Carlos Loures
(Desenho de João Abel Manta)
- Bom dia. Diz-me um guarda.
Eu não ouço… apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.
Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?
Olhe, senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!
(Luís Veiga Leitão, In «Noite de Pedra», 1955).
O desenho de João Abel Manta e o poema «Manhã», de Luís Veiga Leitão, com que abro este texto, dizem muito sobre o que, no imaginário colectivo, perdura sobre a repressão policial que o Estado Novo exerceu. Para além das visões artísticas que essa repressão suscitou (e que, apesar de tudo, não são tão abundantes como seria de esperar), houve abordagens diversas, mais objectivas, mais isentas de emoção. Escassas também. Entre o que se tem escrito sobre a polícia política do regime ditatorial - que teve três siglas, PVDE, a PIDE e a DGS – destaca-se um trabalho de Irene Flunser Pimentel - A História da PIDE, publicado em 2007. É um trabalho metódico e consistente.
Porque em torno desta polícia se criaram lendas, se contam histórias rocambolescas. Irene Flunser Pimentel procurou (e conseguiu) fugir dos chavões, das ideias feitas. Baseia-se em documentos, em registos, em testemunhos Quando não dispõe de fontes primárias, não inventa. Não preenche os hiatos da história com suposições. Por exemplo, face aos números encontrados, confirma-se a ideia de que a PIDE não foi tão criminosa como o foram a Gestapo e a sua congénere italiana a OVRA, por exemplo. Nem sequer como a Brigada Político Social que, durante franquismo, estava encarregue de erradicar o comunismo. Conclusão que não serve de grande consolação aos que foram presos e torturados pela polícia política portuguesa.
Pese embora esta relativa brandura, só no campo de concentração do Tarrafal morreram, até 1945, 31 presos confirmados, embora outros cujos nomes não ficaram para a posteridade tenham morrido ou adoecido durante o cativeiro. Alguns eram libertados moribundos e morriam «em liberdade» em suas casas ou nos hospitais, não contando em termos estatísticos para o rol dos assassinados – embora menos letais do que as suas congéneres, as polícias políticas do Estado Novo mataram uns milhares de concidadãos nossos, cujo crime, na maioria dos casos, era o de não estarem de acordo com a política do regime e de, na sua maior parte, estar organizado clandestinamente para distribuir uns jornais ou organizar uma greve. A luta armada, com a LUAR, as BR e a ARA, só ganhou expressão nos últimos anos da ditadura.
Se são do conhecimento geral nomes como o de Humberto Delgado, Dias Coelho, Militão Ribeiro, é preciso não esquecer que houve muitos outros, como o caso do médico António Ferreira Soares, morto a tiro em 4 de Julho de 1942 em frente de uma irmã e de uma criada, do José Moreira que, em 1950, «caiu» do terceiro andar da sede da PIDE, do Raul Alves que em 1957 também «caiu», dos dois presos mortos na delegação do Porto em 1957 – Joaquim Lemos Oliveira e Manuel da Silva Júnior… centenas de nomes.
Oficialmente, as mortes deviam-se a suicídios. a quedas acidentais, a doenças cardíacas, etc. Em todo o caso, a historiadora não nos fornece um número total de vítimas. Não é possível encontrar esse número. Suponhamos que à lista dos assassinados em Portugal, queremos adicionar os que foram mortos nas ex-colónias – portugueses e, sobretudo, africanos? – Tudo se complica.
Referindo uma experiência pessoal, na minha primeira prisão, em 1965, fui submetido no interrogatório a 13 dias de «tortura do sono», com espancamentos pelo meio. Depois de sete dias, comecei a desmaiar com frequência, e o médico que me ia ver mais do que uma vez por dia, aconselhou o inspector do meu caso (José Américo da Silva Carvalho) a deixar-me dormir. Puseram-me uma cama desmontável no «gabinete de investigação» - eufemismo policial para sala de tortura - e dormi ininterruptamente dez ou onze horas até que me acordaram e a tortura prosseguiu por mais seis dias. Parecerá duro a quem nunca se viu nestas andanças, mas não foi nada de especial. Milhares de outros antifascistas tiveram um tratamento muitíssimo pior, chegando alguns a perder a vida. Daí o cuidado que a polícia passou a ter, com médicos a vigiar, os efeitos da tortura. As mortes não eram convenientes, davam mau aspecto e, se possível, pioravam a reputação da polícia. Embora nunca se dissesse que as pessoas morriam devido ao que lhes faziam – como já vimos, eram geralmente «suicídios», «acidentes» e «doenças súbitas». Quando os familiares tinham acesso aos corpos, não podiam vê-los. Porque seria?
Egito Gonçalves termina o seu poema Morte no Interrogatório («Os Arquivos do Silêncio»,1963), desta forma dramática e irónica:
Na sala o interrogatório atravessava o tempo;
lâmpadas de mil vátios tornavam a vida irrespirável,
Às três da madrugada o coração fraquejou
E os dois comissários ficaram perante um homem morto
E dois cinzeiros com trinta pontas de cigarros.
