segunda-feira, 28 de junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo XXXII

Passeio pelos museus

Fundação Calouste Gulbenkian

A partir do mês de Fevereiro começo a dispor da manhã de domingo para ver museus. Visito as exposições temporárias e, nas colecções permanentes, que já conheço, sem um cuidado de descoberta exaustiva, deixo-me levar pela apetência que, neste dia, me faz privilegiar esta ou aquela obra: são as visitas mais marcantes, aquelas em que, de maneira inesperada, me confronto com uma obra, quando – de súbito – um pormenor se esclarece e aquela peça salta para o meu puzzle imaginário. Trago um bloco onde vou apontando o que chama a atenção: datas, títulos, objectos, inscrições, palavras... (Os passeios nos museus são excursões pela língua portuguesa: volto sempre para casa mais rica em palavras.) Vou, em sucessivas semanas, à fundação Calouste Gulbenkian e, na primeira, revejo a colecção permanente.

Demoro-me diante do auto-retrato do pintor francês do século XVIII Nicolas-Bernard Lépicié, um auto-retrato ficcional, pois pinta a óleo representando-se a desenhar com pastel. Interessa-me esta vontade de sublinhar que a verdade de um auto-retrato pode passar pela invenção, encanta-me este encontro entre atitude reflexiva, força no corpo e minúcia no gesto.


Concentro-me em seguida nos quadros de Hubert Robert, Le Tapis Vert (O Tapete Verde) e Le Bosquet des Bains d’Apollon (A Mata do Banho de Apolo), pintados pouco antes da Revolução, por volta de 1777. Em ambos os quadros vemos um jardim – árvores, terra, estátuas – onde, no primeiro plano, aparece um grupo de trabalhadores e um grupo de aristocratas; estas figuras humanas ocupam menos de um quarto da superfície da tela. Luís XVI encarregara Hubert Robert – entre outras missões – de renovar aquela parte dos jardins de Versailles: a mata do Banho de Apolo. Nestes quadros o pintor, que alguns especialistas consideram pouco sensível à moda pré-romântica, não só representa as ruínas associadas a uma Natureza indomável, mesmo naquele espaço supracivilizado, não só privilegia a representação de uma grande desordem num universo de regra, etiqueta e geometria, mas também pinta personagens minúsculas num todo muito mais vasto: as árvores, o céu, a paisagem... a Natureza. Este sentimento de pequenez perante o Universo será um dos clichés do imaginário romântico. (Vem daqui também o desconsolo no nosso A. quando busca florestas em Portugal – e não as encontra. Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?... (Viagens na Minha Terra, capítulo V). Nestes quadros de Hubert Robert compreendemos que houve um temporal: caíram estátuas, partiram-se árvores. Com efeito os danos sofridos durante o Inverno de 1774-1775 servem de pretexto para a adaptação daquele recanto à nova moda dos jardins.

Em O Tapete Verde há um céu branco com buracos de azul. Vemos muitos troncos e ramos de árvores no chão de um terraço com vista para o Canal – e este Canal prolonga-se até aos fulgores do sol poente. Os trabalhadores fazem, apesar da hora, uma pausa no trabalho. Vieram mulheres, crianças e cães, uma mulher dá de beber a um homem, um par isolou-se, outros operários descansam, sentados ou de pé, mais à direita um grupo brinca, transformando em baloiço um tronco de árvore, com uma tábua por cima, nas pontas da qual se balançavam dois grupos de dois – e um rapaz caiu. Perdeu um tamanco, perdeu o chapéu, que um cão apanha, entrando na brincadeira. Vemos os risos, imaginamos os gritos, talvez até os latidos. Um miúdo observa o acidente.

