terça-feira, 10 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 10

27 de abril

Espero de não estar te aborrecendo, minha querida filha, com tantas notícias e novidades. Mas são tantas as descobertas que faço nesses dias de maravilhas que não sei como me limitar. Gostaria porém de poder transmitir à minha querida Maria, que tanto me falta nesta longa viagem, a felicidade que agora sinto nesta terra nova, depois de tantos dias difíceis passados por mim desde que deixei a nossa casa. Sei, Maria, que a tua bondade compreenderá os meus arroubos e a tua doçura mitigará os meus excessos. Por isso te conto tudo. Como se contasse a mim mesmo para assim viver duas vezes os mesmos sucessos dessa experiência que arrebata o meu coração.
Nesta segunda-feira, logo depois de comer, saímos todos para o abastecimento de água. É um belo espetáculo, minha querida Maria, ver tantos batéis que se destacam das naus e partem para a praia. Ali vieram ao nosso encontro muitos dos naturais da terra, mas não tantos como das outras vezes. Uma coisa que logo me chamou a atenção é que dentre eles poucos traziam arcos e setas. Inicialmente mantiveram-se um pouco afastados, para depois, pouco a pouco, misturarem-se conosco. Tudo isso com grandes demonstrações de simpatia. Abraçavam-nos e folgavam. Mas alguns logo depois se esquivavam. E logo retornavam ao maior prazer deles, as trocas. Davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer outra coisa. Era tanta a simpatia recíproca nesses encontros que bem vinte ou trinta dos nossos se foram com eles em direção de um lugar onde muitos outros deles estavam em companhia de moças e mulheres. Tudo isso acontecia, minha Maria, com muita tranqüilidade e simplicidade. Quando de lá voltaram esses nossos trouxeram muitos arcos e barretes de penas de aves, de tantas cores, verde, amarelo, vermelho. Via-se nos olhos deles e de seus contos quanto estavam contentes de lá terem ido.
Já agora, minha adorada filha, estando mais perto deles e com mais continuidade, podia observar melhor muitos de seus usos. Naturalmente o que logo chamava a atenção era a maneira como se pintavam por todo o corpo. Esses enfeites tinham sempre um sentido e eram sempre feitos com grande perfeição, seja nos homens como nas mulheres. Dentre as cores que usam para a ornamentação do corpo a mais habitual é o vermelho. Eles trazem sempre à mão pequenos grãos que quando esmagados entre os dedos fazem um rutilante vermelho. Com ele, quanto mais se molham mais este vermelho se aviva. São tantas e brilhantes as cores dessas decorações que chegam a recordar-me a riqueza dos panos de Arras.
Todos trazem os lábios furados, sendo que muitos traziam ossos neles e outros sem ossos. Todos andavam com os cabelos raspados até por cima das orelhas. Na testa, de lado a lado, estavam sempre pintados de uma tintura preta, conseguindo com isso dar a impressão de um fita preta da largura de dois dedos. Além dos cabelos da cabeça raspavam, mas então completamente, as sombracelhas e as pestanas.
Então, o Comandante mandou Afonso Ribeiro e outros dois degredados que se fossem misturar com eles. E o mesmo disse a Diogo Dias que depois da festa de ontem tornara-se íntimo de muitos deles. Aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite. Assim eles fizeram e, como depois contaram, caminharam por mais de uma légua e meia até uma povoação formada de nove ou dez casas, as quais eram tão compridas como a nossa nau-capitânea. Eram de boa altura, boas madeiras formavam as suas ilhargas e cobertas de palhas. Todas elas se compunham de um só espaço, sem qualquer repartição de cômodos, com muitos esteios internos. De esteio a esteio ficava colocada uma rede, atada com cabos aos esteios. Eram altas e nelas eles dormiam e praticamente viviam os diversos momentos de lazer. Debaixo da rede faziam seus fogos para se aquentarem. Cada casa tinha duas portas pequenas, uma em cada extremidade. E diziam que em casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, numa grande família. Assim eles os viram. E que lhes deram de comer os alimentos que tinham no momento, muito inhame e outros tipos de raízes encontráveis na terra e que eles comem com grande satisfação. Como já anoitecia fizeram com que eles voltassem, demonstrando depois de tanta hospitalidade que não queriam que eles lá passassem a noite. Não permitiram que ninguém ali pernoitasse, mas alguns quiseram acompanhá-los no retorno. Lá trocaram por quinquilharias que tinham levado papagaios vermelhos, grandes e formosos, e ainda mais dois de outro tipo, verdes e pequeninos. Igualmente obtiveram carapuças de penas verdes e mais uma espécie de pano de penas de muitas cores, um tecido tão belo que o Comandante o recolheu para presentear a D. Manuel, nosso Senhor.

