Raúl Iturra
A história oral Picunche coloca a mulher em segundo lugar, definindo o seu rol social como de apenas, ter filhos para criar, lavar, alimentar, tratar dos pais deles. Victoria foi capaz de guardar apenas para si, a afectividade que sentia por todos, um segredo apenas confiado a sua prima Alejandra Cárcamo e assim ninguém soubesse. Victoria é e resultado do seu tempo. Um tempo conturbado no nível global, calmo no nível local, definido no nível íntimo. Solitário, no emocional. No emocional pessoal. Porque há o costume de namorar, pololear como aí é dito en língua Picunche.
Victoria estudava. O estudo a retirava do conjunto de assuntos de que não queria ouvir falar. A rapariga que eu conheci, era amável, é amável; era atenciosa, é atenciosa; era boa para comer, é boa para comer. Era divertida, e é. A rir, a festejar, a gostar de ir aos rodeos ou festas onde os homens correm a cavalo, para empurrar os animais novos, faze-los suar, deitar fora o pelo da pele nova, ficarem mais mansos, mais domesticados pela subjugação aos homens. Assunto já não tão divertido e, no entanto, parte da festa do rodeo. Via, ouvia e calava, esse sofrer do animal: era veterinária, amava aos seus bichinhos, grandes ou pequenos. Para os conformar, festejava aos que corriam. Uma corrida masculina, que achou sempre injusta. Porquê o masculino e o feminino não eram iguáis? Porquê as mulheres tinham que se subordinar aos homens? Sempre? E teorizava como José e Jesus eram subordinados á Nossa Senhora. O mito hispânico estava aí a funcionar. O mito Picunche só coloca a mulher shamã, essa que sabe mais porque cura, porque opera, porque trata de ossos partidos, porque em o poder matrimonial de organizar casais, por cima das outras pessoas. O resto do mulherio, era sempre inferior. O tempo de Victoria, é esse dos anos setenta, oitenta, noventa, anos que masculino e feminino trabalhavam igualmente, com ordenados que permitiam a independência deles todos… se for pago de forma justa e conveniente. Anos que acrescentavam mais trabalho na mulher. Público e doméstico Em consequência, a possibilidade de uma proximidade emotiva simples, de transferência amorosa, fraterna, leal não estava facilitada. Aos vinte e cinco anos, já a mulher era casada ou com filhos. Ou tinha uma profissão. Nos seus vinte e cincos, ela guarda o tempo para a sua profissão e trabalho. Da pequena reguila a correr pelas ruas, passa a ser a mulher noiva que todos consultam e respeitam, confiam os seus pequenos caso for preciso, e comentam os seus assuntos que ela ouve com a sabedoria que o quotidiano lhe dá. Quinhentos anos antes, teria sido já uma mulher mãe, ao pé das outras mulheres mães do mesmo cacique o chefe de família. Quinhentos anos depois, é a católica consultada e conhecedora das casas, das pessoas e das coisas. Com os costumes Picunche perto de ela, que aceita sem perguntar e trata sem hierarquizar. No restaurante que Alexandra, ela e eu comíamos, era ela quem ia dentro da cozinha a tratar de que a minha comida fosse feita da melhor maneira possível. Na pesquisa do arquivo, em silêncio e com tempo, construiu matematicamente a genealogia que orienta a minha escrita. São assim todas as mulheres Picunche, inquilinas hoje, ou proprietárias ou tecedeiras? Diria que nem por isso. A sua geração vestia-se como via na televisão, penteava-se como artista, seduziam aos rapazes que gostavam nas suas brincadeiras. É notável ver como no sítio de três mil habitantes dispersos pelas terras de Pencahue, o passeio é ir ao largo municipal e namorar aos abraços, em público. A descendência nova, esfregasse, beija-se, fuma e namora ao mesmo tempo, sentasse nos bancos do largo, elas no colo de eles, as conversas são sobre as outras pessoas, a chegada a casa é tarde e em silêncio, ouvidos surdos ao que os pais possam dizer. É um esplendor na relva universal e público, com intimidades e abortos não permitidos pela lei, como com bebés não permitidos, embora criados pelos pais. Uma alta percentagem de