O grupo popular representa três quartos da superfície ocupada pelas figuras humanas, porém no canto inferior direito há outro grupo que mais chama a atenção pelo tamanho (estão juntos e de pé), pelas cores (vestidos azuis, cor-de-rosa, amarelo; um dos homens tem um fato encarnado), pelos penteados, cabeleiras e outros artifícios (que lhes aumentam a estatura): três jovens numa atitude ambígua, porventura entretidos em provável flirt, porém uma das senhoras, que vira costas aos operários, orienta o leque na direcção deles; os outros giram para ali o rosto, tanto podem trocar com ela um olhar cúmplice, como ver de soslaio o jovem caído. A fisionomia e postura dos aristocratas exprime todo o desdém que a vulgaridade da cena lhes inspira. Ao lado deles uma senhora e uma menina viram costas aos trabalhadores. A menina aponta na direcção do sol poente: um mais nobre panorama. No entanto, como o sol é, neste espaço, um símbolo do rei, o gesto ganha ali – em simultâneo – outros sentidos. E o pormenor de ser uma criança a mostrar o progressivo desaparecimento do astro é menos indiferente do que pode parecer: a criança tem, diante de si, um tempo mais vasto e, por isso, de certa maneira, vê mais longe; por outro lado, o mito da pureza dos inocentes – Rousseau e o bom selvagem estão na moda – também lhe confere um poder de compreensão que os adultos perderam. Por conseguinte, neste quadro: há o povo cansado de trabalhar mas ainda activo e turbulento, há uma aristocracia desdenhosa e há uma monarquia em fase decadente. Mais atrás, outra senhora conversa com um clérigo e vira igualmente costas ao grupo ruidoso – reparamos que a Igreja se encontra no espaço da aristocracia. Para além destes aristocratas, andam por ali quatro homens isolados que, pelo código das cores, se podem situar numa condição social intermédia entre os trabalhadores e os aristocratas: vestem de castanho. Um, em cima de um tronco de árvore, aponta para os trabalhadores e parece dar ordens; outro vira costas a todos os outros; o terceiro e o quarto podem estar a olhar, de longe, para a peripécia do baloiço.

Em A Mata do Banho de Apolo, numa espécie de meia cratera com estátuas à volta e, por detrás, o Palácio de Versailles, surgem também, no primeiro plano, estátuas caídas, árvores partidas, meia árvore encontra-se mesmo dentro do lago, troncos a serem serrados por trabalhadores – enquanto, quase no centro do quadro, acompanhado por dois guardas suíços, pára um grupo de aristocratas. Estes suíços garantiam a protecção e aparato do rei e da rainha; portanto alguns interpretam a imagem como uma visita das obras por Marie-Antoinette.

Está patente que os operários, o maior grupo humano da tela, caracterizado pelo movimento (e, é claro, pelo ruído), não atraem a atenção das aristocratas; não existem para elas. As senhoras – e, também aqui, uma menina – parecem olhar para as esculturas, tritões e cavalos, de um lago do qual, no extremo direito do quadro, podemos apenas ver parte: preferindo privilegiar a actividade transformadora dos operários, o pintor não achou interessante concentrar-se no que ali as interessa.

Uma vez mais, há um contraste: o grupo menos numeroso é o que mais chama a atenção pela posição que ocupa na tela, pelas cores, azul, vermelho, amarelo, pela elegância das formas (e até pelo alheamento em relação ao que ocupa todos os outros). As restantes figuras uniformizam-se em tons neutros, castanho, cinzento, preto, confundindo-se com as cores da terra e da madeira.

Tudo parece entrar na ordem. As árvores partidas ou arrancadas fornecem madeira para as obras incessantes do palácio, Hubert Robert propôs – e há-de realizar – outro projecto para aquela parte do jardim. Por cima disto vê-se contudo um céu coberto com, do lado direito, um negrume ameaçador... Está ainda para vir a revolução anunciada na cratera de terra revolvida, nas árvores partidas e nas estátuas caídas. Hubert Robert anuncia de maneira refinada – típica da cultura francesa do século XVIII – o que, doze anos mais tarde, há-de de facto explodir como um vulcão, não só em Versailles, centro do Poder, não só por todo o reino de França, como por toda a Europa.

