Manuela Degerine
Capítulo XIII
Etapa 4: De Azóia de Baixo a Arneiro das Milhariças
Avanço agora por uma estrada bonita e sossegada, com grandes sobreiros e carvalhos, chego a uma zona cultivada, o ar perfuma-se com essências vegetais, aqui um eucalipto, além um pinheiro, depois hortelã brava, florida nesta época, vejo corvos, vejo uma salamandra... Alcancei o campo limpo. A chuva dos dois últimos dias criou grandes charcos à beira da estrada mas o sol continua a brilhar, um sol agora ameno, que uma brisa refresca.
Pela primeira vez desde o início desta viagem caminho com um prazer intenso. Trouxe de Paris as velhas botas das caminhadas – que já percorreram centenas de quilómetros e nunca, até hoje, me fizeram bolhas. Não me doem os pés, não tenho sede, a mochila não me incomoda, não me sinto aniquilada pelo calor, avanço na encosta, faço neste momento parte dela, sou a natureza em movimento, como a doninha ou a formiga. Aprecio este alargamento de identidade.
Passo pelas ruínas do que me parece um antigo lagar, vejo mais campos cultivados, a terra ganhou uma intensa cor de laranja, subo outra encosta, caminho entre vinhas e olivais, chego ao cimo de um planalto.
Começo a ver lixo, começam cães a ladrar. Atravesso a aldeia de Vale Flores, cujos habitantes me olham com hostilidade, terá havido algum assalto na região (ou na televisão), avisto num quintal uma porca com leitões, tento fotografar esta família porcina porém, apenas me aproximo, os bichos fogem grunhindo – aqui até os animais desconfiam dos forasteiros. Consigo sair da aldeia antes de levar um tiro.
Vou entre um campo de couves e outro de pimentos, chego a um trilho pedregoso que atravessa terrenos com sobreiros, carvalhos, tojo, torga, urze e cisto – um campo outra vez limpo. Encontro onde me sentar sem repugnância, onde poisar a mochila para beber água, comer uma maçã ou três bolachas, verificar o trajecto ou descalçar as botas: pedras minúsculas mas perigosas passam incessantemente entre a bota e a perna. Atravesso Advagar, sigo na direcção de Santos onde, por curiosidade, pergunto a uma mulher onde estou, ela responde com modos amáveis, numa atitude distinta de Vale Flores; conversamos um pouco.
Ao longo de todo o dia vi, uma vez mais, fruta a apodrecer à beira do caminho. Figos. Romãs. Laranjas. Marmelos (toneladas, parece-me). Então os gloriosos inventores da marmelada, exportadores da palavra para o inglês (marmalade) e para o francês (marmelade) – já não utilizam os perfumados frutos?
À saída de Santos, por falta de indicações, volto a perder o caminho. Encontro-o, mais ou menos, graças a quatro pessoas que apanham azeitona à beira da estrada. Dissuadem-me de procurar um atalho, deixe-se de atalhos, inquirem se vou para Fátima; de novo, para simplificar, confirmo, com o meu silêncio, esta dedução. Assim sozinha? Uma das mulheres conta-me que já lá foi cinco vezes mas sempre pela beira da estrada, em grupo e de noite. Porquê de noite? Por causa do calor e do trânsito. Mas de noite não vêem a paisagem, protesto eu. Um homem remata o debate:
- Não vai a Fátima para passear, pois não?
Eu... vou. Em Casais da Milhariça, quando me vê passar, um homem cumprimenta: Ui, Musiô! Suspeito que ali passam sobretudo franceses; os quais, indo a Fátima, fazem pelo campo um percurso pedonal. Os portugueses cumprem uma promessa e vão decerto, como diziam os apanhadores de azeitona, de noite, em grupo e pela beira da estrada – por isso me olham sempre com tamanha estranheza. Sou na verdade, no sentido literal, uma extraterrestre.
terça-feira, 8 de junho de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Os marmelos às toneladas resultaram de uma daquelas operações "saca subsídios".Agora secam nas árvores. Segue em frente Manuela.
ResponderEliminar