segunda-feira, 28 de junho de 2010

Caetano José da Silva Souto-Maior, um alentejano na corte de D.João V e uma figura popular de Lisboa - 3

Carlos Luna



D. João V mostrou ter grande predilecção pelo jocoso juiz académico, consentindo-lhe o que a outros não consentiria... como veremos. Caetano José, sentindo-se apoiado pelo Rei, aproveitava-se disso para fazer várias "travessuras" que, em última análise, divertiam a Corte. Algumas vezes acompanhou o Soberano, que apreciava a sua companhia, nomeadamente ao Convento de Odivelas, onde estava a amante do Rei (Madre Paula) e onde este, divertido, punha o seu matreiro versejador, com os seus poemas inigualáveis e a sua alegria irónica, em confronto com "a audácia travessa de algumas freirinhas também dadas à poesia"...

Enquanto magistrado, era conhecido como uma pessoa correcta e íntegra no cumprimento dos seus deveres, sendo muitas vezes encarregado de importantes e difíceis missões oficiais. O poeta sabia, com graça, fazer-se perdoar pelo Rei quando agia de forma menos convencional. Pelas histórias que dele se contavam, podemos considerá-lo como uma espécie de Bocage prematuro, no que deste se mitificou quase sempre sem fundamento. Contavam-se histórias divertidas sobre respostas prontas, cheias de inteligência ( e em verso ) dades por Caetano José em situações embaraçosas, ou perante gente com más intenções. Entre tudo isto, o povo de Lisboa considerava-o como um dos poucos magistrados honestos que nela tinham exercido cargos. Dois episódios, referidos por José Maria da Costa Silva ("Ensaio biographico-crítico sobre os Melhores Poetas Portugueses", 1855), destacam-se de muitos outros. O primeiro refere-se a uma ordem de prisão que Caetano José, enquanto Corregedor, teve de fazer cumprir, ainda que fosse amigo do perseguido.


Este, vendo a sua casa cercada, refugiou-se no telhado, donde não houve maneira de o fazer descer. Caetano José vislumbrou no facto uma esperança, e cooreu ao Paço, onde, com um ar inocente, e sem entrar em razões, perguntou a D. João V se considerava que governava só das telhas para baixo, ou se também das telhas para cima. O Rei, algo intrigado, respondeu que naturalmente das telhas para cima "só Deus tinha Domínio". O Corregedor e poeta agradeceu, e, correndo a juntar-se aos seus homens, mandou levantar o cerco "por sugestão d`el-Rei", salvando assim o amigo. O Rei acabou por achar graça à astúcia, e perdoou. Mas Caetano José tinha também espírito crítico, e talvez até alguma consciência social, como se verá no segundo episódio. Numa noite, o Corregedor procurava, com um marido desesperado, um confessor para a esposa deste, que estava a morrer. Na Casa Professa dos Jesuítas, em São Roque, foi-lhe dito que os Padres da Companhia não podiam sair, fosse para o que fosse, depois das Avé-Marias, ao entardecer. Foi preciso procurar um Padre de outra Ordem. Ferido com o que considerou uma indignidade, vingou-se Caetano José dias depois, ao encontrar dois jesuítas na rua por volta das duas da noite.

Deu-lhes ordem de prisão, apesar dos protestos e dos hábitos que vestiam e para os quais chamaram a atenção. Na manhã seguinte, foi chamado ao Paço, onde o Prelado dos Jesuítas, indignado, reclamava justiça junto de D. João V. Respondeu-lhes o Corregedor dizendo que se convencera estar diante de dois ladrões disfarçados de Jesuítas, por saber que os Padres dessa Ordem não saíam de noite, nem sequer para uma confissão de uma moribunda. O Rei, algo divertido, deu ordem de libertação. Caetano José procedeu à mesma de imediato, o que era também uma vingança, pois assim o povo da Capital viu sair da vergonhosa prisão, furiosos, os dois frades, o que era uma humilhação para uma Ordem que pretendia dar exemplos a toda a gente. As já referidas semelhanças com Bocage foram também a maior maldição do "Camões do Rossio". O nosso Caetano José resolveu "publicar"(se é que dele partiu a iniciativa...), anónima e clandestinamente, uma obra onde entravam prostitutas, pedintes, poetas de rua, vagabundos, e ladrões. Tratou-se de "A Martinhada", que era, nem mais nem menos, que um poema épico-cómico-erótico satirizando a sensualidade brutal de Frei Martinho de Barros, o confessor de D. João V durante algum tempo, tido como femeeiro insaciável... e de quem se dizia ser possuidor de um atributo viril de dimensões colossais.

