António Gomes Marques
I - Época histórica
"A acção desta peça decorre durante o primeiro quartel do século X, ..." , assim inicia António Macedo O Osso de Mafoma, representada na Malaposta em Outubro de 1990.
Aceitando a tradicional divisão da História por épocas, concluímos que é na Época Medieval que decorre a acção da peça. Ora, hoje ainda, há quem considere a palavra medieval como sinónimo de algo contrário ao progresso, apesar dos muitos estudos sobre tal época, já traduzidos para português e em Portugal publicados, nos demonstrarem o quão errónea é tal opinião. Se lermos, por exemplo, um texto de autor anónimo, Jeu d'Adam, representado numa igreja na segunda metade do século XII e que nos fala do feminismo, do antifeminismo, do casamento e da sexualidade, e, se desconhecermos o facto de se tratar de um texto de tal época, julgaremos, facilmente, estar perante uma obra nossa contemporânea. É apenas um exemplo já que, em História, não se tiram conclusões com base num só texto.
O período que vai dos começos da Idade Média, coincidente com a queda de Roma em 395, ou seja, data da divisão do Império Romano em Império Romano do Ocidente e Império Romano do Oriente, até 476, data esta que marca o fim do Império Romano do Ocidente e se prolonga até 800, é caracterizado por um certo obscurantismo e mesmo por um regresso ao barbarismo. É o primeiro período da Idade Média, que termina com o chamado Renascimento Carolíngio no fim do século VIII, princípio do século IX, o qual dará origem a novo período de grandes desenvolvimentos, não só na literatura, mas também nas artes e na filosofia, que vai durar até ao fim do século XIII, passando pelo Renascimento do século XII, bem caracterizado por Jacques Le Goff no seu livro Os Intelectuais na Idade Média, que constitui, portanto, o segundo período da Época Medieval, a qual só terminará com a queda do Império Romano do Oriente em 1453 e com o despertar económico que faz adivinhar os tempos modernos e os descobrimentos, sob o grande impulso dos portugueses e também dos espanhóis.
II - Cristianismo
Se aquele primeiro período da Época Medieval deve algo aos gregos e romanos e também aos germânicos, influências que não devem ser esquecidas, é bom reter que o cristianismo constitui base bem mais importante em tal civilização.
Os historiadores do cristianismo consideram, no seu desenvolvimento histórico, três períodos: antiguidade (séculos I a V), vivendo nas estruturas do Império Romano; medieval (séculos V a XV) em íntimo convívio com as novas estruturas europeias, para as quais deu notável contributo e, por fim, séculos XVI a XX; período da sua expansão, quantas vezes violenta, e da sua universalização.
Do seu fundador, Jesus da Nazaré, pouco se sabe para além de ter nascido na Judeia, mais ou menos no início da nossa era (ou da era cristã), tendo sido crucificado cerca de trinta e três anos depois, no reinado de Tibério.
Terão sido as influências recebidas dos profetas hebreus e das doutrinas dos essénios ("espécie de ordem monástica com tendências ascéticas") que o levaram a pregar.
Jesus da Nazaré nada deixou escrito, nem tão pouco os seus discípulos anotaram fosse o que fosse das suas pregações. O mesmo não sucederá com Maomé.
Nestas doutrinas encontrou Jesus a ideia do Messias salvador, não pela destruição dos que se lhe opunham, mas pela regeneração da vida espiritual e também dos homens.
Provas de que tivesse acreditado haver nascido de uma virgem não existem. Parece, isso sim, ter acreditado ser um Profeta a quem Deus incumbiu de regenerar os homens.
As fontes para conhecermos os ensinamentos de Jesus da Nazaré são os livros do Novo Testamento: as epístolas de S. Paulo e os quatro evangelhos, de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João, assim como os textos do Velho Testamento.
Quanto a S. Paulo, sabe-se que nunca viu o Pregador e, nos seus discursos, cerca de vinte anos depois da crucificação, nota-se a grande influência da filosofia grega, mas esta influência deve ser entendida mais como uma forma de S. Paulo se fazer entender pelos gregos, utilizando portanto os esquemas mentais a que os seus ouvintes estavam habituados. Repare-se neste extracto: "Atenienses, vejo como em tudo sois os homens mais religiosos. Ao visitar, de passagem, os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta epígrafe: Ao Deus desconhecido. É precisamente aquele que vós honrais sem o conhecer que eu vos venho anunciar. O Deus que fez o mundo e tudo o que ele contém, sendo o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homem. Também não é servido por mãos de homem, como se precisasse de alguma coisa, ele que dá a todos a vida, a respiração e tudo. Foi ele que, de um só homem, fez surgir o género humano e o espalhou por toda a face da terra, depois de determinar as épocas exactas e os limites do seu domínio; a fim de que os homens procurem a Deus, se é verdade que o procuram às apalpadelas e o encontram, tanto mais que não está longe de cada um de nós, porque é nele que vivemos, nos movemos e somos, como até alguns dos vossos poetas disseram: porque nós somos também da sua raça. Sendo, pois, da raça de Deus, não devemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, à pedra, trabalhados pela arte e pelo génio do homem. Esquecendo os séculos de ignorância, Deus fez saber agora por toda a parte e a todos os homens que devem arrepender-se, porque ele fixou o dia em que há-de julgar o universo com toda a justiça pelo homem que designou para este fim, do qual nos deu a certeza universal ressuscitando-o dos mortos".
