Carlos Loures
Ouvi os passos do carcereiro afastando-se no extenso corredor.
Sentei-me à mesa, apoiei a testa na mão esquerda, como se estivesse a meditar. Com os nós dos dedos da mão direita bati duas pancadas secas na parede. Não houve resposta. Repeti as pancadas, agora com mais força, magoando-me no reboco rugoso. Nada.
Portanto, ou a cela daquele lado estava vazia ou o seu ocupante fora chamado à polícia. Hipótese pouco provável esta última, pois era domingo. Só se já estivesse a ser interrogado e não tivessem querido interromper o interrogatório (e a tortura) no fim-de-semana. Outra hipótese, também aceitável, era a de quem ali estava não querer responder. Havia severos castigos para quem fosse surpreendido a utilizar o «morse». O segredo, por exemplo. Alguns presos que estavam, como eu, no chamado «isolamento contínuo» tinham, por esse motivo, medo de comunicar. Outros ainda temiam provocações. A polícia punha, por vezes, agentes em celas desocupadas e tentava desta maneira primária, mas por vezes eficaz, obter informações ou mesmo involuntárias confissões.
Fui até à casa de banho, baixei as calças e sentei-me na sanita. Era um álibi para o caso de o carcereiro abrir subitamente o postigo. E a divisória do pequeno lavabo era em vidro acrílico para que a todo o momento os guardas pudessem controlar visualmente os presos.
Ia agora tentar a cela do lado esquerdo.
Bati, debaixo do lavatório, as duas pancadas convencionais. Silêncio. Quando me preparava para as repetir, veio bruscamente a resposta – duas pancadas também.
Lentamente, iniciei a pergunta habitual, com que milhares de presos tinham começado antes os seus diálogos: Nome? – N, treze pancadas, O, catorze, M, doze, E, cinco. Do outro lado, a resposta antecipou-se à emissão da última letra e veio numa velocidade a que eu não estava ainda habituado. Fiz o sinal de «não compreendido»: várias pancadas seguidas. A mensagem veio então mais lenta: «B-R-U-N-O». E quase sem interrupção: «Fala depois das quatro».
Não compreendi logo o motivo do adiamento.
Quando às quatro começámos a «falar», Bruno explicou-me que aos domingos, a partir das quatro, os carcereiros ficavam nos seus cubículos a ouvir os relatos de futebol. Afrouxavam sempre a vigilância entre as quatro e as seis. Nos dias de semana, a melhor hora era entre o fim do jantar e o apito para o silêncio, às dez horas. Os guardas ficavam a ler o jornal da tarde, a ouvir rádio ou, quem sabe, talvez a dormitar. Não corriam o risco de ser surpreendidos por qualquer colega ou graduado, pois só o guarda de serviço tinha a chave do corredor e quem quisesse entrar teria de bater nas grades da porta que dava para o patamar da grande escada central.
Embora a princípio tivesse alguma dificuldade em acompanhar o ritmo com que Bruno comunicava, não pude deixar de me sentir orgulhoso por, logo no segundo dia desta prisão, estar tão fluente. Como quando estamos muito tempo sem falar um idioma e, forçados a utilizá-lo, descobrimos que afinal não o esquecemos. A prisão anterior fora há quatro anos; a rapidez levava sempre algum tempo a adquirir.
José Rodrigues Miguéis disse algures que «os dias custam a passar, os anos é que passam depressa». Os dias numa cela de isolamento, onde tudo era proibido, onde até os rótulos dos chocolates eram retirados para que o preso não tivesse a mínima nota de cor ou a mais ínfima possibilidade de leitura, custam a passar, valem por eternidades. Às oito da manhã o café, ou aquilo que no presídio tinha esse nome, era servido. Mesmo realizando muito lentamente todas as tarefas de higiene e limpeza, antes das nove tudo estava concluído, apresentando-se depois um longo período de dez horas, até ao jantar, em que, excluindo o almoço, que chegava cerca do meio-dia, nada havia para fazer.
Eu fora preso no café, quando jogava xadrez com um amigo, na tarde de sábado. Estava, pois, no segundo dia de mais esta prisão e, pela experiência das anteriores, sabia que só seria chamado à polícia no início da semana, provavelmente à noite, quando estivesse já deitado, para criar mais instabilidade emocional.
O dia estava bonito, insultuosamente belo para quem o espreitava por detrás das grades duplas da cela. Sentei-me junto da janela apreciando a paisagem. Sentinelas percorriam a passo lento a estreita vereda sobre o paredão. Havia um bairro de lata e, lá em baixo, o estuário imenso do rio abria-se fraternamente ao mar sob a ténue musselina da névoa anunciadora de uma tarde muito quente.
