Carlos Loures
Em Agosto de 1914, na redacção de «A Capital», foi admitido um rapazinho com 17 anos. Garibaldi Falcão, jornalista veterano, fora encarregado de o guiar no começo da profissão, mas estava preocupado com o que chegava sobre a Grande Guerra que deflagrara dias antes, em 28 de Julho. Vendo o jovem inactivo, perguntou-lhe: «Ouça lá, o menino já fez fogos?» Pensando que o estavam a tomar por um pirómano, Reinaldo Ferreira, indignado, respondeu: «Não senhor!». Desfeito o equívoco, após uma gargalhada geral dos redactores, lá foi fazer a sua primeira reportagem, a cobertura de um fogo posto, na Rua D. Estefânia. Chamava-se Reinaldo Ferreira e nasceu em Lisboa em 10 de Agosto de 1897. Foi repórter, novelista, dramaturgo e até realizador de cinema. Começou a escrever nos jornais com doze anos. Aos vinte, era considerado o maior repórter português.
Como, a princípio, só lhe davam incêndios, furtos, casos insignificantes… - começou a inventar reportagens sensacionais. Em 1917, horrorizou os leitores com um crime na Rua Saraiva de Carvalho, que metia um cadáver, criminosos encapuçados, pormenores misteriosos e macabros e um sinistro «homem dos olhos tortos» – a história ia saindo n”O Século sob a forma de cartas assinadas por um tal Gil Góis e atingiu tal impacto entre os leitores que o jornal achou melhor revelar que tudo não passava de ficção. Mesmo assim, a história prosseguiu e o interesse dos leitores manteve-se até ao desfecho, à semelhança do que acontecera cinquenta anos antes com o folhetim de Eça e de Ramalho - «O Mistério da Estrada de Sintra».
Data de 1917 a sua célebre (e fictícia) entrevista a Mata Hari. «Entrevistou» a famosa espia e o «pai» de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, sem nunca os ter contactado. Enviou para o jornal reportagens empolgantes do que ia acontecendo na Rússia, mas há quem diga que as escreveu sem lá ter ido.
Em Março de 1918, em «A Manhã», publicou «um inquérito à mendicidade». Fez-se fotografar andrajoso e mal barbeado e toda a gente acreditou que ele tinha andado a pedir esmola, mergulhado no submundo. Ainda em 1918, fez a reportagem de um assassínio de uma estrangeira numa pensão de Lisboa. O criminoso teria sido o marido. Ajudado pelo grande Stuart de Carvalhais, na pensão em causa, virou um quarto do avesso, espalhando sangue de galinha por toda a parte e fotografando depois a «cena do crime».
O presidente Sidónio Pais quando, na estação do Rossio, tomava o comboio para uma viagem oficial ao Porto foi morto a tiro. Pois, Reinaldo Ferreira (que, segundo parece, não estava lá) fez para o »Diário de Notícias» a reportagem mais lida – antes de expirar, o presidente teria dito: «Morro bem! Salvem a Pátria!». Frase heróica que entrou em livros e em crónicas, mas que Sidónio nunca proferiu, pois caíra fulminantemente morto abatido pelos tiros do tresloucado José Júlio da Costa.
Em 1919 foi para Paris, onde trabalhou no «Le Soir», no «Matin» e dirigiu a Agência Americana, cujos serviços chefiou em Madrid, Barcelona e Bruxelas, onde vivia em 1920. Note-se que tinha apenas 23 anos. Na capital belga ficou até 1922, colaborando no jornal «Neptune». Em 1923 nasceu o Repórter X. De regresso de Paris, estava em Barcelona quando, em 13 de Setembro, Miguel Primo de Rivera, capitão-general da Catalunha acabava de tomar o poder. Reinaldo Ferreira não resistiu à tentação de enviar para o jornal uma crónica atacando o ditador e denunciando as suas prepotências. Segundo uma das versões, não assinou – pôs apenas «repórter» e a seguir um rabisco ilegível. O tipógrafo ao compor o texto, tomou o rabisco por um x. Repórter X. Reinaldo Ferreira adoptou o pseudónimo nascido de uma casualidade.
Explorando a popularidade que o nome rapidamente assumiu e capitalizando o seu enorme carisma, criou o «Jornal do Repórter X». Seguiram-se o «Repórter X» e o simplesmente «X». Multiplicando-se, correndo de um sítio para outro, iniciou-se em Espanha na cinematografia, realizando uma série de filmes policiais e de comédias. Acrescente-se que também escreveu para o teatro – peças que foram representadas no »Ginásio» e no «S.Luiz». Uma delas, «1808», foi interpretada pela grande Palmira Bastos.
Em 1925, trabalhando no «ABC» foi enviado à União Soviética para fazer a cobertura dos incidentes e da luta pelo poder entre Estaline e Trotsky após a morte de Lenine. Encalhando em Paris (onde terá caído nas garras da cocaína), foi mandando telegramas para a redacção - não estava a conseguir obter o visto. Mas, enquanto explorava o bas-fonds parisiense, foi mandando trabalhos – tudo inventado. Esgotadas as desculpas, terá chegado a Moscovo de onde enviou reportagens e entrevistas – desde o porteiro do Kremlin ao embalsamador de Lenine. Há a suposição, talvez infundada, de que Reinaldo Ferreira continuou em Paris e foi lendo as crónicas diárias de Henri Bérau, correspondente de «Le Journal» em Moscovo. Há quem defenda que ele esteve, de facto, em Moscovo e que as entrevistas são genuínas. Hoje, é impossível saber a verdade. Mas as crónicas eram formidáveis.
Ainda em 1925, fez admiráveis reportagens sobre o caso da burla cometida por Alves dos Reis, no caso do Angola e Metrópole. Em Março de 1926, deu-se o assassínio da corista Maria Alves, estrangulada num táxi e arremessada para o passeio. Escrevendo para o «ABC» e baseando-se em crime semelhantes, foi elaborando deduções que conduziram a um criminoso para o qual a polícia não apontava – Augusto Gomes, o amante da actriz. Veio a provar-se que foi ele, de facto, o autor do crime. O assassino ficou com a convicção de que Reinaldo o seguira e assistira a tudo, de tal modo a sua ficção se ajustava ao que aconteceu. O que teria sido impossível, pois as crónicas eram enviadas de Haia onde o jornalista estava à época do crime a cobrir o julgamento de Karel Marang, relacionado com o caso Alves dos Reis.
A sua imaginação era ilimitada. Às vezes abusava, como quando tentou convencer os leitores de que no subsolo de Lisboa existia uma cidade misteriosa, construída a seguir ao terramoto de 1755, onde desde então, habitando numerosa galerias, como toupeiras, as gerações se sucediam. Como peça jornalística era inverosímil, como novela era potencialmente brilhante. Reinaldo Ferreira constituiu na sua época um modelo de repórter. Hoje, com o endeusamento do jornalismo de investigação, os seus métodos seriam condenados. É que ele praticou um jornalismo de imaginação ou «criativo».
Morreu com 38 anos, devastado pelo consumo de cocaína, morfina, tabaco, álcool... Casou duas vezes, tendo dois filhos do primeiro casamento e um do segundo. Um deles, Reinaldo Ferreira como o pai (1922-1959) foi um notável poeta. Ganhou fortunas, morreu quase na miséria e, apesar da sua celebridade em vida, foi rapidamente esquecido.
Hoje, quase ninguém sabe quem foi o Repórter X.
domingo, 20 de junho de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário