quarta-feira, 9 de junho de 2010

Outra Constituição, outra Democracia, uma Terceira República – 23

Carlos Leça da Veiga

Que Constituição temos nós?

Mal vão as coisas quando o poder cai nas mãos dos lagalhés

Há mais de trinta anos, na refrega do 25 de Abril de 1974, face ao desenrolar dos acontecimentos políticos, económicos, culturais e sociais vividos pela população portuguesa era impossível que, já nessa época, os parlamentares eleitos – figuras supostas excelsas, porquanto escolhidas pelos seus estados-maiores partidários – não tivessem impresso no seu saber político que a sociedade portuguesa, desde os últimos anos do fascismo, tinha em mente objectivos de justiça social dalgum modo radicais, nos quais o homem tinha de afirmar-se como agente transformador, depositário e defensor de tudo quanto a si respeita fosse isso obra da natureza, fosse fruto da cultura. Ignorá-lo não podia e não devia ser aceite por quem teve o topete de afirmar-se como representante, na Constituinte, dos eleitores portugueses.

Não é possível admitir que a maioria daqueles iluminados, afinal uns lagalhés, então, por palavras e actos seus, não tivesse presente no acto de deliberar, aquilo que, com maior ou menor diferenciação e em várias escalas, estava bem patente nas efusivas e determinadas intenções político-sociais manifestadas pela generalidade da população portuguesa, tal como ficaram subentendidas, senão mesmo exibidas, naquele período inesquecível posterior à vitória nacional do 25 de Abril de 74 e que, não muito depois, ficaram bem evidenciadas nos resultados eleitoras subsequentes, mau grado, tanto nessa circunstância, como nas seguintes, com espanto geral e indignação de muitos, a generalidade das intenções da população fosse claramente desrespeitada e, de verdade, jamais acatada com a dimensão mais exigível.

Aos eleitos, por força das suas maiorias, fica a dever-se o atropelo a que o país foi votado. No caso português bem pode repetir-se uma passagem que o Professor Paul Ginsborg, da Faculdade de Letras de Florença, deixou escrita na sua obra de 2006, «La democrazia che non c`è» e que reza: “Aos participantes, mesmo que intencionados em empenhar-se a nível cívico no futuro, não são oferecidas estruturas nem instrumentos duradouros” e, noutro passo, “os cidadãos activos e divergentes raras vezes são reconhecidos pelos políticos, administradores ou especialistas como uma dádiva preciosa para uma renovada esfera pública democrática”.

A ordenação jurídico-política fundamental que foi proposta ser produzida pelos Constituintes derivou do voto maioritário dado pela população portuguesa nas primeiras eleições livres. Foi um voto cujo sentido político e social tinha sido forjado, muito principalmente, ao longo da “noite negra” do salazarismo e que, com toda a legitimidade, foi agigantado com o 25 de Abril.

Com um espanto quase mundial, a população portuguesa, até à repressão do 25 de Novembro, viveu numa afirmação constante do seu pulsar político com vista a uma transformação radical da vetustez comportamental da sociedade portuguesa e, sobretudo, da sua manifesta injustiça social. As inesquecíveis manifestações da vontade da população portuguesa cujo vigor sócio-político subjacente, mau grado um arregimentar partidário muito vincado, apesar disso e até contra isso, dalgum modo, não só demonstraram uma notável capacidade de intervenção política como, também, conseguiram afirmar, com destaque assinalável, uma bastante autonomia. Propunham-se, no essencial, assegurar um rol volumoso de reformas, quantas delas fruto consequente e natural duma repressão política velha de cinquenta anos e do seu clima de injustiça social que, por isso mesmo, como inevitável e com toda a razoabilidade, tinham de vir a demonstrar-se agressivas e apresentar-se – era uma exigência da História – com pendor e peso revolucionários.

Infelizmente as vontades manifestadas pela massa populacional portuguesa não tiveram bom fim, porquanto acabaram retalhadas pelo discursar pouco edificante e enganador – mas bem trabalhado – dos aparelhos partidários detentores do monopólio do acesso a São Bento que, desde então – primeira desilusão – até hoje – a desilusão continuada – flutuam entre a falta de verdade e o canto das sereias.

Nada melhor para caracterizar a maneira como, sobretudo, desde os finais dos anos cinquenta do século passado estava a viver-se em Portugal e que, em 1974, com a liberdade alcançada pelo Movimento da Forças Armadas acabou, por fim, por poder exprimir-se do que atender-se, com a atenção merecida, a uma passagem de quanto foi escrito numa crónica jornalista de 2008, no jornal «Noticias Médicas», pelo psiquiatra Dr. António Coimbra de Matos que, com a simplicidade mais adequada, com uma frontalidade digna de nota e sem floreados interpretativos ou arremedos ideológicos, caracteriza muitíssimo bem a viragem sócio-cultural portuguesa a estabelecer-se desde esses anos transactos e que, em 1975, no mais fundamental, era inadmissível não ser amplamente conhecida pelos famigerados, porém, malfadados Constituintes. Daquele distinto pensador, para elucidar, transcrever-se-á um segmento dum seu texto publicado no qual está escrito “era o dealbar da revolução democrática portuguesa, o despertar da vida intelectual autónoma no povo, nos estudantes e nos jovens. Era o tempo de desejar outra coisa e querer um destino diferente para si, para a sociedade e para a vida. As pessoas interrogavam-se, projectavam-se inovadoras paisagens do mundo e ensaiavam novas soluções e outros modos de viver e conviver. Já não era, ou começava a não ser, o tempo dos sonhos de reprodução do passado e dos devaneios românticos. Era, sim, o tempo dos sonhos-projecto, da construção/co-construção de um novo mundo, mais livre, solidário, vivo, expansivo e promissor”.

A realidade nacional mostrou à evidência que nada disto esteve presente na mente dos Constituintes e que na sua obra acabada – muito mal acabada – contentaram-se, tão-somente, com afirmações bombásticas de meras intenções justicialistas sem que, em socorro da sua implantação, nada tivesse sido escorado com o vigor e a decisão políticas bastantes para terem uma efectividade, uma eficácia, uma eficiência e uma segurança coerentes, consistententes e duradoiras. Em 1932, Fernando Pessoa, deixou escrito, “A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano”. Estaria, também, a ler o futuro?

Todas as grandes preocupações e precisões legalistas foram dirigidas para os clássicos direitos, liberdades e garantias pessoais deixando uma imensa margem de interpretação, como, mais tarde, haveria de convir, para os articulados atinentes aos direitos sociais.

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