Às quatro da tarde, como combinado, enquanto os transístores zumbiam com os relatos do futebol, iniciei uma longa conversa com Bruno. O rapaz começou por me ensinar um sistema de comunicação muito mais rápido do que o tradicional. Para evitar o número de batimentos das letras correspondentes às últimas letras do alfabeto, este era dividido em quatro grupos de cinco letras e um de três. As primeiras pancadas designavam o grupo e as segundas a posição da letra dentro do grupo. Assim, por exemplo, o Z era dado por cinco pancadas (quinto grupo), seguidas por três. Oito batimentos em vez dos vinte e três que seriam exigidos pelo sistema normal. Parecia complicado, mas com a prática tornou-se, de facto, muito mais rápido do que o código clássico, com a vantagem suplementar de, caso a transmissão estivesse a ser escutada por ouvidos indesejáveis, haver possibilidades de a polícia não conhecer ainda este código.
Nas margens do papel de jornal que o guarda me dera para servir de papel higiénico (só na segunda-feira poderia fazer compras), escrevi laboriosamente com pau de fósforo queimado o esquema do novo alfabeto. Mas depressa deixei de recorrer a esse apontamento, pois decorei a nova combinação das letras.
Apesar de termos gasto uma parte apreciável da tarde com esta lição, ainda tive tempo para responder à curiosidade de Bruno, contando-lhe sumariamente como fora preso (não porquê). Perguntou-me se eu era «pró-soviético» ou «pró-chinês», questão central naqueles anos da revolução cultural e do grande cisma que Mao abrira no movimento comunista internacional. Respondi-lhe que era «pró-português». «Ah, ah, ah!», bateu ele. Bruno só teve tempo para me dizer que tinha dezanove anos, que era estudante do ensino liceal (não muito aplicado, pelos vistos) e que vivia numa pequena cidade próxima de Lisboa. Terminou com uma informação algo intrigante: «Não estou preso por política, mas por causa de uma embrulhada com uma garota.» E despediu-se até ao dia seguinte.
A segunda-feira foi um dia muito agitado.
Logo pela manhã, pouco depois das oito, uma carrinha da polícia veio buscar-me. Em Lisboa, recolheram-me as impressões digitais, fotografaram-me em diversas posições, pesaram-me, mediram-me. O costume. Deram-me depois para assinar um auto aparentemente inofensivo, pois só continha dados de identificação – nome, idade, naturalidade, filiação, estado civil, habilitações literárias, situação militar, profissão... A afirmação de que eu declarava não pertencer a nenhuma organização política (nem sequer me haviam feito a pergunta). O papel valia pelo que era e não pelo que dizia – não era afinal tão inócuo como parecia por constituir a base «legal» para a detenção – pois no prazo de quarenta e oito horas a polícia tinha de obter um auto e com isso podia ter um cidadão preso, «preventivamente», sem culpa formada, durante noventa dias, prorrogáveis por outros noventa. Seis meses ao todo. Mas também podia ser mais. Eu sabia tudo isto, mas assinei, pois sabia também que a polícia preferia ter estes suportes legais, mas que os dispensava em caso de necessidade. Isto é, mesmo que eu me recusasse a assinar, ficaria preso à mesma.
Trouxeram-me, ainda de manhã, de regresso a Caxias, onde fui logo levado ao barbeiro, que, com a máquina zero, me rapou o cabelo e a barba «contestatária» (foi a expressão usada pelo fígaro carcerário), transformando-me a cabeça numa quase reluzente bola de bilhar. Antes do almoço ainda houve tempo para o médico torcionário me consultar. Tentou demarcar-se das suas funções de agente da polícia política, refugiando-se atrás de um ar profissional, como se estivesse numa consulta da Caixa de Previdência. Eu já conhecia as perguntas das vezes anteriores e facilitei-lhe a vida – respondi sempre que não. Que não sofria dos pulmões, que não sofria do estômago, que não era cardíaco... uma saúde de ferro. Podiam estar à vontade, bater, torturar.
Ao regressar à cela, depois de todas estas deambulações, tinha o almoço já meio frio sobre a mesa. Comi, apesar de tudo. Quando o faxina e o carcereiro vieram buscar a louça, o guarda informou-me de que, excepcionalmente, podia encomendar as minhas compras. Os pedidos tinham de ser feitos da parte da manhã, mas, considerando que eu não pudera fazê-lo «por estar ausente», abria uma excepção. Agradeci a amabilidade e escrevi rapidamente a minha lista.
A tarde decorreu lentamente, como sempre ali acontecia. À noite, depois de recolhidas as louças do jantar, quando comecei a ouvir o som do rádio portátil do carcereiro, corri à casa de banho. Contei ao Bruno as ocorrências do dia. Não sabendo das minhas anteriores prisões, o rapaz, com prosápias de veterano, advertiu-me de que deveria estar prestes a ser chamado à polícia para começarem os interrogatórios. A ordem era praticamente imutável. Depois do primeiro auto, da identificação, do barbeiro, do médico, chegava sempre a «hora da verdade», disse ele.
