quinta-feira, 17 de junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine


Capítulo XXII

Etapa 9: De Ansião a Alvorge

Parece que caminho dentro de um aquário. O ar é líquido. As árvores e arbustos pingam, o meu cabelo está molhado, o roteiro tem as páginas moles e enrugadas. A visibilidade é ínfima. Atravesso um pinhal, passo pela aldeia de Netos, volto ao pinhal. Devia chegar a um olival, que não encontro, virar à esquerda, viro de facto à esquerda, descer bruscamente, desço bruscamente, por um caminho escorregadio, a dor no joelho torna-se aguda, porém em vez de encontrar outro olival e seguir um muro de pedras até Freixo, encontro uma estrada de terra. Convém virar à esquerda ou à direita? Viro à esquerda. O joelho dói-me cada vez mais. Vejo cogumelos extraordinários mas estou inquieta demais para os pormenorizar – ou mesmo fotografar. Caminho um mau quilómetro, entretanto acabo por reflectir, tendo em conta a direcção de onde eu vinha e aquela para onde vou, devera antes ter virado à direita. Volto para trás. Mais um quilómetro. O mesmo. Em sentido inverso. Como se não chegassem os trinta, acrescento mais dois ou três... Passo pelo lugar onde virei à esquerda, sigo em frente, começo a ouvir um ruído de estrada, paralela àquela por onde ando, encontro um cruzamento, chego ao alcatrão. Avisto ao longe, no cimo de uma pequena encosta, uma placa com o nome do lugar, tento ler, o nevoeiro persiste, eu fixo a tabuleta, não é Freixo, é Venda do.... Não, não é Freixo, dou mais uns passos, consigo por fim ler: Brasil.

Venda do Brasil?!

Pagaria para ver a minha cara no instante em que li o nome daquela terra. Paro para folhear o roteiro, viro o mapa em todas as direcções: não encontro a Venda do Brasil.



Onde ficou o meu caminho? Mais assustador: quantos quilómetros terei de andar para além dos trinta? Não convém perder tempo à toa, senão chego a Condeixa de noite. (Regra básica de segurança: não caminhar nunca de noite à beira de nenhuma estrada.)

Mas anda gente a apanhar azeitona naquela zona do aquário. Corro. Pergunto a uma rapariga como se vai para o Freixo. Ela quer logo saber a quem eu pertenço. Explico que não tenho família no Freixo. Ela fita-me com um espanto crescente. Vejo-me no olhar dela: saída do nevoeiro com o cabelo a pingar e as botas cheias de lama. A perguntar sem razão por uma terreola com vinte casas.

- Mas vai para onde?...

- Para já: vou para o Rabaçal. E depois para Condeixa. E a seguir para Coimbra.

- A pé?...

- Sim: a pé.

Ela respira, mais aliviada.

- Ah! Vem de Fátima! Se for para o Freixo, volta para trás. Para o Rabaçal é por essa estrada. Sempre em frente. Vá com Deus!

Caminho alguns metros, cinquenta, se tanto, chego a um cruzamento. Surpresa. Prodígio dos prodígios: encontro-me onde devia ter chegado depois de atravessar o Freixo. Tudo bem, portanto. Viro para a aldeia da Granja e, a partir dali, atravesso uma das mais belas paisagens que até agora percorri. Pena é que me doa, da coxa ao calcanhar, toda a perna esquerda. Amparo-me no bordão. Distraio-me olhando para a paisagem. Primeiro um caminho entre muros cobertos de musgo e fetos, grandes cavalhos com troncos e ramos sinuosos, também cobertos de musgo e fetos, aqui e além cogumelos de todas as cores e tamanhos. Depois vinhas com tons prodigiosos, muito vivos, amarelo canário, vermelho intenso, cor-de-rosa, cor-de-laranja, violeta...

Chego a uma encosta muito inclinada, onde encontro um camponês de antigamente, seco (os de agora são gordos disformes), com mais de oitenta anos. Sai de uma courela com um toco de sobreiro e um braçado de folhas de couve: prepara-se para fazer o almoço. Na fogueira.

- Então a menina vai para onde?

- Para o Rabaçal.

- Também lá fui muitas vezes. Por aí... Passa em Vale Florido. O caminho é mau...

- Basta não haver carros para eu o achar bom. À beira da estrada somos atropelados, não é?

Ele concorda comigo.

Para além dos não-camponeses nos arredores de Santarém, pai e filho, citadinos de outra condição, este homem é o único que não pergunta se tenho medo.

Entro em Alvorge por um caminho que passa ao lado do cemitério, de onde vem uma multidão a sair. Inquiro quem morreu, responde um homem.

- O meu tio. Tinha oitenta e seis anos.

Vou replicar uma banalidade porém, antes de eu falar, ele explica-me:

- Não estava doente. Foi atropelado à porta de casa.

E acrescenta que o condutor não parou para socorrer a vítima. (Nem a propósito: a minha conversa com o Camponês de Antigamente. O qual sem dúvida já conheceria o sucedido àquele vizinho da mesma idade.) A insegurança rodoviária: em Alvorge como em qualquer outra terra.

1 comentário:

  1. Há poucas coisas que me dêm tanto prazer como caminhar.Falta-me a determinação, o resto tenho tudo.Caminhar e sonhar, envolver-me em pensamentos,ser atraído por horizontes...caminhar à noite na cidade deserta, à chuva, cruzar-me com quem anda a fazer o mesmo, não é preciso dizer nada, topamo-nos à légua, como a compreendo...

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