Antes da «tortura do sono», que, como o nome indica, consistia em deixar o paciente sem dormir até «confessar», houve a «estátua» que, à insónia forçada, juntava a imobilidade também forçada. Os «cientistas» policiais parecem ter descoberto que a imobilidade produzia um desgaste físico acelerado e que na nova modalidade, podendo mover-se, os presos aguentavam mais enquanto, privado do sono durante mais tempo, o cérebro se cansava e a capacidade mental de resistir também. Afinal tratava-se do velho «tormentum insoniae», o suplício da insónia, tão usado pela Inquisição. Lembro um estudante de Agronomia que esteve 21 dias sem dormir e que sendo deficiente motor (poliomielite) foi obrigado pelos agentes a dançar a Kalinka… Mesmo assim, não terá sido um recorde.
Além das mortes, das famílias destruídas pelas prisões prolongadas, com diversos anos de pena a que se acrescentavam as tais medidas de excepção que as podiam prolongar indefinidamente, era vulgar os presos verem-se despedidos dos empregos. Quando saíam da prisão – fossem operários, professores, médicos ou escriturários, não podiam trabalhar. Nem emigrar, pois não tinham direito a passaporte. A propósito de vexame, as mulheres eram mais vulneráveis – embora vigiadas, torturadas e espancadas por agentes femininos, houve casos de abusos sexuais praticados por inspectores, chefes de brigada ou agentes masculinos. Uma tortura adicional era, se a «estátua» ou a «tortura do sono» coincidiam com o período menstrual, não as deixavam pôr ou mudar pensos, tomar medidas higiénicas, criando uma humilhação extra com os comentários sarcásticos que os agentes, homem ou mulher, faziam sempre que entravam no «gabinete». Fala-se de uma presa, uma estudante, que, já nos anos 60, enlouqueceu. Não pude confirmar.
Trabalhos como este, de Irene Flunser Pimentel, são muito necessários, pois constituem instrumentos de informação realizados com todo o rigor possível. Buscar a verdade com este rigor é a função da ciência histórica. Sendo a autora uma historiadora da escola de Fernando Rosas, o escrúpulo com que o trabalho foi elaborado, é um dado adquirido. É uma obra de consulta onde só figura a verdade apurada. No entanto, dada a objectividade com que o tema é abordado, ela não nos transmitirá a sensação de horror, de impotência, que se sentia quando se era apanhado nas malhas daquela polícia.
Porque tentar transmitir essa sensação, é função da arte e da literatura e não da ciência histórica.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
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..."ela não nos transmitirá a sensação de horror, de impotência, que se sentia quando se era apanhado nas malhas daquela polícia"...
ResponderEliminarCarlos, quem não passou por isso nunca poderá perceber!
..."é função da arte e da literatura"... Certo, pode tentar dar-nos um cheirinho, mas só isso.
Aproveito para dizer que ouvi na rádio que no próximo sábado, dia 19, no Museu do Neorealismo (penso ser este o nome), em Vila Franca de Xira, a Irene Pimental irá apresentar o seu trabalho sobre o Tarrafal.
Carlos, o texto teu que acompanha o comentário ao livro de Irene Pimentel, escrito com enorme simplicidade e certeira realidade, é excelente para conhecimento das formas de actuação da PIDE que, depois do 25 de Abril, salvo raras excepções, não deu conta dos seus crimes, agentes e bufos não foram julgados e a seu tempo passaram a receber as reformas a que tinham direito pelo seu "limpo e honrado trabalho" a favor da nação. Pior, era impossív el.
ResponderEliminarSim, Clara, quem não passou por isso não poderá nunca compreender. Eu penso que a literatura, o romance, a poesia, consegue, melhor do que a investigação histórica, encontrar expressões que traduzem esse sentimento de impotência perante uma fera estúpida que nos poderá destruir. A investigação, arruma, ordena, quantifica. Apesar disto, a investigação é vital para nos aproximarmos da verdade, erradicando lendas e fantasmas. É o Museu do Neo-Realismo (do qual sou sócio); infelizmente não poderei estar presente. Se lá fores e chegares à fala com a Irene Pimentel, convida-a a colaborar connosco. O António Gomes Marques, estrolábico também, é capaz de lá estar.
ResponderEliminarAntónio Augusto,é como dizes - pior seria impossível. Creio que no 10 de Junho do ano passado, um desses torcionários foi condecorado por «serviços prestados». A quem?
Pois é, Carlos. A investigação deve e tem que ser feita. Com ela, e com a distância temporal, poderemos melhor perceber os porquês e como evitar que se repita. Mas nem mesmo a literatura, ou outra forma de arte, pode fazer passar para nós o que foi viver essas situações - o horror, o asco, a humilhação, a coragem, a esperança... (para outros que nos estejam a ler: já conhecem o livro do Carlos Loures - "Talvez um grito" - Salamandra, 1985 ? - descreve aquilo que ele nos deu um cheirinho) Será por não vermos a face das pessoas? Se nos estiverem a contar cara a cara reagiríamos de outra forma?
ResponderEliminarNoutras circunstâncias (de outros sofrimentos de histórias pessoais) consigo sentir essa emoção. Emoção que tenho que conter, pois estou em situação de ter que ser eu a ajudar a entender, a encontrar forças, a vislumbrar caminhos alternativos...É como se um fluxo de energia viesse até mim que eu tenho que devolver com uma forma mais "colorida". Colorido que me vai esgotando. Energia que tenho que ir buscar a outros lados - ao riso das crianças quando com elas trabalho, aos colegas de equipa, à música, a mensagens amorosas, a piadas da minha filha, até ao Estrolábio e a todos vocês...