Nunca se provou ser ele de facto o autor, mas a certeza foi quase absoluta. No seu tempo, tal não abonou em seu favor, e tal obra valeu-lhe o desprezo dos críticos do Século XIX ( e mesmo de parte do XX), "em cujos hábitos de leitura não entravam devassidões nem leviandades"... pelo menos publicamente. Curiosamente, quase todos tecem discretos elogios ao poema e às capacidades e génio do autor, todos surpreendidos por ser precisamente nele que se encontram algumas das melhores demonstrações do "estro" de Caetano José... pela simples razão, opina-se hoje, de, num texto de tal teor, semi-anónimo, o autor não ter sido obrigado a sujeitar-se à moda literária da época. Dir-se-ia que uma espécie de anátema ficou a rodear o "Camões do Rossio". Uma manifesta injustiça rodeia o quase esquecimento em que caiu.

Não tinha, decerto, o génio de um Bocage. Mas, numa última comparação com este, pergunta-se: o que seria de Bocage, um dos maiores poetas portugueses por todos reconhecido, se, em nome das suas obras eróticas, se silenciasse toda a sua obra ? Não se deveria esquecer também que quase todos os grandes poetas e escritores em geral, como se sabe hoje, em qualquer momento da sua vida, caíram na tentação de produzir textos eróticos...

A morte de Caetano José, com cerca de 45 anos, foi bastante sentida, nomeadamente pelo povo de Lisboa, que o sentia como um dos seus,e que, mais de cem anos depois, ainda o recordava. À data em que faleceu, não lhe faltaram louvores, nomeadamente de outros poetas. Recorde-se apenas um soneto do Padre Francisco Ribeiro de Miranda.

Em louvor do "Camões do Rossio"

(À sua morte...)

Não chores Portugal a sorte escura,
reprime a dor, suspende na saudade,
porque da bela Infanta a divindade
já triunfa imortal da Parca dura.


Dessa Silva a elegante arquitectura
lê, e verás como hoje te persuade,
que viva existe para a eternidade
contra estragos da morte, e sepultura.


Esta obra, ó Orfeu esclarecido,
de objecto singular, e fama altiva,
mais que todos te deixa enobrecido:

pois vencendo o poder da Parca esquiva,
faz que a cinza o cadáver reduzido
de espírito animado, eterno viva.

Pela sua genialidade, pela sua dedicação a Lisboa, pelos anátemas que o seu nome tem sofrido, pela simpatia de que gozava entre a população da Capital Portuguesa, pareceria bem justa, só pecando por tardia, a atribuição do seu nome a um qualquer topónimo da urbe onde viveu e morreu... mesmo por que na sua terra natal parece também estar cada vez mais esquecido.

BIBLIOGRAFIA:


- Ensaio biographico-crítico sobre os melhores Poetas Portugueses-
José Maria da Costa e Silva, 1855
- A Corte de D. João V- Pinheiro Chagas
- O Camões do Rossio- Inácio Maria Feijó/Almeida Garrett
- O Voador- Francisco Maria Bordalo
- A Martinhada (Camões do Rossio)- Colecção Contramargem, edições "&
etc", Janeiro 1982
- Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 1960
- Dicionário de História de Portugal - Vol. III, Alfa, 1986
- Dicionário da Literatura Portuguesa, Ed. Presença, org. Àlvaro
Manuel Machado, 1996
- Do Pícaro na Literatura Portuguesa João Palma Ferreira, 1981, Bibl.
Breve- Inst. Cult. e Língua Port.
- Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Publ. Europa-América,
Inst. Port. Livro, vol. 1, 1985
- Colecção Portugal Histórico, vol. 6 (D. João V, Rei Absoluto),
Fernando Mendes, Ed. Romano Torres, 1935 (?)

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