Bruno felicitou-me pela rapidez que eu adquirira na utilização do novo código em relação ao dia anterior. Na verdade, na carrinha quente como um forno, percorrendo a Marginal e a 24 de Julho a caminho da António Maria Cardoso, no gabinete de investigação, enquanto aguardava que me trouxessem o auto para assinar, deitado sobre a cama, após o almoço, não cessara de tentar decorar o novo esquema. Até porque esse esforço de memorização me distraía, evitando-me de pensar demasiado no pesadelo em que desde o sábado anterior a minha vida mergulhara. Conforme prometera na tarde da véspera, o rapaz começou a contar a aventura rocambolesca que o levara ao presídio político.
Tudo começara por um trivial namoro com uma colega de liceu. A moça era filha do presidente da Câmara, um esforçado salazarista. Depois, o namoro complicara-se com uma paixão vulcânica, um fogo que não podia já ser apagado com beijos furtivos e manipulações inocentes no banco do jardim público. Fora numa quente noite de Maio, cerca de três meses antes, que durante uma das suas frequentes incursões nocturnas ao quarto da rapariga, cuja janela ficava, tal como o veronês balcão de Julieta, num primeiro andar, o desastre ocorrera. Quando descia, já altas horas da madrugada, não por uma escada de corda de seda, como seria da boa tradição, mas por um tubo de zinco que, vindo do algeroz, passava ao lado da janela, a caleira, certamente já cansada pelo uso impróprio a que ultimamente estava a ser submetida, partiu-se e o imprudente Romeu veio estatelar-se na calçada, arrastando na queda, com enorme ruído, não só o tubo forrado de trepadeiras, como parte do algeroz e mesmo algumas telhas.
As luzes acenderam-se na casa e nas outras habitações da pequena e estreita rua. Acordado pelo barulho, o pai acorreu vestindo um roupão e de pistola em punho e logo vieram outros familiares, criados e vizinhos, formando um círculo em redor de Bruno que se contorcia com dores numa das pernas. Tendo adivinhado o que se passava, pois Bruno já se atrevera a ir ali durante o dia entregar ou pedir livros e cadernos, o homem mandou prender o jovem, sob a acusação de tentativa de assalto.
Contada assim, a história parece pequena, mas batida na parede, letra a letra, palavra a palavra, não foi tão fácil de contar. A hora do silêncio veio interromper a narrativa. O dia seguinte decorreu sem acontecimentos mais notáveis do que a chegada das compras que encomendara ao carcereiro – sabonete, pasta dentífrica, uma escova, um pente (o cabelo iria crescer), papel higiénico, tabaco, fósforos, papel de carta e envelopes, um boião de café solúvel, marmelada, manteiga, talheres de plástico... O pedido de uma faca de plástico fora indeferido.
Após o jantar, Bruno prosseguiu a sua história.
O rapaz era filho de uma antiga família de comerciantes. O avô fora um republicano conhecido em todo o distrito, maçon e ex-carbonário, e o pai era também um conhecido e activo membro da oposição democrática local. Bruno quase não se metia em política – colara uns cartazes da CDE, distribuíra uns folhetos – pouco mais. Porém, estas inocentes actividades aliadas à fama reviralhista da família, permitiram ao presidente da Câmara encontrar para o suposto assalto sinistras motivações políticas. Sinistras e ridículas, porque toda a gente na cidade, que comentava, desde há semanas, aquele namoro, escandaloso para os padrões morais do burgo e da época, bem conhecia a verdade. Os informadores locais devem ter elucidado a polícia política do que se passara, mas o presidente da Câmara movera influências e ali estava o Bruno preso há quase três meses, parte dos quais passados na Prisão-Hospital, quando o único crime que, na sua opinião, cometera (além de, como o Otelo de Shakespeare, muito ter amado) fora o de ter confiado em demasia numa miserável caleira de zinco.
Ainda com a perna engessada, fora levado para Lisboa, onde, na sede da polícia política, o meteram numa sala durante horas e, entre ameaças e bofetadas, um agente com ar ameaçador disse-lhe saber muito bem que ele pertencia ao Partido Comunista e que pretendera entrar em casa do senhor presidente com fins políticos. Quais eram esses fins? Quem o mandara lá?