raparigas, acabam como empregadas domésticas na cidade de Talca, ou vão encher a fila de habitantes da Capital da República, Santiago. Enquanto eles, servem de motoristas, mecânicos, empregados de supermercados. E eles e elas, de prostitutos nocturnos na vizinha cidade, nos sítios privados que pagam os ricos para se divertirem com jovens do seu mesmo sexo, pagos ao proprietário do local em importâncias que até para viver vários meses uma família pobre, dava. A população urbana do sítio de Pencahue, é consumidora de drogas, de álcool, de divertimentos que não permitem ao eu falar com o doutro. Depois de falar com vários, apercebo-me que o que se procura é dinheiro, mas pelo meio mais curto possível. Em um País que ficou sem trabalho para uma alta percentagem da população de fora dos centros urbanos interessantes para os investidores. Pencahue, essa terra Picunche, com os traços Picunche feitos europeus nos hábitos e sem meios para os materializar, oferece uma indústria de tratar madeiras, e duas em Talca: para manufacturar porcinos, e uma fundição, a da família Cruz; trabalho de jornaleiro no campo, necessidade de sair a emigrações nacionais, cuidados paternos e domésticos até tarde na vida. A maior parte da população que não vive do campo, recebe salários de empregos estatais. Pencahue é o sitio que incrementa o internacionalmente Produto Geográfico Bruto anual de incremento, de 3% sustido, porque não há força de trabalho ocupada e autónoma. Contrario a doutrina espalhada nos últimos 24 anos, a plena ocupação ou o pleno emprego é baixo, os postos de trabalho escassos e os sítios para trabalhar, longínquos. Como as indústrias de processamento da madeira de Constituição, o porto marítimo do mesmo sítio, e a transferência para os sítios de trabalho, em carros ou carrinhas partilhadas. É desta forma que o País tem incrementado as riquezas dos centros urbanos centrais, é dizer, de Santiago e de cidades de lazer, como Viña del Mar. Pencahue é pobre, porque o país é pobre. Um ordenado de jornaleiro acaba por ser de mil pesos (moeda nacional) por dia, o equivalente a novecentos escudos por dia. O salário mínimo mensal é de 40000 pesos (15€, ou 3.000$ Esc. em moeda antiga), sem imposições. As famílias precisam habitar sob o mesmo teto para compartir o que se ganha, porque a política de preços é cara. Um quilo de pão, três ou quatro unidades, é de quase 500 pesos. Eis que a população vive de chá e pão, ou sopa de abóbora, a penca que da o nome a Pencahue. Um lugar de trabalhadores manuais, obrigatoriamente formados na escola e no secundário até a idade de 15 anos. Escolas dependentes das municipalidades, que podem conceder bolsas, se o Ministério da Educação assim o estimasse conveniente. O alegar de que nos é que amamos, é uma ironia minha, retirada da realidade de um País que dava emprego no exército a maior parte da população, e aos que não dava, expulsava, obrigava a sair do país, fazia desaparecer, matava em crimes aparentes a serem culpados vizinhos inocentes. O que antigamente foi a saída para muitos homens, o exército, é hoje obrigatório para homens e mulheres. Muitos dos quais têm sido a guarda pessoal de famílias determinadas, como essa que se apropriara do vale de Pencahue, da antiga Hacienda Quepo e Los Almendros e Lo Figueroa. Terras todas entregadas a familiares do proprietário do Chile por 24 anos já. O exército conta com 300.000 mil efectivos, dentro de uma população de 12 milhões de habitantes no País, com 60% de menores de 18 anos. Uma população nova, sem futuro. Muitos dos quais efectivos, habitam na área de Talca, Regimento de triste memória por ter servido de prisão a um alto número de pessoas. Regimento que bem conheço por dentro, na altura que fui de visita ao Chile nos anos setenta e que reparei de que o dito Regimento não tinha espaço suficiente para tanto recruta, hoje em dia profissionais das forças armadas. Antigo caminho da saída da família, é hoje outra vez o trabalho melhor remunerado nas redondezas. Por