Manuela Degerine
Capítulo IX
Viagem retardada: Lisboa
Passou-se quase um mês. Percorri entretanto alguns quilómetros de bicicleta, muitos de carro e comboio, mais ainda de avião, por ter que voltar a Paris, onde também fiz uma grande caminhada pelo parque de Saint-Cloud, Marne-la-Coquette, Vaucresson, Bougival, ilha de Chatou e margens do Sena até Colombes, um percurso que cita Guy de Maupassant como Sintra traz sempre Eça de Queirós à memória. A beira e as ilhas do Sena onde escritores, artistas, cocottes, funcionários, comerciantes e burgueses passavam os domingos e o Verão, a Grenouillère onde tomavam banho, o restaurante Fournaise onde se reuniam, que Renoir pintou em O Almoço dos Remadores, que Maupassant evoca, entre outros contos, em La femme de Paul (A mulher de Paul) – e que ainda existe com um aspecto semelhante ao que então tinha. Mudaram os clientes, evidentemente, agora há sobretudo turistas, no entanto atravessar aquele espaço causa ainda a sensação insólita de circular dentro de um quadro de Renoir ou de um conto de Maupassant: uma experiência agradavelmente perturbadora.
Planeava continuar a viagem para Santiago de Compostela no dia 21. Ora na véspera, regressando de casa da minha mãe, subia a R. da Palma na direcção dos Anjos, quando senti um contacto no meu saco. Virei-me. Um homem negro ultrapassou-me, vi vários ciganos à minha volta. Também não me hão-de assaltar aqui no meio da rua, pensei eu. Esqueci-me do incidente até chegar a casa e descobrir, quando procurei a chave, que me faltava a bolsa na qual trazia, entre outras coisas, dinheiro e documentos. Voltei a descer à Mouraria, na esquadra encontravam-se em mudanças, não podiam registar a ocorrência, fosse ao Rossio onde, quando cheguei, encontrei uma fila para assinalar ocorrências do mesmo género. Enquanto esperava conversei com um polícia. A senhora é portuguesa? Não está a viver em Portugal... E explicou que aqueles roubos costumam ser cometidos por romenos que agem em grupo e atacam toda a gente mas muito em particular turistas: os turistas são malucos. Eu quis saber porquê. Andam com o dinheiro e os documentos quase à mostra nas mochilas, só falta convidarem os romenos abrirem e servirem-se. São malucos. Expliquei que os turistas vivem em sociedades nas quais este tipo de violência não existe, argumentando que, enquanto em Paris não conheço ninguém que fosse alguma vez roubado, em Lisboa sou a única que, até agora, havia conseguido escapar – sem valor estatístico, pois compara o incomparável, esta verificação não deixa contudo de ser significativa.
Conclusão: tornei-me uma lisboeta como as outras. Entretanto, quando contei o roubo aos meus amigos, alguns exclamaram: também andas sempre a pé! Ando e quero andar. Um espaço onde não podemos caminhar não é uma cidade: é uma concentração de medos. Conheci isto no Brasil e, embora lá deixasse amigos, não sinto vontade de voltar.
Consequência: no dia 21 às oito e meia da manhã, em vez de partir na direcção de Santarém, dirijo-me para o Areeiro. A polícia recomendou que esperasse quatro dias antes de requerer outro cartão, porém não me agrada a ideia de o meu bilhete de identidade circular por aí nas mãos de romenos; quanto mais entidades oficiais notificarem o roubo, mais descansada me hei-de sentir. No Areeiro dão-me a lista de locais onde posso fazer o cartão único, o mais próximo situa-se nas Olaias, basta virar na primeira rua à direita, contudo um senhor, a quem explicam o mesmo, recomenda-me que não vá. Não aceito a ideia de haver na cidade zonas interditas mas já tenho por ora a minha dose de complicações; dirijo-me à Fontes Pereira de Melo. (Sinto-me de maneira exagerada uma lisboeta como as outras.) A mesma funcionária adverte que, se não me resta qualquer cartão de identidade, devo apresentar um familiar ou duas testemunhas que certifiquem as minhas declarações. Pois... Pai não tenho, filhos também não, o marido é francês – restam o meu irmão, que não está disponível, a minha mãe, que se encontra doente. E, durante o dia, os meus amigos trabalham. Então as impressões digitais? Não servem. Estão lá para quê? Isso não sei, replica a senhora, encolhendo os ombros. Estranho, parece-me. (E terá sem dúvida parecido aos leitores que alguma vez passaram pelos mesmos transes.) Por fim, vencida a dificuldade da identificação, fui atendida na Fontes Pereira de Melo com muita gentileza e eficiência.
Já havia chovido na véspera, choveu durante todo o dia 21, uma chuva por vezes muito forte. Consolei-me com esta evidência: se tivesse partido para Santarém caminharia à chuva – o que, mesmo com impermeável, não tem graça.
A meteorologia previa ainda chuva na quinta-feira dia 22 porém, se eu adiasse, não estaria depois disponível, esperaria durante mais três semanas; e, mesmo então, como estamos no Outono, também talvez chovesse.
Optei por arriscar.
sexta-feira, 4 de junho de 2010
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Infelizmente na Baixa de Lisboa há grupos organizados que a polícia conhece muito bem. Até eu os conheço por andar por lá frequentemente. mas há uma espécie de acordo. desde que não sejam violentos( não bater)a coisa tolera-se. É que não se pode ter um polícia trás de cada um dos passantes, dizem sem se rir.
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