Bruno negou com veemente inocência a sua filiação partidária, mas não quis explicar por que motivo se encontrava pendurado num cano, às quatro da manhã, na residência do presidente da Câmara. A subir e não a descer. Este era, aliás, o único ponto em que todas as partes – Bruno, presidente e polícia – estavam de acordo: se fosse a descer, como se explicaria que nada de criminoso tivesse ocorrido na casa – nem roubo, nem atentado, nem fogo posto? Bruno nunca aludiu à jovem e, como num tácito acordo, os agentes também não. Não se lembrava de nada, foi a linha de defesa por ele escolhida. Depois de assinado o primeiro auto, regressou a Caxias e, passados poucos dias, foram-no buscar de novo.
Durante quatro noites e cinco dias não o deixaram dormir.
Ameaçaram-no de partir o gesso e de lhe fracturar novamente a perna. O que afinal não fizeram. Como tinha de estar sentado, adormecia frequentemente e então despertavam-no com violentas bofetadas e, mais para o fim, com murros. «Fiquei com a tromba feita num mapa», rematou. Durante aqueles dias foi matutando no que podia dizer àqueles tipos para que o deixassem. Tudo menos a verdade, é claro. Ocorreu-lhe então «confessar-lhes» que tinha fumado haxixe e que, com a pedrada, lhe dera para trepar pelo cano. «Nem sabia quem ali vivia», disse. O que motivou mais murros e ameaças. Quem lhe vendera o haxixe? Com quem o fumara? Respondeu que não se lembrava. Mais sevícias e gritos. Depois, sem que nada de especial se tivesse passado, mandaram-no para Caxias e ali estava, quase a completar três meses de prisão. Despedimo-nos até ao dia seguinte ou até qualquer outro dia. O jovem desejou-me boa sorte, se é que tais votos faziam sentido naquelas circunstâncias. Bruno, sempre no seu papel de veterano, deu-me ainda um conselho para combater a insónia: fazer uns minutos de exercício físico e tomar em seguida um duche bem quente, ensaboando-me abundantemente.
Estive ainda uns momentos a fumar um último cigarro e a contemplar as luzes da Marginal, a iluminação da ponte, os candeeiros de petromax no bairro de lata, como pirilampos na noite quente. Em seguida fiz alguns movimentos de ginástica, umas flexões e fui tomar o duche quente, tal como Bruno aconselhara. Quando às dez horas soou o último apito e as luzes das celas foram apagadas, temi ser flagelado pelas insónias, como acontecera nas duas noites anteriores. Porém, a receita de Bruno funcionou e adormeci quase imediatamente. Acordei menos de duas horas depois com a luz acesa e o carcereiro já dentro da cela a mandar-me vestir.
Tinha chegado o momento. A «hora da verdade», como prosaicamente o definira o Bruno.
Quando, duas semanas depois, ainda imerso no pesadelo da tortura, voltei à cela, tentei logo comunicar com Bruno. A parede ficou muda. A cela estava vazia. Lembrei-me de que o rapaz me dissera que estava quase a completar os três meses. Provavelmente, a polícia, convencida da sua inocência a nível político, satisfeita ou mitigada a sede de vingança do presidente da Câmara, soltara-o. E a minha recordação sobre Bruno foi ficando submersa sob camadas sedimentares dos dolorosos acontecimentos dos meses seguintes, ficando reduzida à intenção de um dia, quando me visse livre de tudo aquilo, o ir procurar à sua cidade, pois gostaria de poder dar um abraço àquele moço que me transmitira, através da espessura da parede e da imensidão do desespero, uma extraordinária sensação de juvenil vitalidade, de uma imensa alegria de viver num tempo tão cinzento, tão marcado pela miséria, pela guerra suja, pela ditadura, numa palavra.
Passados meses, estando já eu em liberdade, na tranquilidade de um serão típico da burguesia democrática daqueles anos sessenta, bebendo um bom uísque, ouvindo discos proibidos, foi-me apresentado um sujeito simpático, o dono de uma livraria na cidade de Bruno, um antifascista também. Perguntei-lhe se conhecia o jovem, se tinha ouvido falar na sua história.
Sim, como toda a gente na pequena cidade, conhecia a crónica de Bruno e dos seus atribulados amores. História com fim trágico. Bruno saíra da prisão, de facto, poucos dias antes de se completarem os três meses de detenção. Foi festejar a liberdade com uns amigos. Eram muitos, mas conseguiram acomodar-se, como sardinha em lata, no interior de um velho carro de um deles. De madrugada, quando regressavam à cidade, em alta velocidade, a porta do lado de Bruno, que ia à frente, junto do condutor, abriu-se e o jovem, projectado para o exterior, esmagou-se contra um muro, tendo morte imediata. No gira-discos, Jean Ferrat continuava a assegurar que c’est beau la vie.
Apesar disso, o uísque soube-me a sangue.
(Excerto do livro A Vida é Um Desporto Violento)
segunda-feira, 5 de julho de 2010
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