sábado, 7 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 7


FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.


ATO 6º

(A cena é a mesma do ato anterior, apenas diferente na luz do dia claro que cobre as naves portuguesas ancoradas definitivamente no porto seguro.

Grande é o movimento a bordo da nau-capitânea: marinheiros, soldados, homens de várias atividades, religiosos, correm e passam e tornam e giram numa azáfama sem fim. Pero Escolar, o grão-piloto dirige a vida de bordo. Num ângulo mais tranqüilo, Pedro Álvares Cabral conversa com os seus capitães. O Mensageiro passeia em meio a tanto movimento e lentamente se dirige para a parte aberta de cena.)

Escutai, Príncipe, escutai.

Muitas já são as novidades desses primeiros dias vividos no Vosso Paraíso. Esta é a voz do impávido Nicolau Coelho. O Comandante o mandara com um batel para fazer o primeiro reconhecimento da terra e ele desceu à praia com os seus homens enfrentando um mar que sempre, mais e mais, se encrespava, preanunciando a terrível noite de tempestade que ontem passamos. É a voz de Nicolau Coelho: "Então baixei, como me mandastes, Comandante, ao batel e corremos em direção da praia. De repente as ondas começaram a encrespar-se como se o mar quisesse nos colocar à prova, para ver da nossa coragem e sabedoria diante das dificuldades, depois de tanta bonança que sempre nos acompanhou nessa navegação. O batel saltava nos costados das ondas e eu gritava aos meus marinheiros para que não cedessem. Mais lutávamos e mais as ondas se alargavam e se faziam violentas. Não tantos eram aqueles metros que nos separavam da praia, mas muitas eram as insídias das águas. Porém, lutávamos sem tréguas ou temores. Eu gritava sempre as minhas ordens e as ondas nos cobriam, passavam, retornavam, recobriam e nós sempre avante, remos tesos, na direção da praia. Depois de muito lutar, já agora a praia se avizinhava. Quando a avistamos acerca de nós, próximos da foz do pequeno rio para o qual nos dirigíamos, vimos sete, oito homens. Eram certamente vinte. Caminhavam pela praia, e mais nos aproximávamos, mais eles entravam pelo mar ao nosso encontro. Eram vinte jovens mancebos, fortes, altos, de bela presença, pardos de pele, todos nus. Às m„os traziam arcos e flechas. Em meio ao estrepitar das ondas eu lhes gritei, fazendo sinal que pousassem os arcos. E assim eles fizeram".


Escutai, Pr¡ncipe,

em todas as partes se contam as histórias desses primeiros dias de maravilhas. "Então nos encontramos com aqueles mancebos nus, na praia, debaixo da infernal agitação das ondas que cobriam as nossas vozes. Mas falávamos melhor com os gestos. Eu pouca coisa tinha comigo. Eles, nus como estavam, menos ainda. Mesmo assim, gesticulando, dei-lhes de regalo uma carapuça de linho que tinha à cabeça e um barrete vermelho, e mais, recordando-me, um sombreiro preto que trazia comigo. Eles gesticulavam de muito gosto e agrado, e me deram um sombreiro de penas compridas, de aves, com uma copazinha de penas variadas em vermelho e cinzento escuro, como certas penas de papagaios. E ainda um colar de continhas brancas, muito miúdas, muito parecidas com as continhas de aljofas. Ei-las, todas cá. Depois queríamos falar mais entre nós, mas tudo isso era impossível com o estrondar incessante das ondas".

Nicolau Coelho continua a contar as primeiras experiências com a gente nova. Seu entusiasmo descobridor se irradia nas caras de seus companheiros.

Muitas são as falas. Escutemo-las, Príncipe.

"Então, Pero Escolar, como fizeste para evitar males maiores para a capitãnea no temporal de ontem de noite?"

"Bem sabes, Afonso Lopes, mestre como és da arte de pilotar uma nave como era terr¡vel a situação em que todos nós nos encontramos. Mais ainda porque era muito tempo que não tínhamos ventos tão terríveis. Era tanto o vento que a âncora da capitânea quase não resistia. Parecia que o tempo nos queria carregar para o fundo. Para equilibrá-la, porque caceava, descaía sempre mais e mais, tivemos de empregar todas as nossas forças".