No que aos Evangelhos respeita, é comum na História terem-se como dignas de crédito as suas pormenorizadas informações. O mais antigo parece ser o Evangelho de S. Marcos, escrito por volta dos anos 60 da nossa era.
Algumas diferenças podem ser encontradas nos quatro Evangelhos. Por exemplo, S. Mateus e S. Lucas falam-nos do nascimento de Jesus Cristo sem pecado, enquanto S. Marcos nada diz a esse respeito e S. João apresenta-O como Deus em forma humana.
Outras contradições poderiam ser apontadas. Não tiram, no entanto, valor aos Evangelhos como a melhor fonte de informação sobre as pregações de Jesus.
O essencial dos seus ensinamentos pode resumir-se no seguinte, que transcrevemos de E. McNall Burns:
" 1) A essência de piedade e o amor a Deus e ao próximo: «Amarás ao Senhor teu-Deus de todo o coração. Amarás ao próximo como a ti mesmo. Não há mais alto mandamento que estes.»
2) O perdão, a cordura e o amor aos inimigos são virtudes cardiais: «Ama teus inimigos... faz o bem a quem te odeia»; «... a quem quer que bata em tua face direita, oferece também a outra».
3) O meio-termo como fundamento da moralidade: «Tudo o que desejais que os homens façam por vós, fazei assim também por eles...».
4) Oposição ao ritualismo como base da religião: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado». (V. aqui a influência judaica – A. G. M.).
5) Condenação do egoísmo e de toda disputa sobre proveitos materiais: «Quem quiser salvar sua vida, perdê-la-á». «É mais fácil um camelo passar pelo buraco duma agulha, que um rico entrar no reino de Deus».
6) A fraternidade dos homens sob a benevolente paternidade de Deus: exemplificada na história do bom samaritano e em numerosas comparações da benevolência de Deus com a bondade de um pai extremoso"
Muitos dos seus seguidores não iriam aplicar à letra muitos dos seus ensinamentos e a principal causa do seu triunfo terá residido no facto de ter aproveitado ensinamentos de variadas religiões, em especial do judaísmo, do maniqueísmo e do zoroastrismo.
Disputas doutrinárias vão ser constantes e uma organização cristã vai nascendo. A influência dos místicos, no seguimento da vida apostólica, e da vida conventual são importantes, embora não tão fundamentais como a organização eclesiástica para a uniformidade do cristianismo.
III - Islamismo
"O termo islão significa «submissão a Deus» e como tal designa essencialmente uma religião, aquela que foi pregada por Muhammad (ou Maomé), no início do século VII da nossa era, na Arábia e que se espalhou, de seguida, nos numerosos países conquistados pelos Árabes muçulmanos no decurso dos séculos VII e VIII" .
Maomé, fundador da nova religião, nasceu em Meca em 570. Órfão muito novo, de pai e mãe, torna-se aos vinte e quatro anos empregado de uma viúva rica, com quem vem a contrair matrimónio, sendo este desafogo económico o que vai permitir-lhe dedicar-se à difusão da sua religião.
A origem de Meca como cidade sagrada perde-se no tempo. Era ali que se encontrava a pedra preta sagrada enviada pelo céu, contida no relicário, Caaba, guardado pela tribo dos Kuraish, uma espécie de aristocratas.
A necessidade de uma nova religião para unir os povos árabes, perdidos em conflitos fratricidas, terá sido compreendida por Maomé. Impressionado pelo cristianismo e pelo judaísmo, começou por pregar contra as perniciosas condições sociais e morais do seu povo, que, a continuarem sem reforma, o levariam à destruição.
Apresentou-se como enviado de Deus. Meca foi pouco receptiva à sua mensagem. Resolve, então, dirigir-se com os seus companheiros à cidade de Iatribe, aproveitando-se das lutas entre as várias facções ali existentes, vindo a impor-se aos seus adversários. A esta deslocação de Meca para Iatribe chamam os maometanos Hégira, que, em árabe, quer dizer fuga. Os maometanos consideram esta data como o início da sua era.
A vitória de Maomé vai permitir-lhe o regresso a Medina precisamente dois anos antes da sua morte, ocorrida em 632, ou seja, no 11.° ano da era muçulmana.
Após a sua vitória, em especial sobre os judeus, que só num ano perdem mais de 600, Maomé mudou o nome de Iatribe para Medina, a cidade do Profeta.
Em Meca, mata alguns dos seus adversários, destrói os seus ídolos mas preserva a Caaba. Meca é designada a cidade sagrada dos maometanos.
