sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 13 e último

Príncipe,

olhai! A festa recomeça.

(A cena se aclara um pouco mais. Do lado direito entram dois homens de passos indecisos e expressões atônitas: Afonso Ribeiro e o segundo degredado.

Do lado esquerdo aparecem dois jovens grumetes, arrebatados e efusivos nos gestos.

Os quatro homens caminham em meio às sombras. De repente, se encontram.

A cena se abre mais claramente.)

Afonso Ribeiro: "Quem vem lá, quem vem lá?"

1º grumete: "Calma, calma, Afonso Ribeiro, somos amigos".

2º degredado: "São dois dos nossos marinheiros".

Afonso Ribeiro: "Que fazeis aqui? a armada está partindo".

2º grumete: "Disso nós sabemos".

Afonso Ribeiro: "Mas, então, por que não estais lá? Por acaso alguma loucura vos impeliu a assumir o nosso desespero e aqui estais? ou vos fez perder o lume da razão ao ponto de abandonar o posto para onde nos levam os nossos sonhos? Que loucura é esta que conduz outras presenças cristães aonde pensávamos que doravante iria morar somente a nossa desesperação?"


1º grumete: "Sim, é uma loucura o que nos impeliu até aqui, Afonso Ribeiro, mas não aquela que dizes tu. A nossa é loucura da escolha livre."

2º degredado: "Ensandeceste, jovem idiota".

2º grumete: "Pobre homem! me pareces duas vezes degregado. A primeira pela vontade soberana d'El-Rei, nosso Senhor; a segunda, pela cegueira que te impede de ver a liberdade que conquistas agora porque és degredado".

Afonso Ribeiro: "Mas dizes pau por pedras?"

1º grumete: "Não, sabemos o que dizemos. Até causa maravilha saber que o teu degredo aqui é a tua liberdade. Nós sabemos que as braçadas que demos das naus até a praia foram o nosso percurso para a vida que queremos".

Afonso Ribeiro: "Além de louco, zombas da nossa desgraça".

2º grumete: "Não, amigo, não queremos zombar nem de ti e nem de ninguém. Queremos exaltar a vida que conquistamos".

2º degredado: "Arre! dessa vida não quero saber".

1º grumete: "Amigo, começo a crer que mais que degredado és um parvo. Olhai para nós. Saímos livremente de nossos navios. Assim o fizemos não por covardia ou temor da dura vida de navegações, pois a nossa juventude não conhece covardia ou temor; e muito menos o fizemos por desamor ao nosso Soberano. Nadamos e lutamos contra as ondas para aqui chegar encondidos na noite porque sabemos que este é o nosso paraíso".

2º grumete: "É, assim é. Este é o nosso paraíso. Aqui seremos felizes e iremos viver até a mais longa velhice. Estaremos sempre com todas estas belezas; amaremos as lindas mulheres daqui que nos levam a gozar os maiores prazeres da existência; comeremos dos melhores frutos e das melhores carnes; respiraremos este doce ar e tocaremos sempre esta terra quente e fértil".

1º grumete: "Loucos sim, loucos de liberdade e senhores de maravilhas!"

Afonso Ribeiro: "Mas não vêdes que as nossas naves já se afastam da costa, já se apartam de nossos olhos? Não vêdes que daqui a pouco o horizonte cobrirá todas as nossas velas e ficaremos para sempre sós?"

1º grumete: "Não importa, não importa que as velas já lá vão. Aqui estamos e aqui ficaremos para sempre, pois aqui sabemos de ser felizes".

(Os dois jovens grumetes se afastam festosamente para dentro dos bosques e gritam na direção dos dois degredados)

"Amigos, amigos, nada de medo. Correi, correi conosco,

sem medo. É aqui o para¡so!"

2 de maio

Minha querida filha, aqui estamos no ponto final desta caminhada. Tantas coisas aconteceram; tantas coisas eu senti e vivi. Será que as contei todas? Não importa. Ainda mesmo se alguma coisa ficou perdida em meio a tantas maravilhas que eu te quis comunicar, ainda assim valeu a pena percorrer tantas lembranças.

Sinto que tudo está para acabar. Dentro de pouco tempo a nave de Gaspar de Lemos se apartará da armada, levando também este memorial para ti, minha doce filha, enquanto nós iremos para outra direção, para o sul, para as Índias. Para onde irei? Já agora, improvisamente, sinto como que ignorasse a minha futura destinação.

Ah! Maria querida, retomar a navegação depois de haver tocado este porto é como perder-me dentro de mim mesmo. Não quero pensar, mas tudo está chegando ao fim. Consola-me a certeza que El-Rei, nosso Senhor, depois das revelações desta viagem de descobertas, acolherá o meu pedido de graça para Jorge Osório, teu marido. Assim poderás retornar à alegria.

Eu, no entanto, não sei se poderei reviver um dia tanta felicidade como as vividas nesses dias. Da amurada da nau-capitânea fixo atentamente esta terra que meus olhos não desejam esquecer. O mar me divide dela, me aparta e dela me distancia. Este verde, este azul, esta luz, tudo se fixa na minha retina e eu não quero esquecer jamais.

O que estará sentindo Afonso Ribeiro e o outro degredado que ficaram lá na praia? Creio que seus corações inexperientes baterão de ansiedade, e eu penso e imagino o que sentiria se ali estivesse com eles, solitário, vendo perder-se no horizonte do sul as últimas velas da nossa armada.

Não sei, Maria, o que então poderia sentir. Porém, te posso dizer que compreendo os dois jovens grumetes que desapareceram na noite e ficaram na terra. O que estarão sentindo aqueles quatro homens? Eu os penso e me parece que meu ser se divide em quatro partes, todas pulsando com eles.

Sabes, minha querida filha, sei que a minha navegação terminou. Mas qual é o meu porto verdadeiro? Ainda estou aqui ou já parti?

Muitas vezes, minha querida Maria, não sei distinguir todas essas maravilhas de um grande sonho que não me deixa.

Navegar é este sonhar sem fim.

1 comentário:

  1. Chegou ao fim este belo romance do "nosso" Sílvio Castro. Uma obra de uma grande beleza e versando um tema que nos é tão caro - o descobrimento do Brasil. Habituámo-nos a ter esta companhia à meia-noite, a serena e elaborada prosa de Sílvio, e foi com pesar que vimos o retábulo ficar completo.

    ResponderEliminar