ao longo do rio onde há muitas palmeiras, não muito altas, que porém dão um gostosíssimo palmito. Dele colhemos e nos fartamos. Depois retornou o Comandante para baixo, para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado. E do outro lado do rio andavam muitos deles, dançando e folgando, um diante do outro, sem se tomarem pelas mãos. Dançavam muito bem. Passou-se então além do rio o nosso Diogo Dias, que já foi tesoureiro da Casa Real em Sacavém e que é homem muito gracioso e folgazão. Ele levou consigo um gaiteiro dos nossos e sua gaita. Logo meteu-se com eles nas danças, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e acompanhavam muito bem ao ritmo da gaita. Depois que muito dançara, Diogo Dias encheu-lhes de admiração com a execução de perfeitos saltos-mortais, exibição que os fazia muito rir e folgar. Como Diogo Dias, com os seus bailes, muito os segurasse e os afagasse, logo se retraíram, esquivos como os animais monteses, e se retiraram para cima do monte.

Já nos afastávamos com nosso Comandante para os batéis que iam sempre muito rentes à terra e nos dirigíamos para uma lagoa de água doce, muito ampla, que se encontra perto da praia, quando, já passado o rio, sete ou oito deles chegaram até nós. Vinham de novo confraternizar com os marinheiros e levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matara nas suas pescas. Levaram-no e o lançaram na areia. Com isso, minha querida Maria, já podes bem compreender como eles são de caráter. Passam de uma confraternização a um retraimento, como pardais com medo do cevadoiro. Ninguém não lhes deve falar de rijo, porque então logo se esquivam. Creio que para bem os conquistar é preciso deixar que as coisas se passem como eles desejam.

Minha adorada filha, não quero parecer injusto ou demasiadamente duro com essa gente, que na verdade já começa a encantar-me. Mas muitas vezes não a compreendo e certas reações e comportamentos deles me parecem bestiais, porém, logo que me passam esses particulares momentos de difícil compreensão, os vejo ali, belos, gentis, bem curados, muito limpos, gordos, tão gordos e tão formosos a não mais poder. Então eles me parecem como os passarinhos, mansos e gentis, e não encontro mais defeitos neles.

Que dia longo e pleno! A noite já caía e nós nos encaminhávamos definitivamente para as nossas naus quando nos apareceu aquele atônito degredado, Afonso Ribeiro, que o Comandante mandara para que estivesse com eles. Ele assim o fez e ficou por lá um largo tempo, mas caída a tarde teve de retornar mandado por eles, que não o queriam por lá . E deram-lhe arcos e setas e de seu não lhe tomaram coisa alguma. Contou Afonso Ribeiro que não viu lá entre eles mais que umas choupaninhas de ramas verdes e de palhas, muito grandes, como as de Entre-Douro e Minho.

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