haver campanha de guerra permanente contra todo inimigo, é dizer, todo o que pense diferente ao sistema central político. E nunca se sabe quem pensa de uma maneira e quem de outra: o ordenado é quem manda. Ainda, hoje, enquanto escrevo estas linhas. O amor é resultado da política económica. Ainda que em Antropologia exista um debate sobre o assunto e se pense que não há relação entre economia e afectividade. Como o debate Dalton (1971), Polanyi (1957), e, recentemente, Humphrey e Hugh-Jones (1992), ao analisar sítios nativos, como se em esses sítios nativos não houver também um capital que manda. Como é demonstrado pelas guerras africanas de hoje - a Guinea-Bissau, por exemplo, o Zaire, por exemplo, o Peru, por exemplo, a Indonésia, por exemplo, a Ruanda, por exemplo; o Iraque, a Macedónia, o Kosovo, outros. Ainda que quem é hoje, guarda os valores da memória social dos ancestrais, como já tenho debatido, mais têm elementos novos que vêm a transformar essas memórias que, embora guardadas, ficam para um momento de melhor estabilidade. Não vi em Pencahue lar nenhum que fosse calmo no seu interior. Menos as pessoas do campo. Porque a concorrência é grande, é ilegítima, é á Henry de Montchrestien (1616), que no século XVII, já advertia no seu Traicté de l’OEconomie Politique, de que o capital era para lutarem as pessoas umas contra as outras, os irmãos matarem os irmãos, os amigos, aos amigos. É verdade que tenho escolhido Victoria como elo, porque na sua família há zangas e magoas que não são provenientes só dos problemas emotivos. Disse já no ensaio prévio, de que Clodomiro o pai, chegava a casa só com bebedeira e sem dinheiro. Que foi o que finalmente levou a mãe a deita-lo fora de casa. A economia acabava por descansar em ela e em Rebeca a irmã mais velha. Que também expulsa ao homem a causa do dinheiro compartido Dom outra E o seu primo Cárcamo, o Presidente do Concelho ou Alcalde, dá-lhe trabalho como secretaria. E é entre mulheres que a casa anda. É entre mulheres que os afectos andam. Para um país em transição violenta, que nunca se sabe se haverá mais uma vez perturbações, ou si a aparente calma vai continuar. Calma aparente, porque tenho visto todo lar a trabalhar em quanto emprego possível aparece. Sim, nós é que amamos, mas assim. Sim, é o que sou, mas assim. Eis que Victoria escolhe o seu caminho, deixa o lar, estuda, trabalha, mora fora da casa doméstica. Como a maior parte do povo faz. Como tinha visto antes em sítios de bairros de lata, trinta e três anos antes. Como não me deixaram ver no dia que fui oficialmente convidado de volta ao Chile e queriam-me levar pela estrada de circunvalação da capital para eu não ver a pobreza da cidade. E tive sempre alguém que tomara conta das minhas conferências, para não falar do que puder ser pouco conveniente ao sistema. O que não quis ouvir. Como não oiço agora que escrevo o que sou, e persisto em escrever o que sou. A risco de campo de concentração outra vez. Esse que Victoria nunca viu e do qual eu nunca falei. Como foi na Galiza antiga e que deixou marcas que sararam. Como as do Chile,que um dia talvez, venham melhorar. Como aos poucos, melhoram. Com as Victorias que sabem comportar-se, porque viveram um sistema durante estes vinte e cinco anos. Uma Victoria que, como tantos outros, prefere ignorar para viver em paz. Porque o que eles são, são dignos de saber ignorar, de não ouvir, de não ver, de calar. De ver, ouvir e calar. Como na Galiza necessariamente já não é. Foi. Mas foi esquecido. No Chile, é ignorado. Entre os Picunche, é outro tipo de assuntos mais pessoais o que os envolve, e nos quais se deixam envolver localmente para se afastar da sociedade global, que ainda não mudou como se quer e se luta para mudar como mudara, tão rapidamente, a Galiza que é. Orientada pela sociedade global. Ideias as quais passo a debater, com a minha metodologia comparativa.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
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