FESTA PARA O PR¡NCIPE VENTUROSO.
ATO 7º



(A cena se passa numa praia iluminada pelo sol da primeira manhã. A luz filtra por entre palmas e árvores ricas de frutas, fazendo mais branca a areia fina e azul a água do mar que a banha. Nas ondas próximas da praia flutuam batéis. Aqui e ali, nas areias muito brancas, debaixo das arvores e próximos de um rio que deságua no mar, está muita gente, em grupos. São portugueses em trajes variados - marinheiros, soldados, gente comum - e índios e índias, esses nus. A gente fala, gesticula, encontra-se, canta e dança.
O grupo dos capitães, com Pedro Álvares Cabral vestido ricamente, está à parte, num ângulo da cena.
Por detrás deste grupo aparece o Mensageiro.)



Príncipe,
poderá existir glória maior para um Soberano que saber o seu Império alargado por encontros de paz e amor, ao invés de fruto da violência e do ódio?
É isto que eu quero representar agora, numa magnífica festa dígna do Príncipe, diante de Vossos augustos olhos. Para isso precisamos de muita música e bailes. Porque essa será a representação do Paraíso recuperado, a visão de encantamento de um encontro paradisíaco entre homens, seres e coisas.
É a Vossa festa, Príncipe.
Eu serei como uma sombra que caminha por aqui e ali recolhendo vozes, gestos e movimentos, para que os Vossos olhos e ouvidos tudo saibam e gozem.
Comecemos porque a manhã deste dia maravilhoso já procede acelerada nas horas e, ai de mim, até mesmo a noite chegará para encobrir tanta glória que eu estou por revelar.


(A cena se aclara definitivamente, mostrando homens, seres e coisas em todos os seus contornos. Sons de cantos ecoam por toda parte e movimentos de bailes e danças agitam a cena. Retorna o Mensageiro.)
Príncipe,

ali estão os Vossos novos súditos. Vêde como são belos e gentis! Muitos estão perto dos batéis que recolhem água, a muito boa água desta terra, e lenho brasil, este pau rutilante como fogo. O bravo Bartolomeu Dias comanda a faina nos batéis. Eles correm e ajudam os nossos na faina alegre. Vêm do rio, entram no mar e lançam a carga aos nossos, em pé nos batéis. E assim vão e vêm, num jogo de alegrias. Logo muitos outros se acrescentam ao grupo de carregadores, e vão e vêm com as cargas preciosas.
Então começa o grande prazer das trocas e dos regalos. Das nossas mãos partem tantas quinquilharias - que eles comem com os olhos! - e deles, em troca, tantos objetos de penas de variadas cores, muitas cores, tantas como a gama infinita desta paisagem de maravilhas. São penas desses mesmos pássaros que cantam indormidos nas árvores e passam sem cansaços por esses ares finos e de pura luz.

Príncipe,
os nossos confraternizam com eles sem nenhum temor, mas é deles que vêm as efusões maiores.
Vêde, ali estão eles, todos nus, de belos corpos altos, fortes, rijos; de gestos e movimentos amáveis. São bons e dóceis como os pássaros da terra. Belos como eles. A nudez do corpo não lhes cria problemas. Vejo que não são circuncisos e que também nisso se parecem conosco. Sim, são pardos, de um vermelho vivo, vibrante. Como o sol daqui. Olhai, Príncipe, para esses jovens. Vê-se que sempre desejam mostrar-se belos, porque são limpos, frescos, gordos, formosos a não mais poder. Corpo musculoso está sempre coberto de tinturas versicolores. O vermelho ‚ a predileta, mas também o preto, o amarelo. Alguns se tingem em forma de xadrez, deixando porém o ventre e a barriga descobertos, coloridos com cor natural da pele. Os cabelos são lisos e grossos. Em geral eles os besuntam e os trazem tosqueados até por detrás das orelhas. Muitos deles enfeitam as cabeleiras com uma espécie de chapéu de penas de variegados matizes. Outros recobrem as fontes até a nuca com uma quase fita preta, só que desenhada com uma tinta muito viva. Trazem os beiços furados, onde muitos colocam adornos, quem de pedra, quem de pau, para maior realce.