"É verdade, parecia que nos encontrávamos de novo diante do cabo tormentoso! E dizer que essas águas pareciam sempre planas..."

"Eu nunca dancei tanto como ontem de noite", é a voz buliçosa do sempre alegre Diogo Dias.

"Mais dançarias se a banda tocasse melhor!..."

Escutai, oh! grande Príncipe,

é o bom piloto Afonso Lopes que retorna da praia. Ali o mandara o Comandante em um esquife para que fosse sondar esta enseada que nos serve de porto. Pedro Álvares Cabral escolheu Afonso Lopes para a missão porque ele é um dos mais competentes entre os nossos mestres de pilotagem. Depois de muito sondar neste pouso de grande segurança, no qual já nos encontramos em grande calma depois da borrasca de ontem, agora ele sobe a bordo da capitânea.

"Comandante, o porto é seguro e por ele podemos transitar com tranqüilidade. Mesmo que retorne o mal-tempo, estaremos seguros nessas plagas. Trouxe-te comigo esses dois mancebos para que possas conhecê-los".

Vêde, meu Senhor,

aqueles são os dois jovens trazidos por Afonso Lopes. Vêde como são bem feitos de corpo, como são belos e limpos! E como são tranqüilos e ingênuos, como são puros na nudez de seus corpos jovens! Belas as cores de suas caras, avermelhadas, ainda que de um pardo-escuro. Os narizes são bem feitos e os cabelos negros e corredios. Vêde como são serenos e tranqüilos, vestidos na própria nudez.

Pedro Álvares Cabral está sentado na sua cadeira predileta, bem vestido, com o colar grande no pescoço. Ao lado da cadeira do Comandante estão todos, Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correa e todos os outros, sentados no chão coberto pelo tapete. Vêde, nobre Príncipe, agora os dois mancebos nus se apresentam diante do Comandante.

Parece que nada desta cena solene os impressiona. Seus olhos são sempre brilhantes de curiosidade, mas tranqüilos. Olhai, agora um deles fixa o colar do Comandante e acena para a terra e de novo para o colar. O que quererá dizer? Depois fixa um castiçal de prata e repete os mesmos gestos. Aproximam-se alguns marinheiros com um carneiro. Nada. Os dois jovens fitam indiferentes o animal. De repente um outro dos nossos chega com uma galinha. Diante dela os dois mancebos agora se agitam como delas tivessem medo. Recusam de tocá-la, de tomá-la às mãos. Viste esta tal maravilha, nobre Príncipe? Que espécie de gente será esta que se espanta com o bulício de uma galinha, mas que não teme um encontro com centenas de homens desconhecidos?

Depois a cena continua. Vejamos. Dão-lhes o de comer: pão, peixe cozido, confeitos, bolos, mel, figos passados. Vê-se que pouco dessas coisas os apetece. Diogo Dias lhes traz uma taça de vinho. Nem isso os agrada. A festa continua. Todos nós desejamos falar com eles, mas nos é impossível, porque deles não entendemos a língua, nem eles a nossa.

Vêde, bom Príncipe, como é importante saber as línguas. Me sinto impotente porque não consigo comunicar com esta boa gente a não ser com gestos. Muito gostaria de dizer-lhes e muito me agradaria escutar-lhes de seus contos. Me sinto impotente porque estou como um mudo diante de outro mudo. Para maior glória da Vossa vontade de propagação de nossas esperanças de um mundo novo para todos precisamos saber falar com as gentes. Precisamos fazer com que as gentes falem depois igualmente a nossa l¡ngua. Desta maneira, claro Príncipe, o Vosso poder não terá limites. Muitos, muitíssimos intérpretes devemos preparar, pois somente assim as glórias de Vossas descobertas poderão verdadeiramente preservar-se.

Príncipe,
de novo cai a noite e a cena está por descerrar-se. Nada terminou, tudo está por começar. Porque grande é o Vosso poder.
Vêde, as luzes se apagam. Depois de tanta festa, tranqüilamente, como a paz que começamos a viver neste paraíso, os dois mancebos deitaram-se na alcantifa e adormeceram. O Comandante faz um gesto a Diogo Dias para que ponha debaixo da cabeça de cada um deles uma almofada e os cubra com um manto.

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