A vida religiosa dos seguidores de Maomé é ainda hoje baseada no Corão, livro sagrado, construído com base nas suas pregações e graças à memória dos seus discípulos. «Não há outro deus senão Alá e Maomé é o seu profeta», é uma profissão de fé do islamismo.
“Da sociedade islâmica dimanam regras religiosas, morais e jurídicas para serem cumpridas, em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, o Soberano no Dia do Juízo Final, portanto o Temível, o que faz aplicar castigos terríveis e suplícios.
Quais as sanções específicas de ordem moral? Em primeiro lugar, o remorso, o arrependimento, o peso da consciência, ou melhor, o penoso exame de consciência. São estas as formas de garantia do cumprimento das regras, aliadas ao Juízo de Deus que tudo vê e que de tudo sabe.
As de ordem social são talvez bem mais amargas. Consoante o comportamento do Homem, haverá uma reacção por parte da Sociedade estabelecida. São a crítica e a condenação que o desrespeito à regra suscitou. É a opinião pública que se abre sobre a conduta a reprovar. São, enfim, muitas vezes, o banimento do Homem da Sociedade em que vivia, o seu exílio compulsivo, nunca esquecendo as contas que, de qualquer modo, ele terá de prestar, no fim, a Allâh.
Deparamos com sanções morais e jurídicas correspondendo às regras de natureza moral e jurídica e penas próprias de infracções a normas religiosas que dizem respeito à fé.
A ideia fundamental da religião a1corânica, neste caso, é a de que mais não vivemos do que uma mera vida transitória, passageira, mais ou menos longa, que não tem em si a extensão do seu valor. Só é medida, segundo valores eternos, à luz da ideia de uma vida extra terrena, em cujo limiar todos os homens serão julgados. Na base desse juízo, está o valor ético da própria existência do Homem; neste caso, a religião alcorânica é mais acessível à índole humana. Está mais de acordo com o comportamento dos homens do que a religião católica. Mas, em ambas, o remorso é, para o Crente, uma forma de sanção imediata e imperiosa. É o que se entende e se depreende de frases como esta: «A Vida Imediata é somente jogo e distracção. Se acreditarem e forem piedosos, Allâh dar-vos-á recompensas sem que vos retire os vossos bens.» (O Corão). Entendamos, pois, que tudo quanto nos foi dado é apenas uma provisão para a vida neste mundo, mas o que se acha junto de Deus é melhor e mais duradouro para os crentes, para os que se apoiam no seu Senhor - é o que depreendemos do «capítulo»: «Recompensa dos Crentes e dos Infiéis no Além». Mas como misericordioso que Deus se nos apresenta, com frequência, há também que contar com o perdão: aos crentes, fiéis e arrependidos a tempo e horas, o Senhor oferece compensações não só ultra terrenas mas também durante a vida. A sanção é, pois, uma forma de garantia daquilo que fica determinado numa regra" .
O Islamismo assume-se como um complexo político-religioso, afirmando que a vontade de Deus só se consolidará na Terra com o contributo do poder político: " Assistimos, então, aos juristas e teólogos muçulmanos elaborarem, baseados no fundamento da Revelação Divina, um direito completo, cheio de pormenores, o direito que assenta numa sociedade teocrática, na qual o Estado não tem valor a não ser como servidor da religião revelada. " . Não fez o cristianismo o mesmo? Hoje, o islamismo continua a afirmar o Estado como seu servidor, sendo nisso mais transparente do que o cristianismo.
Será esta uma questão polémica que não iremos tratar aqui.
sábado, 12 de junho de 2010
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Não conheço este trabalho do António de Macedo (ambos fizemos parte de uma tertúlia que reunia no segundo piso do Café Avis, há muitos, muitos anos). Pelo que leio neste texto do Gomes Marques, trata-se de uma aproximação ao islamismo, de uma explicação do que é o islamismo. E, de certo modo, constituirá um contributo para aquilo a que Boaventura Sousa Santos chama uma «hermenêutica diatópica», ou seja a explicação de uma cultura ou religião usando símbolos e exemplos de outra. Sousa Santos diz: «Na forma como são agora predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie de esperanto que dificilmente poderá tornar-se na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões do globo. Compete à hermenêutica diatópica»(...)«transformá-los numa política cosmopolita que ligue em rede línguas nativas de emancipação, tornando-as mutuamente inteligíveis e traduzíveis». Fiquei com curiosidade por este texto de Macedo. «Serviço público», António. Parabéns.
ResponderEliminarSó um aviso aos possíveis leitores: como o texto é longo, houve que o dividir, mas não se colocou, no final das partes I, II e III, um (continua), sendo naturalmente para mim importante que as críticas se façam ao todo.
ResponderEliminarQuanto ao Boaventura de Sousa Santos, meu caro Carlos, o que é lamentável é que os vários poderes políticos não o estudem e não façam justiça à notável investigação e formação de outros investigadores que, sob a sua direcção, se tem desenvolvido, não só em Coimbra.