Príncipe,
aos Vossos augustos olhos trago as belezas de algumas moças que caminham em meio a todos com uma extrema naturalidade, nuas também elas, como os homens. São belas e gentis nos passos lentos e dosados que aderem à terra. Redondas, belamente redondas, são as suas formas nuas. Olhai. É uma nudez de mulher que não leva ao pecado, tanta é a ingenuidade e simplicidade dos gestos. Eu as olho nuas e mais que vergonha sinto uma comoção benéfica. Eu as olho mais e as vejo inteiras na nudez que nelas é sempre beleza pura. Até mesmo as suas vergonhas - altas, limpas, fechadinhas - não as envergonham e nem a mim. Por isso, meu Senhor, fixo esta cena.
Lá vão os grupos, homens e mulheres, eles e muitos dos nossos, para aquele monte mais distante ou para o rio. Diogo Dias, junto a muitos outros, sempre alegre e festoso, se aparta com seus amigos novos.
Ali está também o degredado, Afonso Ribeiro, que o Capitão-mor mandou ficar entre eles, para com eles aprender tantas coisas. Afonso Ribeiro desceu a medo entre eles. Num primeiro momento, sozinho, titubeou, não sabendo como e o que fazer. Estava sozinho diante de alguma coisa nova para ele. E atônito. Então um homem de idade madura se destacou do grupo, caminhou até onde estava Afonso Ribeiro, abraçou-o e o conduziu amoravelmente de encontro aos seus.
A festa de trocas continua. E as danças, músicas e bailes.
Do outro lado do rio, ali estão dançando muitos deles, um diante do outro, sem se tomarem pelas mãos. E o fazem muito bem.
Agora para lá passou-se Diogo Dias, com um gaiteiro e sua gaita. Logo mete-se como eles nas danças, tomando-os pelas mãos. Eles folgam e muito riem com isso, acompanhando muito bem ao tom da gaita. Agora Diogo Dias começa a fazer volteios muito velozes que os enchem de admiração. Um grito de surpresa maior corre os ares iluminados de pura luz quando Diogo Dias volteia velozmente e se exibe num insuspeitado salto-mortal. Logo depois, pelos muitos afagos e abraços de Diogo Dias em seus bailes, muitos deles se retiram para o monte isolado.
Príncipe,
a mim parece que assim o são: muito gentis e conviviais, mas logo e por um nonada eles se retiram. São como pássaros assustados. Mais vale, me parece, deixar-lhes as decisões, para assim conquistar-lhes maiormente as simpatias.
Agora retornam. Bartolomeu Dias mandara o degredado de novo entre eles e que lhes desse todos os presentes que trazia consigo. Assim fez Afonso Ribeiro, entregando todos os regalos àquele homem maduro que antes o agasalhara, quando o sol era mais quente e seu coração pulsava atônito.
Os pássaros assustados voltaram. Agora recolhem um tubarão que Bartolomeu Dias matara, e logo levam a fera até a praia.

Príncipe,


grande tem sido a festa neste dia e grande a alegria nos corações de todos nós. A luz já vai escoando e uma tênue penumbra começa a cobrir tantas maravilhas. Ali está o nosso Capitão-mor. Um homem velho se aproxima de Pedro Álvares Cabral. Tem os beiços furados, como todos em geral, e no buraco traz uma mísera pedra verde. Ele fala desconexamente com o Capitão-mor. Muitos dos nossos indagam daquela pedra verde e tentam tocá-la. O velho tira-a do buraco e a aproxima à boca de Pedro Álvares Cabral, tentando metê-la boca adentro. Todos riem, e o Capitão-mor se amofina. Então, por ordem sua, acompanhando-o, todos começam a deixar a praia.

Príncipe,
que dia longo e glorioso!

Ao longe caminha a sombra de Afonso Ribeiro, sozinho na praia.

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