Atrai-me por fim o retrato de Thomas Germain e da mulher, pintado em 1736, por Nicolas de Largillière. Thomas Germain é o grande artista do ouro e da prata ao qual D. João V encomendou a famosa baixela que veio a perder-se no terramoto. Para a substituir, D. José I encomendará ao filho, François-Thomas Germain, outra baixela de 1200 peças de prata, algumas das quais fazem hoje parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga. Este François-Thomas, filho e neto pouco digno dos célebres Germain (Thomas e Pierre), há-de copiar as criações do pai, algumas já claramente fora de moda, há-de surpreender Paris pelo luxo da sua casa, há-se causar inveja pelos seus amores dispendiosos, virá por fim, no tempo de Luís XVI, após falência e afastamento, a ser definitivamente banido do Louvre. Sic glora transit mundi.

Este quadro situa-se nos tempos áureos do pai e todos os pormenores sublinham o génio do artista. Vemos Thomas Germain e a esposa, ele de pé, ela sentada, atrás dele há uma prateleira com objectos preciosos, entre os dois, em cima de uma mesa, um grande vaso de prata, livros, papéis, cartas e objectos. Madame Germain, Anne-Denise Gauchelet, é jovem, bela e delicada, dá claridade (cabelo branco, como era moda, pele muito branca, camisa e rendas brancas) e cor (roupão azul, laço vermelho, galão de ouro) ao quadro; completa o retrato do homem célebre. Thomas Germain embora tenha, na data do quadro, sessenta e três anos, é um homem moreno e ainda jovem, um criador vigoroso e enérgico, que traz a roupa desordenada de um homem de acção. Revela nos gestos a inspiração passada e presente, apoiando no vaso de prata a mão direita, a qual segura uma caneta com duas pontas de pastel, enquanto a mão esquerda mostra na prateleira um castiçal. Lê-se num sobrescrito poisado em cima da mesa: A Monsieur/ Monsieur Germain Orfevre du Roy aux gallerie[sic] du Louvre à Paris.

Nos dois sábados seguintes visitei na fundação Gulbenkian a exposição dedicada à natureza-morta: A perspectiva das coisas. (A mania de pintar as paredes de preto em museus e exposições, agora tão repetida e cansativa, vem de longe: da natureza-morta do século XVII.) Interessou-me a maneira como Rembrandt (Pavoas mortas, 1639) e Goya (Natureza-morta com lebres, 1808-1812), cada um à sua maneira, Rembrand através do sangue, Goya através da rigidez, sublinham que os animais representados estão mesmo mortos. A natureza-morta é uma pintura particularmente sensual quando pintada por artistas ibéricos (Josefa de Óbidos, por exemplo): as frutas, os doces, as flores... Estas e outras vanidades parecem-me de facto sempre vãs pois, embora mostrem frutos que hão-de apodrecer, flores que se hão-de desfolhar, prazeres que acabarão em pó e caveiras, a beleza do que vemos conduz-nos a apreciar o instante presente. Não é eterno?... Aproveitemos enquanto dura: cave diem.

A quarta visita permitiu-me, com a ajuda de Filipa Alvim, descobrir algumas das espécies vegetais do jardim. Fiquei, por exemplo, a saber que aquelas árvores sem folhas no início da Primavera mas com flores cor-de-rosa agarradas aos ramos são as olaias – conhecia a palavra e a árvore sem saber que uma designava a outra. E também, pelo que percebi, as árvores que nos Açores se chamam incenso, as quais, no início da Primavera, também perfumam as ruas de Lisboa e as estradas de Sintra, são o Pittosporum ondulatum: pitósporo ondulado. Pois!

Como sublinha uma amiga minha... Vale sempre a pena sair de casa. Ou... como escrevia Vergílio Ferreira, citado aqui de memória, isolados até perdemos vocabulário. Eu gosto de me isolar para ler e escrever mas também de sair para encontrar os outros e descobrir, lá fora, na realidade, o grande mundo. Opção que Vergílio Ferreira não chegou a conhecer: nos ecrãs é que vivo o mínimo – hoje em dia – possível.

1 comentário:

  1. passo uma tarde por semana na Gulbenkian, vejo as exposições, leio os folhetos, passeio no jardim e não consigo ver metade do que a vê a Manuela! Por acaso, mas só por acaso, já conheço bem as Olaias...

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